sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Guiné 63/74 - P7065: Contraponto (Alberto Branquinho) (15): Chegada à Guiné (Planeta África)

1. Mensagem de Alberto Branquihno (ex-Alf Mil de Op Esp da CART 1689, , Catió, Cabedu, Gandembel e Canquelifá, 1967/69), com data de 28 de Setembro de 2010:

Caríssimo Carlos
Estou a enviar, junto a este, o texto do CONTRAPONTO (15) - Chegada à Guiné (Planeta "África"), no qual tentei reverter minudências que me vieram à memória quando escrevi o anterior.

Um abraço
Alberto Branquinho


CONTRAPONTO (15)

CHEGADA À GUINÉ (Planeta “África”)

Que informação era dada às tropas sobre os territórios africanos onde, dentro de pouco tempo, iriam atracar? – Nenhuma!
Nem sobre as gentes nem sobre o clima nem sobre a insurreição militar e política existente nessas terras.

Só a bordo do navio e no dia anterior à entrada no porto de Bissau, os capitães chamavam os alferes e os furriéis milicianos para dizer umas generalidades sobre a realidade local que os esperava dentro de algumas horas. (E recordo: - Você pode ir embora, porque sabe mais disto do que eu).
Para a tropa, África era uma terra habitada por pretos e onde fazia “um calor do caraças”. E era tudo.

Foto: © Paulo Salgado (2010). Todos os direitos reservados.


A chegada

Imaginemos, então, a rapaziada, acabada de atracar ao planeta “África”, com pouco mais que 20 anos, a chegar a terra e a olhar em volta. (Não existiam na Guiné – nem existem – as grandes metrópoles de outras colónias Portuguesas ou de outros países africanos, nas quais constatamos estar em África somente porque há muitas pessoas de raça negra nas ruas). No nosso caso nem por Bissau passámos. Desembarcámos do Uíge para barcaças que nos levaram, Geba acima, directamente para o interior. A imediata observação da realidade local foi: o contacto “agressivo” com os “velhinhos”, a população próxima, o calor, os cheiros, a sensação de sede africana. Depois veio a diferente fauna, flora, os costumes, a religião… Aquela África rural, interior, quase primitiva foi um espanto. Os peitos nus das raparigas e das mulheres grandes, homens que tinham várias mulheres (e que viviam juntas!). Raças que conviviam com dificuldade.

Foi a observação de tudo o que era exterior ao quartel durante as primeiras saídas para o mato… enquanto não houve tiroteios. A beleza das paisagens, a exuberância e variedade da vegetação, a primeira observação dos babuínos (macaco-cão).

- Aqueles filhos da puta até parecem gente.

Os saguis, “macaco-gato”, macaco de tarrafo… A macacada toda. Os répteis – cobrinhas, cobras médias, cobras grandes, finas, grossas, amarelas, amarelas-esverdeadas, etc. E os lagartos.

– Olha este cabrão a fazer flexões! Paga dez!

E o lagarto, ansioso, lá fazia não dez flexões, mas quatro ou cinco. Dava uma corridinha e – mais duas ou três. Gargalhadas. Mais tarde aprenderam que, se não fizessem gestos bruscos, eles vinham comer os pedaços de pão que lhes atirassem para o chão. Como os gatos e os cães na “Metrópole”.

Com a proximidade dos rios conheceram o risco dos crocodilos ou jacarés, que nadavam mansamente, mas atacavam sem avisar.
A progressão nas matas, mais ou menos densas, trouxe os primeiros sustos causados por porcos-de-mato ou veados em fuga.
Tudo tão diferente!


No reino das aves e dos insectos

Mas África é, em grande parte, o reino das aves e dos insectos.
A variedade de aves ocupava os olhos pela diversidade, diferentes tamanhos, cores e cantos.
Os periquitos, a que havia que ensinar tudo (como à tropa nova, com fardas verdinhas, novas), eram relativamente fáceis de capturar e muito apreciados. Muitos soldados adoptaram um, que era, a assim dizer, a família… de cada adoptante. Eram apaparicados e protegidos até à irracionalidade.

