segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6857: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (5): Memórias das Guerras Coloniais, de João Paulo Guerra (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 16 de Agosto de 2010:

Queridos amigos,
É caso para dizer que enriqueci em leituras quando a canícula me tirou energia para os passeios pedestres ou qualquer outro tipo de entretenimentos campestres. Deixei a biblioteca limpa, arrumada segundo os meus critérios duvidosos e com o risco de ninguém ali se entender quando o Alzheimer me atingir de chofre... infelizmente (ou felizmente, segundo as opiniões), as férias foram curtas, mas ficou-me esta saborosa ilusão de que as posso continuar com novos livros à minha volta.
Um abraço do
Mário


Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (5)

por Beja Santos

As guerras coloniais, múltiplos códigos nas vertentes da memória

A ver se hoje de manhã dou por concluída esta empreitada de livros, catálogos, revistas espúrias, folhetos de viagens, se ponho alguma ordem nesta estranha demência de guardar postais, tanto os recebidos como os comprados em décadas de viagens. A aragem é convidativa, toca de pôr no gira-discos algumas das sinfonias londrinas de Haydn. Finda a tarefa, temos, como sempre, aquela sensação ambivalente da missão cumprida e da infinidade de coisas por cumprir. À cautela, passa-se a escrito o que parece útil dizer sobre “Memórias das Guerras Coloniais” de João Paulo Guerra (Edições Afrontamento, 1994). Confesso que estou a gostar destas férias, aqui na região não tem havido ameaças de fogos, mas ontem à tarde, sob a barragem do Cabril avistou-se o fogo que lavra para lá de Dornes, na região do Ferreira do Zêzere, a espiral de fumo tapa o sol, há uma fuligem que dança no éter. Ainda não sabemos, dentro de dois dias, quando chover inusitadamente, vai deixar os carros polvilhados.

João Paulo Guerra esquematiza a luta do PAIGC como partido multinacional, uma futura união de povos da Guiné e Cabo Verde. O fundamental a reter é que a luta de independência pôde centrar-se na Guiné e foi muito ténue nas ilhas. Os quadros cabo-verdianos acabaram por constituir, por excelência, a direcção do PAIGC. Mesmo Pedro Pires, preparado em Cuba, acabou por ser figura grada da Guiné, mais tarde, depois do golpe de 1980, expulso do PAIGC, tendo-se tornado presidente de Cabo Verde. Todos os planos de desembarque em Cabo Verde falharam. Não interessa determo-nos sobre a evolução dos acontecimentos em Moçambique, que o autor analisa com igual atenção como já fez com Angola e Moçambique. Abreviadamente, fala da criação da FRELIMO, da vida efémera dos grupos rivais, da luta armada a partir de 1964, da personalidade do seu primeiro líder, Eduardo Mondlane, das cisões profundas dentro da FRELIMO, a caracterização das diferentes fases da guerra, o significado das operações Nó Górdio e Fronteira (em 1978, o general Costa Gomes considerou a operação Nó Górdio como a mais ruinosa que se fez durante as guerras de África), as concepções geoestratégicas e geopolíticas do enquadramento de Moçambique com os acontecimentos da Rodésia e África do Sul, a degradação do teatro de operações à volta da Beira a partir de Dezembro de 1973, as manobras de Jorge Jardim e os seus planos de golpe de Estado.

Concluída a panorâmica da evolução nas três frentes, o autor dá-nos conta de importantes questões colaterais à evolução da própria guerra: o tabu na intransigência nas negociações quer para a autonomia quer para a independência (elas só vão surgir quando o regime está à beira do colapso) e sobretudo depois de publicadas as teses de Spínola no seu livro Portugal e o Futuro; a incapacidade de Marcello Caetano de pôr em prática as suas teses federais, enunciadas no início dos anos 60; a crescente tensão entre as forças da direita radical, sobretudo quando propuseram o Congresso dos Combatentes (Junho de 1973) que mereceu uma enorme contestação dirigida por apoiantes a Spínola, incluindo alguns dos militares mais condecorados pela sua acção em combate, nas guerras coloniais; o esfarelamento na coesão entre o regime e a Igreja, havendo a registar que a Igreja manteve posições diferentes e contraditórias sobre o colonialismo português e as próprias guerras, tais tensões irão acompanhar o espírito do Concílio Vaticano II, o apoio de Paulo VI à descolonização e a organização interna dos católicos à Guerra Colonial; a posição da oposição ao regime a partir de um republicanismo altamente favorável ao Portugal ultramarino passando pela simpatia dos partidos da esquerda, a partir dos anos 60, a favor da independência de todas as parcelas desse império.

