sexta-feira, 23 de julho de 2010

Guiné 63/74 – P6779: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis) (5): Só à pedrada

1. Mensagem do nosso camarada José Martins com data de 19 de Julho de 2010:

Caros amigos e camaradas
Segue mais uma «Divagação de reformado», do nosso amigo e camarada Coronel Pacífico dos Reis.

Um abraço
José Martins


DIVAGAÇÕES DE REFORMADO

5 - Só à Pedrada

Um dos grandes meios para divagar, nos tempos que correm, é a internet. Não só pelas beldades que vão aparecendo no pequeno ecrã dos portáteis, mas também pela avalanche de informações que nos é debitada todos os dias. No meio dessa catadupa aparece um extenso anedotário figurativo do pulsar social dos diversos países. É o caso paradigmático da estória que ocorreu na “Internete”, em castelhano, que é o reflexo do que se passa na nossa sociedade. Passo a contar, Um ladrão, de cara tapada, abordou um cidadão de “uma certa idade” e exigiu-lhe o relógio. Verificando que era uma imitação barata de um “Rolex” invectivou o ancião e pediu-lhe a carteira. O pobre cidadão deu-lhe a carteira, uma imitação barata de “Pierre Cardin”, com uns míseros cinco euros no interior. O ladrão ia entrando em apoplexia e disse-lhe: - Como é que só tens isto na carteira? O pobre velho respondeu-lhe: “É verdade que tenho pouco, sou coronel reformado!” Ao ouvir isto, o ladrão tirou alegremente a máscara e disse – “Coronel! E de que curso é que tu és?”

Esta anedota corre em Espanha, onde os coronéis ganham três vezes mais do que em Portugal, têm melhores condições sociais e os artigos nos supermercados são muito mais acessíveis que os nossos Continentes, Pingos Doces, Jumbos e similares.

Realmente a nossa geração é bastante azarada. Tivemos uma infância pós-guerra, com todas as limitações daí resultantes. Uma juventude marcada pela pseudo-didatura. Uma idade adulta na guerra do Ultramar. E agora, no final da vida, temos o espectro de ficarmos completamente limitados devido ao estado a que chegou o nosso País, resultante da má gestão, corrupção, falta de profissionalismo de alguns dirigentes que governaram e governam este Portugal. Precisamos somente de profissionais honestos em todos os níveis sociais.

Foto de alguns elementos da força de recuperação. (DR)

Adiante. Passemos às recordações de outros tempos.

Na nossa Companhia, os “Gatos Pretos”, muitas vezes tínhamos uma falta de comunicação, tantos os dialectos que se falavam. Para complicar, tínhamos muitas das vezes que falar em francês pois, devido à fronteira com o Senegal, alguns senegaleses vinham cumprir o serviço militar à Guiné. Tinham farda de “borla”, ganhavam bem comparativamente com a restante população e a guerra era coisa que lhes estava no sangue.

O nosso apontador do morteiro 81 era um caso típico. Como comandante, tive que aprofundar o meu francês, que aprendi no Colégio Militar, para lhe dar direcções de tiro. Sucedeu que, durante uma missão de bombardeamento à zona do Boé, um T6, por falha do motor, despenhou-se a cerca de dez quilómetros do nosso aquartelamento de Canjadude. O piloto foi retirado por meio héli, mas subsistia o problema de recuperação do motor. Recebemos uma mensagem para efectuar, com urgência, a recuperação do motor. O problema que se me deparava no momento resultava da falta de dois pelotões, por terem ido fazer uma coluna de reabastecimento ao Gabu. Assim, logo que chegaram os mecânicos da Força Aérea, arrancamos com duas viaturas e muito poucos militares, alguns até dos serviços de apoio como a secretaria e cantina. Juntei-lhes o apontador senegalês com a sua arma. Ao chegarmos ao local estabeleci o perímetro e coloquei o morteiro no centro do mesmo. No meu melhor francês indiquei os objectivos a bater, nas direcções prováveis de um possível ataque In, que poderia vir explorar a queda do T6. Virei costas e dirigi-me ao avião acidentado para controlar os trabalhos em curso. Ao chegar ao local ouvi uma “saída de morteiro”, indicador certo de que vinha uma granada a caminho. Gritei ao pessoal para se abrigar e pouco depois ouvi uma explosão ao longe. Tal facto surpreendeu-me, porque os “turras” não costumavam falhar quando lançavam os seus presentes de 82. Corri para o nosso morteiro e constatei que o nosso bom senegalês percebera muito bem quanto aos objectivos, só não tinha percebido que tinha de ficar em “stand by”. Claro que tudo se resolveu e conseguimos recolher o motor do T6 em tempo recorde e sem acordar o In.