Falando de insectos

Quanto aos insectos, a diversidade era tanta que estonteava um homem. Estavam, de certo modo, mais próximos que as aves, mas, devido à pequena dimensão, eram menos notórios. E a diversidade dos insectos existia mesmo dentro da mesma espécie. Gafanhotos, por exemplo. Uns eram pretos, outros pretos com manchas amarelas. Havia, também, verdes, verdes com manchas rosa, amarelos com manchas verdes, verdes com manchas pretas…

Pedi ao furriel enfermeiro um frasco com formol, onde fui colocando um exemplar dessa diversidade de gafanhotos, que pretendia trazer nas férias. Com o começo da guerra a sério e com tantas andanças e mudanças, o frasco ficou esquecido em qualquer lugar.

E a variedade de formigas?

Desde uma formiga anã, insignificante, à construtora da baga-baga, ao tamanho intermédio, até àquelas grandes, pretas, com grandes cabeçorras e grandes pinças na cabeça. Subiam pelas pernas tão sub-repticiamente que ninguém as sentia, até que, já em número considerável, atacavam selvaticamente o escroto com as tenazes, como se ele fosse um animal suculento, capaz de fornecer proteínas a um formigueiro de milhões. O homem assim atacado, largava a arma, despia-se (da cintura para baixo) em menos de um décimo de segundo, berrando furiosamente das dores, ao mesmo tempo que esfregava, violentamente, virilhas, testículos e toda a zona púbica, desfazendo em pedaços as formigas agressoras.

A primeira vez que testemunhei uma coisa destas foi quando gritos quebraram o silêncio de muitas horas em emboscada. Ficámos apatetados a olhar na direcção dos gritos, sem possibilidade de vermos devido à vegetação, sem saber se devíamos abrir fogo, pensando que o rapaz estava a ser “agarrado à mão”. Um soldado milícia tentou esclarecer-nos com um sorriso irónico:

- Formica, noss’alfero.

- Quê?!

- Formica…

Os soldados olharam-me. Fiz-me de entendido, mas não entendi nada. Certo é que depois de tanta gritaria, não era aconselhável continuarmos ali. Levantámos a emboscada.

Só mais tarde (e por experiência própria) compreendi o sofrimento. Se nunca experimentaram, não o desejem. (Parêntesis – mesmo sendo mulheres, porque, pelo que me informaram, como as mulheres não têm… escroto, as formigas também mordem, mas nos… arredores… onde ele estaria, se fossem homens). A solução para evitar esses ataques é simples – meter as calças por dentro das meias.

E as abelhas, senhoras e senhores?

Abelhas, vespas, abelhas doudas, abelhas bravas ou o que lhes queiram chamar.
Inquietá-las é um risco. Quer dizer: praticar qualquer acto do qual resulte que elas “possam pensar” que estão a ser atacadas. Da fila, em progressão
na mata, os trinta a quarenta mais próximos ficavam com “direito” a vinte ou trinta abelhas cada um. Acabávamos picados e bem picados, apesar da rede mosquiteira à volta do pescoço, mangas puxadas abaixo, golas levantadas e quicos enterrados na cabeça. Tudo isto minimizava mas não evitava ser picado, as dores e algumas partes do corpo inchadas. Por causa das alergias ou excesso de picadas por vezes verificaram-se mortes. Pior que tudo era tentar afastá-las com qualquer objecto ou correr de um lado para o outro (com o risco acrescido de pisar ou tropeçar em minas). Era aconselhado deitar no chão e permanecer imóvel… apesar de picado.

Imagine-se um ataque de abelhas debaixo de fogo (p. ex. caindo em emboscada), situação criada pelo IN, que disparava sobre os ninhos construídos nos troncos das árvores.

Depois de um ataque de abelhas, regressei ao quartel no dia seguinte, no final da operação, com o pescoço e cara de tal modo inchados que não conseguia abrir os olhos. Tive que caminhar com a arma em bandoleira no ombro direito e, com a mão esquerda, manter puxada para baixo a pálpebra inferior do olho esquerdo, espreitando por uma fresta.

O terror que as abelhas causavam aos soldados nativos era tal que, mal as pressentiam, fugiam aterrorizados para a frente da coluna aos gritos:

- Baguera!!! Baguera!!!

