domingo, 11 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6716: Estórias do Juvenal Amado (29): Depois do meu regresso, ou o homem que num certo dia teve três mães

1. Mensagem de Juvenal Amado (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74), com data de 8 de Julho de 2010: 

Meus caros Luis, Carlos, Magalhães, Virginio e restante Tabanca Grande
É um estória que escapa ao que se entende por relatos da nossa passagem pela Guiné e os caminhos que lá nos levaram.
Qualquer dos factos podem com alguma alteração de redacção serem comprovados.

É a minha vida após o regresso, são os lugares que passei a frequentar e as pessoas que para além de alguns odores desconfortáveis, me acabaram por enriquecer.
Na aldeia de Boavista casei e morei mais de vinte anos, mas entenderei como legitimo a não publicação no blogue desta estória.

Um abraço
Juvenal Amado



DEPOIS DO MEU REGRESSO OU HOMEM QUE NUM CERTO DIA TEVE TRÊS MÃES

O Zé Lourenço quando regressou de Angola, foi a casa dos meus pais e admirou-se de eu ainda não ter regressado, uma vez que tinha embarcado para a Guiné primeiro. Penso que o meu atraso deu azo a que se fizesse conjecturas sobre algum castigo que eu tivesse por lá levado. Os vinte e sete meses custavam a engolir pelas pessoas conhecidas, não sendo poucas as vezes que a minha mãe, vislumbrou alguma dúvida nos olhos de quem por mim perguntava.

– Oh Dona Nita parece impossível tanto tempo! - pois é Dona X não sei porquê este atraso – primeiro diziam que eram 21 meses depois 24 e agora já ultrapassou os 25 e não há forma de saber com certeza, quando o mandam embora.

Não sabiam na verdade, que as rendições dos Batalhões se tinham atrasado a partir do momento em que o comando militar, tinha criado novos destacamentos na mata do Morés. Um Batalhão novinho em folha, foi pois atirado aos «bichos» e segundo se dizia só saíam das valas às vezes, tal foi a recepção que tiveram por parte do IN, que não gostou da intromissão. O meu amigo de infância José Eduardo, foi um desses felizardos mas a verdade, por nosso afastamento social e profissional, nunca com ele comentei esses episódios.

Mas voltando ao Zé Lourenço, que com quem andei na escola primária da Vestiaria, mais tarde fizemos a recruta e especialidade juntos, acabou por vir a casar com uma moça da mesma terra que a minha futura esposa. Por uma daquelas bocas que se querem engraçadas, acabei por não ir ao seu casamento.


O que não teve graça nenhuma

Quando regressei, fui convidado para todos os casamentos de jovens conhecidos. Ia eu já no 4.º ou 5.º disse em ar de gozo ao Zé, que deixava de falar ao próximo gajo que se casasse e me convidasse. Resultado ele não percebeu a brincadeira e não me convidou. No entanto a amizade manteve-se, as nossas filhas foram amigas, andaram na mesma escola, até também elas rumarem para os seus curso e suas vidas profissionais.

Nos bailes da Boavista, onde era local de namoro obrigatório e consentido, depois da série dançante com as respectivas namoradas, bebíamos uma cerveja e dávamos dois dedos de conversa, até que éramos interrompidos por aquelas personagens que existem em todos os lugares, que com o buxo sempre atestado de tinto, não tendo a quem pregar as secas, facilmente se aproximavam de nós, novos na terra a não querer causar má impressão.

Esta personagem era de todos bem conhecida.

Lá ouvíamos por vezes sem saber bem o quê, pelo o meio dos vapores do vinho, que para este apreciador mesmo quando já quase vinagre dizia muito sério, que ainda só tinha um leve pique.

Mas este homem era também dono de uma vontade muito própria, manifestava um critério nas amizades verdadeiramente surpreendente.
Tinha uma lista de convidados para o seu próprio funeral.

Assim mercê de lhe ser negado um copo de vinho, logo o responsável pela negativa, era riscado da famosa lista de convidados para o seu funeral, que era por sua vontade como atrás narrei, só para convidados a quem ele dava a honra dessa deferência.

Quanto a borrachos estava a pequena aldeia bem recheada. Famosos como o Zé da Ribera, os irmãos Júlio e Mário auto-intitulados como artistas da enxada, bem como alguns mais comedidos e discretos no acto de emborcar copos de 3.

