terça-feira, 7 de setembro de 2010

Guiné 63/74 - P6945: Notas de leitura (145): Liberdade ou Evasão, de António Lobato (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 27 de Agosto de 2010:

Queridos amigos,


Há páginas muito curiosas neste testemunho do Major Lobato. Pena é que não tenhamos o seu relato mais detalhado da Guiné, entre 1961 e 1963. Dá que pensar o que era a implantação do PAIGC no Sul, logo em Maio de 1963. E sente-se o amadurecimento de um resistente numa prisão tenebrosa, num estatuto infame de criminosos de guerra.


Um abraço do
Mário


Major António Lobato, o mais longo cativeiro da guerra colonial

Beja Santos

Alistou-se na Força Aérea como voluntário, em 1957. Embarcou para a Guiné, em 1961. Em 1963, em consequência de uma colisão entre dois aviões, depois de uma operação na ilha do Como, foi feito prisioneiro pelos guerrilheiros do PAIGC. Começava um longo cativeiro que só iria terminar com a operação Mar Verde, em finais de 1970.

O seu relato intitula-se “Liberdade ou Evasão” (Editora Ausência, 2001). É um documento de real importância: fica-se a saber a implantação do PAIGC no sul da Guiné, logo no primeiro ano da luta armada, a sua mobilidade até à República da Guiné; as ambiguidades de ser prisioneiro de guerra e de viver em silêncio, sem poder comunicar com a família e com o país; temos acesso a conversas com dirigentes do PAIGC e o que deles pensa o prisioneiro; acima de tudo, o testemunho da tragédia do isolamento, o modo como se procura ultrapassar o abismo de viver rodeado de outros camaradas, num cocktail com presos do regime de Sékou Touré.

A despeito de diferentes contradições (como aquela de estar plenamente informado sobre a ditadura de Sékou Touré quando é enclausurado na Maison de Force de Kindia com o rótulo de criminoso de guerra, ele, sargento Lobato, que dizia nada saber de política) é um documento que de longe regista as múltiplas dores e sofrimentos de estar preso em terra alheia, sem nunca vacilar diante das propostas de desertar ou mancomunar-se com o inimigo. É um relato por vezes minucioso, confessional, dá pormenores relevantes sobre a vida em campo de concentração.

Vejamos o que diz do seu encontro com Nino Vieira, pouco depois da sua captura na região de Tombali:


“Sentado no tronco seco de uma velha árvore, o jovem chefe guerrilheiro, vestido de kaki verde-escuro, pés nus e espartilhados por sandálias de plástico, braços ornamentados com grossos anéis de madeira e couro, um pedaço de corno pendurado ao pescoço por uma tira de cabedal, mais parece a estátua inerte de um deus negro expulso do Olimpo, de que o temível turra a quem todos obedecem, porque é “imune às balas do tuga”. 

Metido numa prisão em Boké, manifesta o nojo pela degradação a que sujeitam o ser humano:

 “A luz que a grade filtra é agora um pouco mais intensa do que ontem, à minha chegada. Sento-me na cadeira-cama em que dormi e fico a olhar a parede em frente, a menos de meio metro do meu nariz… Não tem qualquer cor definida, está cheia de nódoas indecifráveis, de sulcos cavados no reboco, de matéria que sobre ela deve ter sido projectada, que aderiu à superfície e solidificou com o tempo: sangue?… escarros?… fezes?… É uma parede suja, muito suja, uma daquelas paredes de calabouço que só conhecemos através da imaginação dos romancistas”.


Começam os interrogatórios, é perguntado sobre o regime político em Portugal, o que é uma república unitária e corporativa, o que é que ele pensa sobre a guerra colonial. Depois encontra Otto, um cabo-verdiano, ex-radiotelegrafista da Aeronáutica Civil que trabalhou com ele no aeroporto de Bissau. Otto leva-o até junto de guineenses que se juntaram ao PAIGC. E escreve, sentenciador:

“Os pobres guineo-portugueses fitam-me com um ténue sorriso nos lábios gretados pelo calor e pela subnutrição e naqueles olhos esbugalhados pela surpresa, lê-se a esperança longínqua de um regresso à terra-mãe, ao doce chicote do colonizador que durante quinhentos anos lhes garantiu a banca fresca, pão, água e alguma aprendizagem técnica, científica e cultural”. 

Transferido para Conacri, é de novo interrogado: a guerra que Salazar faz em África é justa? O que sabe sobre as prisões políticas em Portugal, explique-nos a organização da PIDE, o que pensa da conferência da Adis-Abeba, quer trabalhar com o general Humberto Delgado? Nega a responder, recusa colaborar, vai direitinho para a Maison de Force de Kindia. Assim se inicia a longa etapa da sobrevivência, é um prisioneiro posto à disposição não se sabe bem de quem e como. Vai sofrer estados de revolta, sentir as entranhas corroídas pela angústia.