Continuando a falar de insectos, pergunto: Será que, alguma vez, observaram a “residência” da matacanha?

Todos viram a infecção causada pela matacanha alojada nas unhas dos pés, nas dobras dos dedos dos pés e nas nádegas das crianças (que brincavam sentadas no chão). E todos viram a mestria com que os nativos extraíam a matacanha ou a “maternidade” que ela tinha instalado nos locais acima referidos. Mas onde vive a matacanha fora desses locais do corpo humano?

Observando o chão durante a época seca, vêem-se de onde em onde uns pequenos buracos de meio centímetro de diâmetro na parte superior e que para baixo, com uma profundidade de alguns milímetros, toma forma cónica. Pois é no bico desse cone invertido que a matacanha vive, aguardando as presas, que serão de dimensões mínimas, pois ela tem o tamanho de um milímetro, mais ou menos.

Se agarrarmos uma formiga pequena e a colocarmos dentro do cone, a matacanha agarra-a e sacode-a, demonstrando uma força que não se imaginava possível para o seu tamanho.

Se lhe taparmos o habitáculo com terra, ela sacode os pequenos grãos de terra para cima, para um lado e para o outro, reconstituindo o cone e, se estivermos atentos, notamos o movimento das partículas quando ela se realoja no bico do cone, voltando TUDO ao sossego anterior.

Experiência - identificação da matacanha: Com um pedaço de papel branco, com mais ou menos, dois centímetros de largura, passemo-lo mesmo por baixo do habitáculo de uma matacanha, puxando, depois, cuidadosamente o papel com a terra para cima. Afastando, cuidadosamente, a terra ao longo do pedaço de papel, é possível identificar a matacanha a movimentar-se (desesperada) a céu aberto.

Destas experiências ficou-me uma “dúvida existencial”: não sei como a matacanha sobrevive no chão lodoso durante a época das chuvas.

Continuando a falar de insectos, deixei para o fim um exemplar que todos os que passaram e passam por aquela terras sofreram e sofrem:

– Sª.Exª., o MOSQUITO !

Mesmo aqui, na nossa terra, é melga, teimoso, persistente, chato e perigoso. E tornou-se mais comum devido ao aumento das temperaturas durante o Verão.

Na Guiné, no sul mais a sul, abundava, por vezes, em nuvens. E, como dizia um soldado nos nossos primeiros dias de Guiné:

- Estes gajos não aguentam uma cachaporra, mas mordem p’ra carago!

O mosquito era omnipresente como Deus, pelo menos nas terras do sul mais a sul – estava em todo o lado e ao mesmo tempo. Era impossível fugir-lhes. A quantidade era tal que nem mosquiteiro nem LION BRAND nem repelente nos livravam absolutamente deles.

À noite ou ao anoitecer, em operações militares, principalmente em emboscadas nocturnas, tentava-se evitar as picadas com rede mosquiteira à volta da cabeça, mas a rede não era tão apertada com seria necessário, porque diminuía a visibilidade. Por outro lado, o repelente, colocado na cara, só actuava durante algum tempo e cheirava muito mal para… os repelir. Na manhã seguinte o pessoal regressava com a testa, orelhas e faces cheias de pequenos relevos esbranquiçados e comichosos.

Conheci um capitão miliciano que se “alimentava” de whisky e que dizia que todos os mosquitos que o picassem já não voavam, pois, de imediato, cairiam bêbados no chão.

Do paludismo (ou malária) todos ouvimos já falar, mas só quem o experimentou entende como é aquela noção de “apocalipse”, de fim de mundo, os picos de febre e os tremores, que fazem tremer a cama do doente como se fosse um terramoto.

Muitas histórias se contam de pessoal “apanhado pelo clima” naqueles tempos de guerra, mas a mais surrealista que conheço é de um alferes que, tendo as paredes e o tecto do “quarto” pejadas de mosquitos, cheio de sono e não conseguindo dormir, puxou da G3 e atacou-os às rajadas.

Acabadas estas minudências, muito mais diminuídas por serem acerca desses seres menores chamados insectos, é tempo de regressar.