Também largamente falado foi o senhor Coelho que todos anos enchia o barril, que acompanharia o seu próprio funeral. Dizia ele que se passava muita sede a empurrar a carreta pelo carreiro de pedras soltas, com subidas de fazer recuar os mais afoitos, desde a Boavista até ao cemitério dos Prazeres de Aljubarrota e que ele não queria, que tal acontecesse no seu enterro.
Assim se fez quando ele faleceu, o cortejo parou por diversas vezes no caminho, para os acompanhantes beberem do falado pipo um copito e alguns deles acrescentaram ao Ahhhh de satisfação estalando a língua, que a pinga não era nada má naquele ano.

Os enterros também eram famosos, por o padre se queixar de que só as mulheres é que apareciam na igreja. O cortejo fúnebre quando chegava ao largo da igreja, os homens ia recuperar das agruras da caminhada, numa taberna mesmo ao lado e deixavam para as mulheres, o piedoso cerimonial do corpo presente.

Motivo de muitas falas, foi um dia o Júlio resolver trocar os ditos copos de vinho, por copos de leite a acompanhar invariavelmente uma fatia de torta.
O facto deixou a Maria Augusta dona da taberna, café, mini-mercado sem fala e digo já, que era coisa difícil se não quase impossível.

Ficaram assim para sempre gravados para a posteridade, os dois acontecimentos.

Algum valor teve a troca que o Júlio fez, pois os outros já marcharam pelo tal caminho hoje arranjado e o Júlio ainda cá bebia o seu copo de leite há pouco tempo.

Mas voltemos ao Mário Gomes, que me tinha mais uma vez apanhado numa ida ao bar para beber uma cerveja.

Muito chegado a mim, perfumando-me com aquele bafo acompanhado de perdigotos, lá ele entendeu dar-me mais uma palavrinha para mal dos meus pecados.

Juro que não percebia nada do que ele dizia e ao mesmo tempo levantava a cabeça, a ver se alguém me salvava. O Zé ria-se a ver a minha aflição. Nisto a minha namorada percebeu - mais esse favor lhe fiquei a dever - e vem em meu auxílio, dizendo que estava a dar uma música para nós dançarmos.
Ele olhou para ela, fez um ar entre o meio alcoolizado e meio maroto, deitou-me para cima um bafo, que se eu fosse escanção rapidamente separaria por anos mais de cinquenta colheitas, abraçando-me, disse-me:

- Sabe o meu amigo, que logo no dia do meu casamento tive um prenúncio de que ia ser muito feliz?

Perante o meu ar incrédulo acrescentou.

– É que eu tive três mães nesse dia.

-Uma foi a minha mãe, que a chorar me chamou querido filho, a outra foi a minha sogra que me também tratou por filho e por fim a minha mulher, que às tantas da noite, também me disse ai filho!

Fui dançar, mas não parei de rir toda a noite e ainda falo nisso com o Zé.

Não me lembro de ter ido ao seu funeral, embora estivesse convidado.

Juvenal Amado
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6668: Estórias do Juvenal Amado (28): Ele voltará a crescer, ou a entrada na vida militar

2 comentários:

MANUELMAIA disse...

CARO JUVENAL,

PESSOAL DO COPO,CURTIDOS,COMO ESSES A QUE FIZESTE REFÊNCIA ,PORTUGAL TEM-NOS BEM DISTRIBUÍDOS.
ASSIM,LÁ PARA OS LADOS DA ZONA DE
BASTO,HAVIA UMA FIGURA TÍPICA QUE SISTEMÁTICAMENTE ANDAVA A "TROPEÇAR" LOGO PELA MANHÃ...

-NÃO TEM VERGONHA JÁ COM OS COPOS A ESTA HORA,SR.JOSÉ?

-COM OS COPOS,COM OS COPOS...
ATÉ PARECE QUE SOU SÓ EU QUE BEBO...
AQUI NA TERRA PRODUZEM-SE UMAS 400 PIPAS...
-TEM RAZÃO,É O QUE SE DIZ PARA AÍ...
POIS SE SE PRODUZEM 400 PIPAS E EU BEBO SÓ TRÊS,QUEM MAMA AS OUTRAS TODAS...

CURIOSAMENTE POR AQUELES LADOS A PIPA TEM NÃO OS 500 LITROS DA ORDEM MAS 550 OU 600...
AQUI PRODUZEM-SE POR ANO UMAS QUATROCENTAS PIPAS DE VINHO...
EU CÁ

Anónimo disse...

Caro Juvenal

Como eu me ri com a história!

Apesar de mulher, também tenho algumas histórias da minha terra que um dia hei-de contar e que recordo muitas vezes.

Apesar de provocar o desiquilibrio a vários níveis, está provado que o sumo da uva, também desperta em alguns apreciadores o seu sentido de humor.
O que vale é que o povo apesar de pobre é alegre.

Parabéns mais uma vez

A amiga:
Felismina Costa