terça-feira, 3 de agosto de 2010

Guiné 63/74 - P6818: Notas de leitura (141): Corte Geral, de Carlos Lopes (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 30 de Julho de 2010:

Queridos amigos,
Despeço-me até 10 de Agosto.
Estejam descansados, levo livros sobre a Guiné, prometo mais recensões. Depois, tenho que dirigir mais a minha atenção para A Viagem do Tangomau que tem andado tão mal tratada.

Um abraço a todos,
Mário


Estórias da crioulidade, entre a mordacidade e a profunda decepção

por Beja Santos

Carlos Lopes é um nome sonante e prestigiado de um guineense que serve as Nações Unidas. Nasceu em Canchungo (antiga Teixeira Pinto) em 1960. Doutorou-se em Estudos Africanos em Paris; tem igualmente graus académicos em Sociologia, História e Planificação Estratégica. Intelectual prodígio, foi director-geral aos 24 anos do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisa. Repartiu a sua actividade académica em universidades como Zurique, Uppsala, México e Coimbra. A partir de 1988 trabalhou no PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Foi assessor de Kofi Anan, o anterior secretário-geral das Nações Unidas. O actual secretário-geral, Ban Ki-moon, nomeou Carlos Lopes como director executivo do Instituto das Nações Unidas para a Formação e Investigação. Anteriormente Carlos Lopes ocupara as funções de director de assuntos políticos do gabinete executivo do secretário-geral.

Corte Geral é a primeira obra de ficção de Carlos Lopes (Editorial Caminho, 1997).

Ele apelida o conjunto de crónicas de “deambulações no surrealismo guineense”. É um livro assombroso, de uma grande coragem, pintalgado de humor e de uma crueldade bastante sofrida. É, acima de tudo, um retrato da Guiné-Bissau após a independência, os seus traumas sociais e económicos, os permanentes choques culturais, a África dos curandeiros e dos irãs, a reminiscência do período colonial em que as coisas funcionavam e incompreensivelmente se tornaram disfuncionais. De igual modo, um olhar arguto, matreiro, sobre as falsas mudanças, as medidas pseudo-revolucionárias que a carapaça tradicionalista acaba por atirar ao lixo. E também uma crítica aos falhanços políticos, numa perspectiva anterior à guerra civil que chegou pouco tempo depois de publicado este livro.

O ambiente geral que envolve estas estórias é o tempo da liberalização, o ajustamento estrutural em que, uma vez mais, se prometia o fim do túnel para os sofrimentos guineenses. Ele escreve: “A tendência para a regressão económica em África não é apenas o resultado de má gestão interna. É também a prova factual, translúcida e vibrante do falhanço da ajuda internacional como mecanismo de desenvolvimento. Uma realidade reconhecida, mas que não tem sido alterada por conveniência de muitos”.

Neste ambiente geral cabem os problemas estatutários dos agentes coloniais, o uso de expressões como “mufunesa” (uma associação entre o estranho e o sobrenatural para anunciar o advento de um desastre ou o fatalismo de um azar), a corrupção e o arrivismo, o sentimento de que o peso do clã se sobrepõe à vontade individual, o uso do amor ácido em torno de datas ou acontecimentos ícone. A tal propósito, a crónica “Aos mártires do Pindjiquiti” é elucidativa. Há um descrente e um desgraçado sobrevivente, um antigo combatente da liberdade da pátria, Mbunhe, que encontra o refúgio na estátua dedicada aos mártires do Pindjiquiti. O ambiente é de caos, o Pindjiquiti é um estaleiro permanente de obras inacabadas. O monumento é um punho preto estilizado “que qualquer peão menos avisado da história recente do país confundirá com toda uma série de formas”. A prova aprovada de que os guineenses vivem indiferentes a este punho erguido é que ele vive na base do monumento e ninguém o incomoda. O autor observa: “Já ninguém se lembra dos mártires do Pindjiquiti. Agora estamos em democracia. O que conta é quem é que vai ter mais casas ou carros. Mbunhe não tem nem uma coisa nem outra e ainda por cima começaram as chuvas. Nos primeiros dias de Agosto chove sempre torrencialmente e o punho erguido não poderá servir de refúgio senão aos grilos que invadem Bissau”.