***************

Não fosse a guerra, as dificuldades de mobilidade que ela provocava e as preocupações que causava (ocupando tempo e mente), para muitos e naquela idade, a descoberta daquela terra teria sido uma vivência extraordinária.

Na Guiné (Planeta “África”) nos fizemos homens como consequência de tudo o que vivemos. Teria sido bem melhor termos “crescido” num ambiente de paz.
Pena foi não terem sobrevivido todos e outros terem regressado afectados no corpo e na alma.

Alberto Branquinho
__________

Notas de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6944: Contraponto (Alberto Branquinho) (14): Discorrendo sobre a(s) água(s) na Guiné

- Fotos retiradas da internete, com a devida vénia aos seus autores

6 comentários:

Anónimo disse...

Caro Alberto Branquinho,
Gostei imenso e reconheci muitas das minhas vivências na Guiné.
Aquela sensação dum mundo desconhecido, primitivo. O calor -- o imenso calor ! -- que tanto me custou a sofrer.
A bicharada que nos rodeava ali tão íntima, tão lá de casa, sem ter sido convidada.
Os ratos do tamanho de coelhos -- uma noite acordei com um ratão enorme em cima de mim. Nessa noite já não dormi mais, passei-a junto dos nossos soldados que estavam de sentinela.
Abraço,
Rui Esteves
Furriel enfermeiro CCac 3327

Luís Graça disse...

Alberto, de repente, atordoado e aterrado, junto a um baga-baga, cidade de formigas, milhões de formigas, literalmente de calças na mão, e enquanto os africanos do pelotão gritavam "bera, bera", mais atrás... Era um cocktail explosivo, formigas e abelhas selvagens, ainda mais valentes e agressivas do que os camaradas do PAIGC... Vi várias vezes desbaratarem um batalhão!

Obrigado pela reconstituição das emoções. Luís

Anónimo disse...

Caro Alberto branquinho

Muito boa descrição daquelas latitudes, com a sua fauna e flora tão diferente daquela a que estávamos habituados.

Evidente que todos nós, embora uns mais do que outros, conviveram com quase tudo o que descreves. Porém julgo que poucos se deram ao trabalho de observar, tão ao pormenor, a vida de alguns desses exemplares. Já bastava as consequências que se sofriam e deixavam o pessoal meio maluco, quanto mais ficar a examiná-los.

Também assisti "às danças fora de bailações", ao mesmo tempo que se despiam, de quem inadvertidamente se sentou, durante pausa para o "piquenique" e foi surrateiramente atacado pelas tais formigas que quase só tinham cabeçorra.
Dessa bicharada toda, só posso congratular-me por não ter sido "apresentado" às famigeradas ABELHAS.

Abraço
Jorge Picado

Anónimo disse...

Camarigos
Na emboscada de 6/11/71, quando rebentou o fogachal atirei-me para o chão e fui aterrar aonde ? Em cima de um formigueiro daquelas formigas pretas ,grandes com mandíbulas tipo "santola", tirávamos o corpo mas as mandíbulas ficavam lá "atarrachadas" à carne. Era o IN a bombardear de toda a maneira e feitio e eu cheio de formigas por tudo o que era sítio, sim, até no sítio que vocês estão a imaginar neste momento. Conclusão: tive que amochar e aguentar-me, pois entre uma bala e as formigas escolhi as formigas e lá fiquei debaixo de fogo e a fazer fogo com a companhia "amiga" das formigas. Consegui sobreviver aos dois ataques, mas o ataque das formigas deixou-me um pouco em baixo...
Abraço
Luís Borrega

Anónimo disse...

Camarigo Alberto Branquinho
Ao ler o teu poste deu-me a sensação de estar a folhear uma Enciclopédia sobre Vida Animal.
Muito bom e bastante objectivo.
Sinceros Parabéns pela prosa publicada.
Abraço Camarigo
Luís Borrega

Anónimo disse...

Caro Alberto,
Mosquitos, abelhas e formigas aos montes. Matacanhas uma vez! Deu para observar a perícia de um soldado africano.

Recordar é viver...e coçar as tais, não vá o diabo tecê-las uma vez mais.

Exelente texto sobre o reino animal que nos afectou a todos.

Um abraço amigo,
José Câmara