Foto do motor recuperado, em cima da viatura. (DR)

Esse mesmo senegalês, quando atacaram o nosso aquartelamento e os turras foram ao arame e tentaram entrar pela área da tabanca, conseguiu, sem aparelho de pontaria e fazendo quase tira na vertical, enfiar uma salva de cinco granadas entre as duas fiadas de arame farpado, que os fez desistir do intento. Deixaram alguns restos humanos mesmo junto à fieira de arame farpado, o que demonstrou que ele trabalhava melhor sem as minhas indicações em francês.

Quem nunca esteve na Guiné talvez não compreenda que se possa passar sede. Na zona do Gabu, na estação seca, todas as vias fluviais pequenas desapareciam e a bolanha ficava seca e gretada. A nossa companhia ia buscar água a uma ribeira que passava a cerca de cem metros do aquartelamento. No tempo das chuvas era um rio portentoso, onde até se podiam pescar lagostins, na época seca desaparecia.

Já no final da época seca começamos a fazer racionamento de água. Ninguém tomava banho, toda a água era para beber e fazer comida. No entanto, a estação seca prolongou-se e já nem havia água para fazer comida. Já nem ligávamos ao cheiro que todos emanávamos. O dilema do comandante, sobre se havia ou não de pedir reabastecimento de água por héli, começava a pesar-me. Decidi-me e sentei-me na minha secretária (feita de caixotes de sabão) para redigir uma mensagem relâmpago. Estava a escrever quando ouvi uma gritaria no exterior do armazém de mancarra que nos servia de abrigo.

Saí para o exterior e julguei que estava tudo doido. Só via pessoal em cuecas, com barras de sabão na mão a apontar para oeste. Olhei e vi, com espanto, uma parede negra de água a caminhar em direcção do quartel. Só então me apercebi que tinha começado a estação das chuvas e que ela vinha em nossa direcção. Ainda deu tempo para ir buscar o meu sabão e desistir da mensagem relâmpago.

Agora começo a pensar em tudo o que passámos, todos juntos, e julgo que para nós eramais fácil a nossa missão ser levada a bom termo, por estarmos a defender uma parte integrante do Território Nacional. Ganhávamos mal, tínhamos dificuldade na alimentação, tudo junto com as agruras do clima e depois ainda tínhamos os “turras” para “cuidar”. “Turras” que tinham melhor armamento do que aquele que nós usávamos. Mas defendíamos a Pátria. Todos nós.

Agora é muito mais difícil. Como vamos explicar aos nossos militares que vão para o Afeganistão, Iraque, Líbano, Kosovo, etc, que estão a defender a Pátria? Ainda por cima com um corte orçamental de 40%. Será que vão defender a dita civilização ocidental à pedrada? Haverá dinheiro para pedras?

Notas:
1 – O texto também foi publicado na revista ASMIR de Mar/Abr 10.
2 - Na revista as fotos estão atribuídas ao ex-Furriel de Trms José Martins. Não é possível, já que na altura em que foram tiradas as fotos, o mesmo era o “Comandante de Canjadude” por ser, na altura, o militar com maior graduação no aquartelamento, pelo que as fotos seguem com DR (Direitos Reservados)



RELATÓRIO DA OPERAÇÃO “RECUPERAÇÃO” EM 22FEV69

01. Situação Particular

A Unidade encontra-se destacada em Canjadude com 02 Grupos de Combate, conjuntamente com a CART 2338, com um efectivo de 03 Grupos de Combate. Tem esta Unidade um destacamento em Cabuca com 1 Grupo de Combate e em Nova Lamego 1 Grupo de Combate.
(1 Grupo de Combate da CART 2339 e 1 Grupo de Combate da CCAÇ 5, assim como as viaturas pesadas, encontravam-se empenhadas numa coluna de reabastecimento a Nova Lamego, com inicio em 22 e termo em 23FEV69, ao fim da manhã)

02. Missão da Unidade
Montar a segurança à equipa da Força Aérea que iria recuperar o motor do T6 em 14151200 A1.

03. Força Executante
a) Capitão de Cavalaria Pacífico dos Reis

b) 1 Grupo de Combate da CART 2338 – Furriel Grosso
    1 Grupo de Combate da CART 2338 – Furriel Raposo
    1 Grupo de Combate da CCAÇ 5 – Alferes A. Sousa

c) 3 Grupos de Combate

d) Flanco esquerdo 1 Grupo de Combate da CCAÇ 5; flanco direito 2 Grupos de Combate da CART 2338.

e) 1) 3 Carregadores nativos e 1 guia a cargo da CART 2338.
    2) 2 Granadas de mão defensivas e 1 granada de mão ofensiva por homem; 2 elementos com dilagrama por grupo de combate, 1 Morteiro 81 e 1 Metralhadora Pesada BREDA.