São histórias que desvelam até os triunfos que se transformaram em desastres. É o caso da Cicer, a cerveja que os guineenses se orgulhavam: “Os cooperantes gabavam a nossa cerveja, e nós, em coro, dizíamos que era feita a partir de arroz – como tudo na Guiné-Bissau – e tinha uma água de qualidade superior, a do Alto Bandim, onde a fábrica está instalada. Na altura, a Cicer tinha tudo: a melhor oficina do país, o melhor serviço de pessoal, o melhor jardim da cidade, a melhor contabilidade… a Cicer começou a perder influência quando se abriram mais fábricas, até uma de montagem de automóveis Citröen. De repente, já não eram só os produtos da Cicer que nos faziam orgulhosos, era uma série de outras coisas que contribuíram para que a nossa dívida externa passasse de zero a três vezes o produto nacional bruto. Uma dívida também ela revolucionária, já que só há três ou quatro países no mundo que se atreveram a chegar tão alto”. Por vezes é iconoclasta, como quando fala da praça principal dedicada aos heróis nacionais. Ridiculariza os falsos políticos democráticos que não têm substância nem visão. Não tem clemência ao apresentar jovens sonhadores cujas esperanças estão traídas pelo lado mais negro da sociedade de consumo. Bissau aparece suja ou encardida, tudo ao abandono, desapareceu a iluminação, os escroques vivem impunes. O choque cultural tem amplas dimensões, ele estiliza um Chico mulato, de cabelo fininho que cultivava a sua identidade como mulato assumido, deste modo: “Se lhe perguntavam sobre a sua nacionalidade dizia ser guineo-luso, se o interrogavam sobre a sua música preferida, era o afro-new-age e quanto à roupa usava um par de jeans com feitio de calças de bu-bu, com fundinho, feito por um costureiro do Cupelon de Baixo. O seu sonho era abrir um café-concerto no Pilun, zona quente de Bissau, onde os fast-foods de carne de cabra assada, na berma da estrada, abundam. Tinha também decidido introduzir um cocktail de rum de cana-de-açúcar com sumo de mandiple, fruto exótico até em Bissau. Quanto a aperitivos, incluía, entre outros, um pastel feito como o de bacalhau, mas com a variedade local de peixe seco”.

O leitor agora faça o resto, este prodigioso livro “Corte Geral” ainda se pode obter nas livrarias. Carlos Lopes não é só uma figura de proa das Nações Unidas, é um grande escritor da língua portuguesa. Percebe-se o seu desalento, o seu chiste, a sua toada ácida. Homem cultíssimo, sabe muito bem que a Guiné foi a primeira colónia moderna do mundo. Aqui aconteceu uma guerra que levou ao arrasamento do último império colonial e que sufragou a democracia e a liberdade em Portugal.

Nessa Guiné, o comportamento dos combatentes foi heróico, em 1974 ninguém esperava que tantos sonhos fossem levados pela torrente das lamas que acodem na época das chuvas. Sim, é muito importante ler Carlos Lopes para perceber quais são os caminhos, as práticas, os procedimentos que urge corrigir. A Guiné merece mais pelo que ajudou a mudar Portugal.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 31 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6811: Notas de leitura (139): Contos Mandingas, de Manuel Belchior (Mário Beja Santos)

Vd. último poste da série de 1 de Agosto de 2010 > Guiné 63/74 - P6814: Notas de leitura (140): As elites militares e as guerras de África (Manuel Rebocho)

1 comentário:

Anónimo disse...

Estes escritores modernos dos PALOP, alem de se lerem muito facilmente, e se exprimirem tão facilmente, embora muitos sejam simultaneamente portugueses, demonstram a mesma desenvoltura que os jornalistas e escritores já demonstravam os antigos do tempo colonial. Consideravam-se mesmo preparados ao nível dos melhores a nível nacional.

Com uma diferença que se notava nos angolanos daquele tempo.

É que os escritores, poetas e jornalistas angolanos, estavam a criar uma maneira própria, e bem distinta quer de Portugal como do Brasil.

Que era o caso de Agostinho Neto, Luandino Vieira, Ernesto Lara, filho, Óscar Ribas, que muitos eu desconheço ou não me lembro,pois eu não ia alem dos jornais e revistas e conversas de café.

Sem falar na maneira no linguajar e no calão, que penso que neste caso continua a aumentar a diferenciação.

Agora infelizmente para esses paises, a maioria dos actuais escritores e gente universitária, vivem mais na diáspora, o que não acontecia antes da(s) guerra(s).

Antº Rosinha