Um homem da Guiana, ali preso por roubo, oferece-se para mandar uma mensagem até à família. É tocante o que escreve, a revelação dos seus sentimentos. Temos depois um dos pontos mais altos do seu relato, a descrição da vida do Forte, a situação dos degredados, os seus gritos, a observação que faz para ver se pode fugir, a luta contra os percevejos, os exercícios de ginástica. Começa a receber encomendas por via da Cruz Vermelha, recebe as visitas de Amílcar Cabral, inabalável, recusa colaborar. Depois tenta fugir. É interessante comparar a sua descrição com aquela que fez o alferes Rosa, e que já aqui publicámos no blogue. Ajuíza positivamente o comportamento de dirigentes do PAIGC como Fidelis Cabral, Aristides Pereira ou Joseph Turpin dizendo que são homens bons, moderados e sensatos.

Até que chegamos a 22 de Novembro de 1970, a operação Mar Verde. Refere o seu encontro com o capitão tenente Alpoim Calvão e a partida de Conacri. E, por fim, as peripécias da chegada a Portugal e a sua amargura quanto a atitudes e comportamentos de oficiais da Força Aérea, que o desiludem. Termina o seu relato citando Emanuel Mounier: “Falta uma dimensão ao homem que não conheceu a prisão”.

Chegara a hora de recomeçar a vida, vencida estava a duríssima etapa de sobrevivência, anos e anos a viver à beira do desespero (*).

Este livro passa a pertencer à biblioteca do blogue.
__________

Notas de CV:

Vd. último poste da série de 6 de Setembro de 2010 > Guiné 63/74 - P6941: Notas de leitura (144): Amílcar Cabral Documentário (Mário Beja Santos)

(*) Relacionado com este poste,  vd. 27 de Setembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3246: Simpósio Internacional de Guileje: Joseph Turpin, um histórico do PAIGC, saúda António Lobato, ex-prisioneiro (Luís Graça)

(...) Depoimento gravado por Luís Graça, em Bissau, no Hotel no dia 7 de Março, por voltas 13h11, no último dia do encerramento do Simpósio Internacional de Guileje (1-7 de Março de 2008). As condições de luz eram más e a máquina era uma digital, de fotografia e não de vídeo.

Joseph Turpin era um dos históricos do PAIGC, juntamente com Carmen Pereira e Carlos Correio, que estiveram presentes no Simpósio. Pediu-me para mandar uma mensagem para o António Lobato, o antigo sargento piloto aviador portuguesa, cujo T 6 foi abatido em 1963, na Ilha do Como .

Feito prisioneiro pelo PAIGC, o Lobato foi levado para Conacri, onde permaneceu sete longos anos de cativeiro, até à libertação em 22 de Novembro de 1970, no decurso da Op Mar Verde. "Ó Lobato, depois da tempestade, depois de tantos anos, não sei se te vais lembrar de mim..." - são as primeiras palavras deste representant do PAIGC, na altura a viver em Conacri, sendo então membro do Conselho Superior da Luta.

Neste curto vídeo, o Turpin recorda os momentos em que, por diversas vezes, visitou o nosso camarada na prisão. Não esconde que foram momentos difíceis, para ambos, mas ao mesmo tempo emocionantes: dois inimigos que revelaram o melhor da nossa humanidade... "Eu compreendia, estavas desmoralizado...Havia animosidade"... Joseph Turpin agradece ao Lobato as palavras de apreço com ele se referiu à sua pessoa, ao evocar há tempos, em entrevista à rádio, a sua experiência de cativeiro. Agradece o exemplar do livro que o Lobato lhe mandou e que ele leu, com interesse. Diz que ficou sensibilizado com as palavras e o gesto do Lobato. "Mas tudo isso hoje faz parte da história...Seria bom que viesses a Bissau" - são as últimas palavras, deste homem afável, dirigidas ao seu antigo prisioneiro português que ele trata por camarada...(...)

8 comentários:

Pratos de Ouro disse...

onde posso adquirir este livro... acha que na fnac pode existir? Abraço e boa continuação.

as aventuras de um empregado gourmet

http://ohpirussas.blogspot.com/

Carlos Vinhal disse...

Quem estiver interessado em adquirir este livro pode, por exemplo, consultar este local:
http://www.wook.pt/ficha/liberdade-ou-evasao/a/id/103607
Carlos Vinhal

Anónimo disse...

Carlos Vinhal,

A fotografia do major pilav António Lobato, supra parcialmente reproduzida, está desde há dois anos publicada numa das subpáginas do portal UTW, dedicadas aos Encontros Nacionais de Combatentes.
ultramar.terraweb.biz/Celebracoesdo10JUN/Celebracoes_EncontrosNacionais_LX_1996Jun10_02OradorConvidado

assina: o autor da foto, que a cedeu ao UTW

Luís Graça disse...