3) -----------------

4) Reforço de 3 cunhetes de munições 7,62 mm; 10 cunhetes de Morteiro 60; 10 cunhetes de LGF.

5) -------------------

6) Material de Transmissões:
34 Onkyos
1 PRC-10
Telas

04. Planos Estabelecidos
Fazer uma coluna com os 2 Unimogs existentes com guarda de flanco até à zona onde se encontrava o T6. Nesse local fazer protecção circular ao avião. 1 Grupo de Combate sobre a estrada. 2 Grupos de Combate em redor do avião.

05. Desenrolar da Acção
Partiu-se de Canjadude em 221630FEV69 tendo a coluna chegado junto do avião, que se encontrava a cerca de 10 Km de Canjadude em 230830FEV69, tendo durante o caminho sido feito o que estava planeado. Junto do avião fez-se a segurança conforme estava planeado. O pessoal técnico da F.A. chegou em 220945FEV69, tendo começado a trabalhar na recuperação. Foram recuperadas todas as peças de interesse, inclusive o motor. Às 13H00 fez-se a destruição do aparelho por meio de explosivos. Chegamos a Canjadude em 221430FEV69.

06. Resultados Obtidos
Recuperou-se as peças essenciais do T6 e o motor

07. Serviços
a) 1 Ração de combate;
b) Água da fonte de Canjadude
c) 1 Auxiliar de enfermeiro e 1 maqueiro.
08. Apoio Aéreo
T6 e Helicóptero canhão depois de chegarem os técnicos da FAP, portanto às 09H45. Antes não houve apoio.


09. Ensinamentos Colhidos
Nada.

10. Diversos
Nada.
__________

Notas de CV:

- José Manuel Marques Pacífico dos Reis, Coronel de Cavalaria Reformado, ex-Comandante da CCAÇ 5 (Gatos Pretos), Canjadude, 1968/69

- Vd. último poste da série de 15 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 – P6395: Divagações de reformado (Pacífico dos Reis)(4): Politicamente incorrecto… (José Martins)

2 comentários:

Anónimo disse...

Estimado Coronel, Pacífico dos Reis


É sempre com imenso prazer que leio as suas crónicas, que narram situações e momentos passados em Canjadude, na nossa CCAÇ. 5. É verdade que vivemos lá, circunstâncias por vezes difíceis, nos cinco meses que estive com o meu Capitão na altura, eu tinha 21 anos. Eu recordo alguns episódios:

Para o meu pulsar e segundo a minha percepção, o mais dramático foi sempre a alimentação. Foi terrível, para mim, ao ponto de no dia 22 de Agosto, de 1969, em que o almoço era arroz com dobrada, que segundo a minha análise estava deteriorada e era intragável, pelo que me recosei a comer. Logo o Sarg.-de-dia me ameaçou, caso eu não comesse, que ia chamar o Capitão Pacífico dos Reis e que acabou por chamar e lá se encontrou uma solução para o caso.

Recordo também, creio que o Capitão Pacífico dos Reis fazia anos, não tinha nada de especial para a alimentação desse dia, e o nosso 1º Cabo Armando Figueiredo, tinha um galo que andava a alimentar e a engordar com tanto enlevo, que nem o deixava aproximar das galinhas. O Figueiredo, ao ver a situação do Capitão, vai daí, ofereceu-lhe o galo para poder fazer um arroz. Recordações do passado…

Quanto à água, muitas e muitas vezes eu durante a noite, juntamente com outro camarada, tirávamos a água do fundo do poço, à vez com balde, para tomar banho, poço que estava atrás do abrigo de transmissões. Era o que podíamos arranjar!

Um grande abraço e muita saúde para o meu Coronel.

José Corceiro

Anónimo disse...

Exmo Sr
Há pormenores no relatório que não percebo.Partiram em 221630FEV69. Chegaram junto do avião em230830FEV69. O pessoal técnico começou a trabalhar em220945FEV69. Então o pessoal da FAP chegou primeiro que a coluna? Estando o avião no meio da mata como chegou uma viatura pesada junto dele? Não havia aparelhos de força? Foi tudo á custa de braço?
Gostava de conhecer estas respostas.
Cumprimentos
Gabriel Tavares