segunda-feira, 12 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6722: Blogoterapia (152): Logo se vê... (Torcato Mendonça)

1. Mensagem de Torcato Mendonça* (ex-Alf Mil da CART 2339 (Mansambo, 1968/69) com data de 9 de Julho de 2010:

Caro Carlos Vinhal
Vai para ti e para o blogue.

Li ontem à noite e comentei. Hoje voltei a ler. Tinha mexido comigo.

O P6698 do José Corceiro, levou-me, outra vez aos bons, maus e vilões - como costumo dizer. Ora muitos Camaradas nossos, além dos três majores, um alferes e três, creio eu, militares, foram barbaramente assassinados. Houve outros, houve Quirafo, houve ataque selváticos a populações indefesas. Houve e calar ou, pior que isso, confundir e acusar as NT, algum elemento das NT e quantas vezes sem se saber ou dizer o porquê. Não desculpabilizo qualquer atitude de violência gratuita, quanto mais assassinatos ou violações. Mas de quantas mentiras é feita a verdade (como diz o escritor angolano Águalusa)

Ou o P6694 do Beja Santos. Aí refiro-me ao fuzilamento de um amigo, o Capitão Comando Zacarias Saiegh, homem de Abril.

Sobre Cabral e Nini nada se diz. Está escrito.

Suavizo com a Poesia do Mexia Alves que tem mais que se lhe diga e eu gosto e releio. Enfim... ainda bem que há pessoas assim.

Anexo um texto em bruto. Fui ao arquivo dos textos e escolhi esse. Cuidado com ele. Vai assim e logo' irei ler. Sem rede e sem titulo.

Abraço amigo do Torcato
E esta porra de guerra que se entranha. Há um poilão em Candamã e logo conto... pode ser um desejo de velho... terra vermelha e ardente...


Titulo, logo se vê

A folha de papel em branco, ecrã neste caso, as ideias a quererem sair e não saber o que fazer ou por onde começar. Galomaro, COP 7, Madina.

É mais fácil, antes de teclar, escrever no papel. Será assim ou é defeito da idade? Questão que tem a ver com a idade, certamente. Quando era mais novo escrevia no papel, emendava no papel e depois passava ao teclado. Não era teclado de computador. Nesse tempo, para onde a memória agora me levou, os computadores usavam cartões perfurados e eram uma sala para um computador. Os teclados das Remington, Olivetti e outras eram barulhentos, letras noutras posições que não QWERT. Se bem me lembro eram HCESAR ou AZERT e quando um fulano se enganava era uma maçada.

Mas porque escrevo isto? Para arrefecer as ideias ou dar tempo a que elas se arrumem? Não sei. Continuo a não saber por onde começar. Claro que o assunto se prende com o Blogue, a Guiné e os escritos geradores de controvérsia. Felizmente geradores de controvérsias. Que seria um blogue, com tantos tertulianos ou membros do dito, a pensarem todos de igual forma. Era um estado novo. Bem isso não. Se fosse um estado novo pensavam de forma diversa mas poucos, muito poucos, divergiam em opinião expressa.

Isto, esta conversa, é como os teclados de computadores e máquinas de escrever: todos se lembram e quase todos já se esqueceram deles. Como se esqueceram ou relembram certas situações, então vividas, de forma diversa.

Li o escrito de Luís Graça sobre Madina Xaquili e a sua CCaç 12 e, também sobre Madina e a Guerra Vista de Bafatá de Fernando Gouveia.

Fui até lá. Andei por lá, relembrando aquela zona, o que por lá fiz e vivi. Voltei a reler, mais ao correr do rato, vendo as boas fotos e abrindo a memória, desbaralhando ou arrumando ideias. Depois procurei na velha agenda de 69 o mês de Julho/Agosto.

Que idade teria eu? Vinte e quatro e dezanove meses de Guiné. Era isso. Andava por aqueles lados, emprestado à Companhia de Galomaro e ao Cop 7. No historial da minha 2339 nada diz. Não convinha.

As ideias entram, agora em catadupa. É a Guerra vista do Fundão. Sem o querer vi a guerra de forma diferente de LG ou de FG. É lógico que assim seja. Arrumo as ideias, bato ao teclado, falo da minha guerra e digo: – A vossa foi diferente. Digo ou não? Digo. Se foi.

Madina Xaquili ficou indelevelmente no coração de FG. Foi a viagem ao mato, a aventura, o perigo. É um amante da natureza e um homem com uma enorme saudade da Guiné. Foi lá agora, em turismo de saudade – designação foleira não é?... e lastimo que não tenha ido a Madina.

