domingo, 25 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6782: Notas de leitura (134): Invenção e Construção da Guiné-Bissau, de António Duarte Silva (1) (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 22 de Julho de 2010:

Queridos amigos,
É uma obra de grande importância, é um trabalho científico, onde o nosso blogue é regularmente citado na bibliografia.
Para se entender o aflitivo presente da Guiné-Bissau, é extremamente útil embarcar nesta viagem, até mesmo conhecer as normas constitucionais do país.


Um abraço do
Mário


A Guiné entre o século XIX e a actualidade:
Para entender melhor estes mais de 2 séculos de esperança adiada


por Beja Santos

Não hesito em dizer que o estudo Invenção e Construção da Guiné-Bissau (por António Duarte Silva, Edições Almedina, 2010) é de leitura obrigatória, mais não seja para os que quiserem perceber quais as raízes e a estrutura do mal-estar da identidade de um país permanentemente desencontrado (e desencantado consigo próprio).

António Duarte Silva é um especialista com créditos firmados. Em 1997, publicou o livro A Independência da Guiné-Bissau e a Descolonização Portuguesa, centrado no período que vai dos primórdios do processo de declaração unilateral de independência até à entrada formal da direcção do PAIGC em Bissau, a 19 de Outubro de 1974.

O presente livro problematiza a fundação e a identificação da Guiné-Bissau. Pegando na bússola do autor, parte-se da instalação da colónia, no princípio do século XX, acompanha-se a mudança da capital para a Bissau e refere-se a nova “escola colonial” promovida por Marcello Caetano e Sarmento Rodrigues, durante a década de 1940. Depois, aprecia-se o alcance da conversão da Guiné em província ultramarina, passam-se em revista as primeiras manifestações nacionalistas bem como as medidas portuguesas para impedir a “subversão” na Guiné, procurando medir as consequências do “massacre do Pindjiquiti” (o autor justifica por que é que se deve dizer Pindjiquiti e não Pidjiquiti, como habitualmente dizemos). É aqui que começa uma nova fase da luta política que irá concluir com o processo da independência.

António Duarte Silva é técnico superior do Tribunal Constitucional e ex-professor da Faculdade de Direito de Bissau. Daí o estudo aprofundado que faz das diferentes Constituições bissau-guineenses desde a Constituição originária (de 24 de Setembro de 1973 ou do Boé) à actual terceira vigência da Constituição dita de “1993”. Vejamos, em síntese, o que nos propõe este admirável estudo.

Primeiro, a herança do século XIX, quando a presença portuguesa na Guiné, embora antiga, se mantinha muito reduzida, circunscrita à Praça de Bissau, aos presídios de Cacheu, Geba, Farim e Ziguinchor, ao posto de Bolor e à ilha de Bolama. O território nem sequer tinha nome próprio (era indiferenciadamente tratado por Costa da Guiné, rios da Guiné do Cabo Verde, Senegâmbia…). A “ocupação efectiva” decorre dos ditames da Conferência de Berlim (1885) e na sua sequência delinearam-se as fronteiras pela Convenção relativa à delimitação das possessões portuguesas e francesas na África Ocidental, assinado em Paris a 12 de Maio de 1886. Portugal perdeu o “chão” do Casamansa incluindo Ziguinchor.

Em 1879, a Guiné passou a província independente, cessando a sua subordinação administrativa e militar relativamente a Cabo Verde. A sede do governo instalou-se em Bolama. O autor dá-nos um quadro da governação da Guiné após o advento da República e os principais traços da organização político-administrativa e a composição da hierarquia colonial. Como é sabido, as “campanhas de pacificação” foram dadas como concluídas na década de 1930. O século XX vê emergir um surto de vida intelectual centrado em Bolama.

Nessas décadas, surgem obras de grande importância para a literatura colonial como Mariazinha em África de Fernanda de Castro e Auá de Fausto Duarte.