Costuma-se dizer que o ódio é cego... Por outro lado, o ódio é muitas vezes o combustível que nos permite resistir a um grande sofrimento infligido por terceiros: neste caso, o cativeiro, a privação da liberdade, os maus tratos...

A brutal situação-limite que viveu o nosso camarada António Lobato, ao longo de sete anos, foi suportada com grande coragem física e moral... e merece ser apontada como um exemplo de dignidade e humanidade.

Essa dignidade e humanidade traduzem-se também na apreciação que ele faz dos seus carrascos e adversários... Não os mete todos no mesmo saco... Há palavras de apreço para o comportamento, digno ou pelo menos sensato, de dirigentes do PAIGC com o Joseph Turpin, bem como para o Fidelis Cabral e o Aristides Pereira...

Turpin retribuiu-lhe mais tarde, em 2008, essas palavras de apreço e até de estima, com um belíssimo depoimento que eu tive o privilégio de gravar em Bissau... Nunca cheguei a saber se o António visualizou o vídeo... Onde quer que ele esteja, o nosso muito especial Alfa Bravo para este bravo camarada da FAP.

Anónimo disse...

Ao ler-se, com solidariedade,o relato do cativeiro ,e sacrifícios, de alguns dos nossos camaradas,nao se deve esquecer que o governo de Salazar recusou,na Índia,a evacuacao imediata dos soldados portugueses proposta pela Uniao Indiana;como posteriormente,no caso da Guiné,todas as ofertas de trocas de prisioneiros apresentadas pela Cruz Vermelha Internacional,pelas Nacoes Unidas,e pela Cruz Vermelha Sueca. Vivia-se uma "mítica história",independentemente dos sacrifícios pessoais de alguns dos apanhados nas malhas do Império. Tudo já será passado distante.Mas nao se deve,convenientemente,ou confortavelmente....esquecer. (Politiquices?) Um abraco.

Torcato Mendonca disse...

Penso que a grande riqueza deste blogue é a sua diversidade, tolerância, solidariedade. Lemos o escrito do Leopoldo Amado que fala de uma Senhora. Sabemos quem é lemos algo dela e da sua visão de África. Depois o Beja Santos dá a "conhecer" o António Lobato, aviador e mítico prisioneiro. Li e fui procurar sem êxito o livro.Esconde-se algures. Li o livro mais na tentativa de saber algo sobre um soldado da minha CART.Foi apanhado á mão o Monteiro e regressou aquando da "Mar Verde". Soube um pouco dele mais tarde...nada sei hoje.
O nosso País, a ditadura de então, para não ferir certos pensamentos digamos: o regime de então, não se portou bem para com estes homens. O José Belo volta á India e aí ainda menos. Mas um dia, dizem que apareceu liberdade e a justiça, para com eles, foi sendo secundarizada.. . ou não? Mesmo para com os prisioneiros do regime, negros ou brancos, nem negros nem brancos - homens que foram humilhados,torturados, ofendidos. Foram esquecidos. Fala-se nos africanos presos no Tarrafal, no e mais no...e os"metropolitanos" que por cá e lá morreram em nome de um ideal onde a Pátria ou as Pátrias de hoje lá estavam. Esquecidos lá e até cá...

A nossa História é isto tudo. O bom e o mau, o que nos agrada e desagrada. Tudo isso urge ser tratado por quem sabe, por quem compara as várias mentiras, meias verdades e consegue encontrar a verdade e fará,então sim, o relato do que efectivamente se passou.Tanto mar...

Tenho orgulho em ser português. Tenho ideia formada da nossa realidade como País ao longo dos séculos. Será a mais aproximada da realidade? Não sei bem. Por isso respeito a diversidade opinativa e a minha liberdade, não a que dizem - ter dado - não, essa dispenso, a liberdade que se foi construindo aqui no nosso País e, certamente um dia se espalhará por onde já dizem ter sido o nosso País...utopia? Certamente que não.

Paro porque estas palavras podem não levantar voo...e isto é um singelo comentário...

Ab do Torcato

Anónimo disse...

Camaradas:
Mais uma bela reflexão do Torcato no seu comentário.
"A nossa História é isto tudo. O bom e o mau, o que nos agrada e desagrada".
E como o velho clássico, quanto mais sabe, mais dúvidas sente.
Abraços fraternos
JD

Antonio Lobato disse...

Caríssimos companheiros, soldados da Pátria, Geração do Dever, para vós toda a minha gratidão pelas vossas palavras ainda que as considere veículos de uma bondade que é apanágio daqueles que em parte das suas vidas ombrearam com a morte.O meu sincero obrigado com votos da maior ventura e felicidade para todos vós.
António Lobato