Mas porque mandaram um oficial de Informações naquela missão? Que o In estava mais activo depois do abandono do Boé (e margem esquerda do Corubal) todos sabíamos, excepto o Administrador de Bafatá claro.

Certamente malhas que o império teceu. Gostei da Série de “A Guerra vista de Bafatá” e das fotos claro. Bafatá, para mim, era o contacto com outro mundo, quase o contacto com a civilização. Raramente lá ia. Da Série relevo ainda a parte relacionada com o morteiro 60, a ausência? Do prato e só 16 (dezasseis) granadas o que, no meu ver dava manga de ronco. Para quem fez a maior parte da comissão por Madinas e similares é natural que assim pense. Erro meu, má fortuna…

Quanto à CAÇ 12, socorri-me da velha agenda de 69. Folheei até ter os meses de Julho e Agosto. Dia 22 de Julho lá está a ida a Madina Xaquili. Ia com a coluna levar militares e trazia as viaturas para Galomaro. A Tabanca de Madina era um buraco e, já lá, disse a alguém, creio que de T-shirt branca, que o lugar era mau etc, etc. Não ia adiantar muito pois o meu trabalho era outro. Mas bastava olhar para os abrigos, a defesa, a mata, o ter que fazer a aproximação a ela em terreno aberto. Tinha que ser dada uma volta urgente. Era o normal em muitas Tabancas. Fracas auto defesas, geralmente protegidas por Milícias. Aconteceu-nos semanas depois quando, devido aos ataques e outros problemas fomos destacados para Nova Cansamba. Aí estava um pelotão de uma qualquer companhia e não haviam Milícias. Grande parte da população estava armada mas nada treinada e a confusão era enorme. Defesa deficiente e nem arame farpado colocado para impedir avanço de nada. Quando foi colocado pelos rolos gastos, deu cerca de três quilómetros de perímetro. Grande Tabanca. Deixemos Cansamba para depois e voltemos à agenda. Diz lá, e reproduzo muito sinteticamente. Mês de Julho: - a 13 saída de Candamã e Áfia e regresso a Mansambo;- a 16 vinda para Bambadinca para seguir para Galomaro; - a 22 Madina Xaquili; - várias saídas e ataques vários em zona que nos dizia respeito como Candamã, Mansambo, Cansamba já na área onde nos encontrávamos e outros. Quinze dias a mostrar forte actividade do In, mesmo com o COP 7 e os Páras a trabalharem na zona. Trabalho não faltava e a 1 de Agosto fomos para a enorme Tabanca de Nova Cansamba. Na Carta do P6686 a Tabanca deve situar-se onde está a palavra Fontes.

Picada Afiá-Candamã

Uma confusão enorme naquela tabanca e, nessa mesma noite sofremos um ataque. Era o IN a mostrar estar informado e querer experimentar a nova tropa. Natural.
Aqui funcionou a nossa metralhadora pesada: Era, se visto agora, uma loucura. Funcionava do seguinte modo: cortava-se a tampa de um bidão de 200 litros totalmente e só metade do fundo. Lá dentro ia funcionar uma G3 em rajadas curtas.

Afirmo, mesmo hoje, que o barulho era tão grande que envergonharia a melhor vuvuzela. Um misto de loucura, gozo e dúvida. Que será aquilo dizia o chefe dos libertadores. Um tipo divertia-se assim… pois.

Depois deste ataque estivemos em trabalho normal. Aproveitamos para abrir valas, recuperar e construir abrigos e instruir os homens com armas distribuídas. Como no primeiro ataque foi disparado um dilagrama com bala real, causando a morte do atirador e ferimentos noutros, ensinamos a manusear essa arma também. Saímos a 15 de Agosto, passamos por Bambadinca e ficamos em Candamã. Fomos tentar encontrar a casa de mato do Mamadu Indjai. Encontrámos e, como não fomos convidados, deixámos isso para os pára-quedistas que no dia dezoito lá foram e partiram aquilo tudo.

Regressámos e o Coronel Hélio Felgas não nos deu o fim-de-semana prometido em Bafatá e o resto do mês foi o normal. De mais importante talvez uma ida ao Poidom sem resultados.

Não quero nem pretendo enaltecer a 2339 e, menos ainda, o Grupo de combate a que pertencia. Já eram rotinas e encaradas como normalidades. Anormalidade seria estar em Bissau, Bafatá ou Bambadinca.