Qualquer guerra só pode ser contabilizada pelos números e cifras, ninguém sabe medir o sofrimento, a desagregação psicológica, as marcas para todo o sempre, os vincos deixados por erros da inexperiência ou ignorância praticados numa atmosfera militar para a qual os jovens não estavam preparados. Toda essa estatística, de modo inconfundível, consta da Resenha Histórico-Militar do Estado Maior. João Paulo Guerra regista alguns dados incómodos como os prisioneiros de guerra e lembra que falar de faltosos, refractários desertores não é linear, sabendo-se que de 1960 a 1974 emigraram só para França mais de milhão e meio de portugueses, cerca de oitenta por cento dos quais “a salto”. Questão controversa tem a ver com as “unidades de segunda linha” ou “tropas nativas” e o seu desempenho. A Guiné foi o território com mais baixa percentagem de tropa nativa: enquanto, em 1973, esta percentagem era próxima de 54% em Moçambique e de mais de 42% em Angola, não ultrapassava os 20% na Guiné. O primeiro cessar-fogo foi o da Guiné e em 26 de Agosto de 1974 foi assinado em Argel um acordo pelo qual Lisboa reconheceu a independência da Guiné-Bissau e o direito do povo de Cabo Verde à autodeterminação e à independência. Citando o autor, “Desde meados de Junho que as tropas portuguesas não desenvolviam actividade ofensiva na Guiné e que a actividade operacional do PAIGC era praticamente nula, com excepção do abate de um helicóptero por um míssil SAM 7 Strella no dia 6 de Junho. Mas nem tudo foi pacífico e durante o processo de negociações por duas vezes houve ordens para reatar as acções bélicas, embora as unidades da quadrícula portuguesa e as tropas do PAIGC confraternizassem no terreno. Em 10 de Setembro de 1974, Portugal foi o 87.º país a reconhecer juridicamente a República da Guiné-Bissau”.

É verdade que cresceu a massa de informações sobre a guerra que se travou em África, basta confrontar o que João Paulo Guerra escreveu e o levantamento recentemente efectuado por Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso. Mas estas primeiras memórias tiveram o condão de levar os historiadores a perceberem que para além do chamado fenómeno da descolonização e das lutas de libertação subsistem dimensões de grande complexidade que requerem um laborioso trabalho multidisciplinar, desfazendo tabus e iconografias, revisitando parcela a parcela o pulsar da graduação das guerras e o comportamento dos protagonistas. E o mais difícil ainda está por fazer: cotejar os dois lados da contenda, isto quando se sabe que há muita documentação desaparecida em África (desaparecida ou sonegada, entenda-se).

Exemplo da propaganda utilizada para captar jovens para as forças armadas, neste caso para os pára-quedistas. Esta foi a imagem escolhida para a capa do livro “Memória das Guerras Coloniais”

Pego agora no livro que Luís Gonzaga Ferreira me ofereceu em 2000: “Quadros de Viagem de um Diplomata”. Luís Gonzaga Ferreira começou a sua carreira diplomática no Senegal em 1960. Irá viver uma experiência extraordinária quando se tornou no “homem grande” de Portugal em Dakar, tornou-se cônsul e procurou negociações com grupos de nacionalistas, tendo mesmo levado Salazar, pela primeira e única vez, a receber em privado um dirigente independentista da Guiné. Logo à noite volto a esta biblioteca a arder e vou falar-vos deste livro. Infelizmente, este curto período de férias caminha para o fim.

(Continua)
__________

Nota de CV:

Vd. poste de 14 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6852: Recordações de umas férias numa biblioteca em fogo (4) (Mário Beja Santos)

5 comentários:

Anónimo disse...

Ora...
a imagem usada na capa, justamente não é iconográfica, não ilustra a imagem que 'se tem' das guerras que os artigos aqui publicados referem como matéria do livro do Sr Guerra.
De facto, as tropas páraquedistas usaram aquele modelo de capacete mas apenas no início da Guerra em Angola e apenas nas operações de envolvimento vertical ie. lançamentos de pessoal em páraquedas e destas esparsas ocorrências pouco consta em termos de imagem e pouco se terá fixado a diferença resultante do facto de apenas aquela tropa usar aquele tipo de capacete, outrossim intuitivamente ligado a outra guerra, contemporânea da nossa e largamente dada a conhecer por razões que lhe serão específicamente associadas - a guerra que os americanos travaram no Vietnam.
Pouco importa que imagem ocorra ou tenha ocorrido antes, em panfleto de propaganda; esse mesmo, eventualmente não iconográfico ou pouco representativo se dele se ensaiar uma leitura alargada. Outro tanto não se diria se se tratar de uma cartaz afixado em ambiente restrito e de leitura estrita e dirigida - em Tancos, na Unidade-escola de Páraquedistas, por exemplo.
Ora...
daqui se infere que, fora das unidades de páraquedistas de então, é pouco provável que alguem reconheça aquela imagem como tendo origem sendo ícone das "Guerras Coloniais" - será portanto insidiosa.

SNogueira

PS
Se restarem dúvidas acerca da tendência para que se faça uma leitura errónea da imagem da capa do livro (relativamente ao título e ao referido conteúdo) que se ensaie uma amostragem apressada, apoiada nessa mesma capa e não no cartaz, de conteúdo imagético diferente e ilustrado pela legenda lateral. A exibição do cartaz, aqui, sem referêcia extensiva afigura-se indutora, expedita, e tardia.
A imagem da capa sugere claramente mais um qualquer assalto a mais uma qualquer 'hill 425', a que o cinema americano nos habituou e nesta possível dimensão, seria uma aldrabice.

Anónimo disse...

(leia-se, por favor)
"fixado a diferença, resultante do facto"

Anónimo disse...

(leia-se também)

"como tendo origem ou sendo ícone "

Anónimo disse...

A tal imagem não ilustra portanto as memórias que a generalidade dos guerreiros terão das ditas 'guerras coloniais' em que participaram; não ilustra sequer uma memória dispersa, uma vez que não é iconográfica, por não reforçar ou edificar uma memória individual ou colectiva associada àquelas guerras.

SNogueira

SNogueira

Anónimo disse...

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