A mudança da capital para Bissau, em 1941, imprimirá um novo rumo aos acontecimentos. A cidade de Bissau irá ganhar uma fisionomia ”europeia”, passa a ser sede política, de negócios, será aqui que Sarmento Rodrigues lançará as bases da Guiné como “colónia modelo”. Esta viragem e a obra de Sarmento Rodrigues são analisadas com detalhe pelo autor. O Marcello Caetano ao tempo ministro das Colónias era um africanista convicto, inequivocamente a favor da promoção de autonomia administrativa e do desenvolvimento económico-social das colónias, recomendando aos seus quadros atenção à ascensão das forças anti-colonialistas, especialmente norte-americanas.

Sarmento Rodrigues estará no centro desta grande mudança do sistema colonial. O seu nome aparece associado a dois actos emblemáticos na legitimação da colonização, a saber: o combate à doença do sono na Guiné e às Comemorações do V Centenário da Descoberta da Guiné. Irá crescer o número de “civilizados” face à categoria dos indígenas. No campo cultural, assiste-se à criação do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, organiza-se o museu da Guiné e surge a publicação Boletim Cultural da Guiné Portuguesa, a mais importante publicação existente até ao fim do período colonial. Sarmento Rodrigues desenvolveu o aparelho administrativo recorrendo a uma elite metropolitana e a uma administração de cabo-verdianos e mestiços.

Em 1947, Caetano é substituído no Ministério das Colónias e operam-se importantes mudanças na Guiné. António Duarte Silva aborda com meridiana clareza a perda de equilíbrios instalados pela política de Caetano e a inflexão para um tipo de colonialismo mais vocacionado para a gestão e para o comércio. Acerca desta matéria, o autor chama a atenção para a importante reunião extraordinária do Conselho Ultramarino que se realizou em Outubro de 1962, na altura em que Sarmento Rodrigues era governador de Moçambique. O que estava em causa era uma reestruturação político-administrativa que abria as portas ao federalismo. Escusado é dizer que a linha integracionista da política colonial foi quem ganhou.

Por essa época começa a falar-se muito nas teses do luso-tropicalismo, da responsabilidade de Gilberto Freyre. Este ilustre estudioso brasileiro formulara o conceito de luso-tropicalismo a partir de características particulares da colonização portuguesa do Brasil. É Sarmento Rodrigues quem vai convidar Gilberto Freyre a percorrer todo o Império. Parecia que o pensamento deste mestre brasileiro se prestava a ser o pano de fundo da acção reformista empreendida por Adriano Moreira enquanto ministro do Ultramar.

Freyre irá mostrar-se desiludido com debilidade dos estudos portugueses sobre o tropicalismo. Por seu turno, Teixeira da Mota irá dizer que não considerava o luso-tropicalismo adequado ao caso da Guiné já que a população civilizada era mínima (cerca de 0,3 % do total e apenas um quarto dela era constituída por brancos.

Com a chegada da guerra, em 1961, a “política de defesa” levou ao abandono das teses luso-tropicalistas no discurso oficial português. No fundo, segundo Freyre havia uma maneira dos portugueses se comportarem em todo o mundo, adaptando-se, assimilando-se, pondo a cultura e a civilização ao serviço dos outros. Sem descurar do interesse que tais teses podiam ter para a compreensão do colonialismo português, o que se passara na Guiné estava frontalmente em oposição às teses preconizadas luso-tropicalistas quanto à presença portuguesa e o seu intercâmbio com as populações locais.

O nosso blogue tem razões para se sentir orgulhoso com este trabalho: o investigador António Duarte Silva   releva-se profundo conhecedor do que aqui se escreve, cita-nos abundantemente na bibliografia. Somos um blogue que os investigadores acompanham e invocam, tal a originalidade de depoimentos, o ineditismo de fontes e a sinceridade dos testemunhos. Para que conste.

(Continua)
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 23 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6776: Notas de leitura (133): Desertor ou Patriota, de David Costa (Mário Beja Santos)

8 comentários:

Luís Graça disse...