A morte era também encarada com normalidade. Melhor não se pensava nisso. Medos todos têm. Se por azar um camarada tombava isso era uma sensação indescritível. Era a raiva, o vazio, um turbilhão de sentimentos e um homem vira fera. Era necessário ter cuidado e tentar manter a serenidade. Pouco tinha a ver com o inimigo. Aliás nunca vi matar ou matei qualquer inimigo. O IN sofria baixas e os elementos dos PAIGC eram abatidos ou eliminados. Baixas somente e não se usava a palavra morte. Seria uma violência tal designação. Mas disso não falo. Ouvia-se dizer isto ou aquilo mas nada de concreto sei. Logo não opino. Normalidades dentro da anormalidade.

Finalmente:

Concordo com a miséria e as dificuldades porque passavam as populações. Como foi possível estar cinco séculos e fazer-se tão pouco. Claro que antes de para lá irmos sabíamo-lo. Senão todos certamente muitos. Como sabíamos o que se passava com as nossas populações. Como era o Alentejo nos anos sessenta? Ou as Beiras? Sai fora do contexto.

Mansambo City > Vida nas Tabancas

Outro tema era o sexo e as NT. É tema a abordar com cuidado e tratado com, se possível, a, senão abertura total, a maior abertura possível.

Confesso que a principio foi difícil para mim. Depois foi encarado com naturalidade. Compreendo quem olhava à cor da pele, a juras de amor ou a fidelidades. Ultrapassei esses problemas com relativa facilidade. Eram estátuas de ébano, meigas e, ainda hoje ao passarem por mim sinto a saudade. Vidas.

Vivi de facto (sem acordo ortográfico – Chato). Por chato era necessário ter cuidado com eles. Principalmente de duas pernas e tiras doiradas nos ombros.

Vou continuar. Agora não. Agora vou dormir e espero sonhar com África. Era bom sonhar com Bafatá. Ia lá, raramente, e as esplanadas tinham gente à civil a beber e a rir, risos felizes e nós olhávamos uns para os outros e, passado um pouco, com mais ou menos esforço dos músculos da cara do riso esquecido, sorriamos e depois ríamos também, risos forçados e felizes os nossos risos.

Disseram-me que já não sabia viver em cidade. Eu e o bando que me acompanhava.

Talvez tivesse razão meu Coronel. Só que para vocês viverem felizes nas esplanadas, fornicarem debaixo das ventoinhas eu e muitos mais, muitos mais que eu vagueávamos como zombies por matos e savanas. Não só. E um dia voltámos e não sabíamos onde estávamos.

Para depois.

Fotos: © Torcato Mendonça (2010). Direitos reservados
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 24 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6637: Fotos falantes (Torcato Mendonça, CART 2339) (12): E as crianças, Senhor, por que lhes dais tanta dor?

Vd. último poste da série de 31 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6506: Blogoterapia (151): Senti que já era o tipo que podia ter uma conversa séria com o velhote (João Santiago)

6 comentários:

Fernando Gouveia disse...

Caro torcato:

Adorei este teu escrito não por dizeres que gostaste dos meus mas porque mais uma vez ouço falar de Bafata e de Madina Xaquili.
Não penses que a série "A Guerra Vista de Bafata" acabou. Longe disso. Também já ando a congeminar outra ida à Guiné e aí sim não deixarei de ir a Madina Xaquili.

Um abraço.

Fernando Gouveia

Joaquim Mexia Alves disse...

Camarigo Torcato

Com um texto destes fico apenas e só pelo abraço camarigo, entrando nas tuas recordações e vivendo-as com as minhas.

Anónimo disse...

"Por chato era necessário ter cuidado com eles.Principalmente de duas pernas e tiras doiradas nos ombros". Caríssimo Camarada e Amigo. Como sempre os teus textos (e algumas das "pérolas" como a citada)valem bem a longa viagem da Escandinávia à Lusitânia. Um grande abraco.

Anónimo disse...

Caro Torcato

Um grande abraço por mais este teu sentido texto.

Jorge Picado

Anónimo disse...

Amigo Torcato,
Obrigada por este momento de leitura.
Filomena

Anónimo disse...

Obrigada Torcato!

AOS poucos vou aprendendo a consultar o Blogue, a ler o que se escreve na hora, a compreender, ou tentar compreender o que dizeis e o que se adivinha.
O tempo guarda, o que vivênciasteis e a vossa memória.
Os motivos, interesses, etc, que fazem todas as guerras, são tramas difíceis de desvendar, mas...que vá para a guerra...quem quer a guerra!
Os outros... deixem-nos ficar!

Um abraço da


FELISMINA Costa