O autor, que também é meu colega da Universidade Nova de Lisboa (na sua qualidade de professor auxiliar convidado da Faculdade de Direito), mas que eu não conheço pessoalmente, teve a gentileza de me telefonra, há coisa de mês e tal, a anunciar a saída do seu livro... Fazia questão, além disso, de se encontrar comigo para me eferecer um exemplar autogafado como forma de agradecimento pelo papel que o nosso blogue também teve na sua feitura, como fonte de documentação.

Infeliznmente esse encontro ainda não se realizou, por falta de acerto das nossas agenda, mas prometo contactar o autor depois das férias.


Obrigado ao António Duarte Silva por ter sabido utilizar o nosso blogue como fonte de informação e conhecimento, num domínio para nós inesperado, o direito constitucional. E obrigado também ao nosso amigo e camarada Mário pela recensão da obra.

Tabanca de Candoz, Paredes de Viadores, Marco de Canaveses.

Antº Rosinha disse...

Mário e Luis, está visto que quem queira compreender a "guerra de libertação", ou a "guerra colonial", ou "a guerra de Áfria", ou a "guerra da descolonização", seja escritor ou estudioso, nacional ou estrangeiro, já recorre a este blog.

Que quer queiramos quer não, lê-se aqui a guerra das madrinhas de guerra, a guerra das lavadeiras, a guerra da psico-social, a guerra das rações de combate, a guerra das minas...a guerra que Salazar "aceitou" fazer.

E essa guerra, que durou 13 anos chamavamos-lhe, enquanto ela durou, "guerra do ultramar".

Estou convencido, que ao escrevermos sem complexos e chamar as coisas pelos nomes, é que o blog de Luis Graça é tão acompanhado.

A guerra do PAIGC/PAICV, e dos outros movimentos da Guiné e das outras ex-colónias, ainda não foi analizada e debatida nem por historiadores nem pelos que nela participaram.

E não é por falta de gente ainda viva que tenha participado nela que isso não acontece.

Muito menos por ileteracia de guineenses e outros.

Vou tentar receber à cobrança este livro d Duarte Silva.

Anónimo disse...

...
«entrada formal da direcção do PAIGC em Bissau, a 17 [?] de Outubro» de Mil Novecentos e Setenta e... Sete?!

João dos Santos

Carlos Vinhal disse...

Muito obrigado ao leitor João dos Santos que chamou a nossa atenção para a incorrecção da data de entrada formal da direcção do PAIGC em Bissau, que como é lógico foi logo em 1974 e não passados três como por lapso se escreveu.

Carlos Vinhal

Anónimo disse...

Carlos Vinhal,

Grato pela correcção ao ano.
No entanto, como a data [dia] não foi ainda corrigida, aqui fica a informação completa e fidedigna: dia 19 [dezanove] de Setembro de 1974.

Cpts,
João dos Santos

Anónimo disse...

... 1ª forma: dia 19 (dezanove) de Outubro [Outubro!] de 1974...

(ass: João dos Santos)

Carlos Vinhal disse...

Caro João dos Santos
Está rectificado.
Mais uma vez obrigado pela sua colaboração.
Carlos Vinhal

Anónimo disse...

... citando:
– «Uma multidão compacta enchia a antiga Praça do Império e apinhava-se ao longo das ruas. Ao som de matracas dançam grupos de mulheres acenando lenços. Irrompem, vestidos de túnicas de tons delicados, conjuntos musicais de coras e balafos. Uma gritaria enorme faz-se ouvir quando surge na praça o primeiro tanque: NINO! A multidão aclama os seus heróis e obreiros da Revolução, Luís Cabral, Aristides Pereira, etc. A festa dura até de manhã. Junto do palácio, guerrilheiros e povo cantam e dançam toda a noite.»
(in "Na Guiné com o PAIGC", pp.27/8; ed. autora*, Lisboa, 1975)

* Georgette Emília