terça-feira, 6 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6679: Controvérsias (92): A ficção e a guerra (Joaquim Mexia Alves)

1. Mensagem do nosso camarada Joaquim Mexia Alves*, ex-Alf Mil Op Esp/RANGER da CART 3492, (Xitole/Ponte dos Fulas); Pel Caç Nat 52, (Ponte Rio Udunduma, Mato Cão) e CCAÇ 15 (Mansoa), 1971/73, com data de 5 de Julho de 2010:

Meus caros camarigos editores
Escrevi hoje um texto sobre esta "conversa" à volta da ficção e da realidade, suscitada pelo texto do Mário Cláudio.

Como sempre publicarão se assim o entenderem, mas se me é permitida uma sugestão, a publicar seria agora, visto que depois deixará de ter sentido.

Mas vós é que sabeis "da poda"!

Um abraço forte e camarigo para todos do
Joaquim



A FICÇÃO E A GUERRA


Li com atenção todos os textos publicados na Tabanca Grande, bem como os comentários e, salvo melhor opinião, julgo haver um consenso que nos remete para que a publicação deste tipo de textos de ficção, deve ser perfeitamente identificada como tal, para que não haja confusões com a realidade, como tentarei explicar mais adiante.

Já foram publicados vários textos, (chamemos-lhe de ficção), neste nosso espaço, entre eles alguns meus e todos foram, ao que me lembro, perfeitamente identificados como tal, não fosse eu um dia ser confrontado com alguém que me dissesse na cara que eu tinha a mania de ter sido um qualquer “rambo”, ao lerem um texto meu que pretendia retratar humoristicamente algumas bravatas causadas pela imaginação.

Mas há também opiniões, com as quais eu comungo inteiramente, que afinal a ficção portuguesa sobre a guerra apenas retrata o lado negro da guerra, como se esse lado negro fosse uma realidade sempre presente e constante da actuação das Forças Armadas Portuguesas, o que não pode estar mais longe da realidade.

Os nossos camarigos que procedem com empenho à compilação de dados estatísticos sobre a guerra saberão com certeza quantas centenas de milhar de Portugueses combateram ao longo de treze anos nas três frentes de guerra.
Pergunto eu então, a quantas dezenas, (não se contarão com os dedos das duas mãos?), se podem definitivamente assacar tais práticas de barbárie em teatro de guerra?

Quero eu com isto dizer que não se deve falar do assunto?

Com certeza que sim, que se deve falar de tal assunto por muito que ele doa!
Os factos aconteceram, (embora talvez nem tantos porque se percebe que muitos são de “ouvir dizer”), mas ao representar a guerra apenas com estes episódios, insisto que se ofende a memória de tantos e tantos milhares, que obrigados ou de livre vontade, lutaram corajosamente, com a dignidade humana que é possível numa guerra desta natureza, ou em qualquer uma, claro.

E repito ainda que aqueles das gerações mais novas, (talvez nossos filhos, talvez nossos netos, talvez amigos de uns e outros), que possam ler estes textos sem uma perfeita noção de que são ficcionados, poderão ter uma imagem dos seus pais e dos seus avós que não corresponde minimamente à realidade, ainda por cima muitas vezes “ajudada” pela forma deficiente como esta parte da história é ensinada, e pelo labéu que em determinada altura a “política” lançou sobre os combatentes desta guerra.

E viram fotografias e reportagens em revistas estrangeiras, e ouviram dizer, e citam nomes, e logicamente acredito que aconteceram tais factos, mas porque é que raio também essas mesmas revistas, ou essas mesmas fotografias, não mostram o outro lado da guerra?

Porque é que a ficção há-de tratar exaustivamente tal assunto, e não retrata, insisto o outro lado da guerra?
Onde estão as fotografias, e as reportagens dos soldados, cabos, furriéis, alferes, capitães, (se calhar até os chamados oficiais superiores), se dedicaram no meio da guerra a ensinarem as letras, a ensinarem a escrever, a melhorarem as condições de vida das populações?

Não serão eles muitos mais do que os que praticaram os tais actos de barbárie?

Onde estão as fotografias, e as reportagens sobre os enfermeiros e médicos “militares” que empenhadamente vacinaram, trataram, fizeram partos, ensinaram regras básicas de higiene a toda uma população, melhorando as condições de saúde e o acesso à mesma?

Não serão eles muitos mais do que os que praticaram os tais actos de barbárie?

E onde estão as fotografias, e as reportagens sobre os militares que fizeram e protegeram colunas, apenas para levar arroz e outros mantimentos a Tabancas que deles precisavam, que fizeram poços e reconstruíram casas, que deram enfim do seu melhor, para dar uma vida melhor a essas populações?

Não serão eles muitos mais do que os que praticaram os tais actos de barbárie?

Não serão estes temas, (e apenas para citar estes), uma realidade também da guerra e por isso não mereciam também um tratamento literário de ficção que os retratasse?
Pois, provavelmente não teriam muita venda, e não serviriam determinados propósitos.

É verdade, meus camarigos, querer transformar a guerra de África que vivemos num repositório de atrocidades, sejam elas ficcionadas ou verdadeiras, não é mais do que querer dar dum todo uma imagem distorcida, que está muito longe de corresponder à realidade.
Já não é a primeira vez que se fala por aqui de “hitleres” e outros quejandos?
Então e não havia também os “stalines” de um lado e do outro?
Eu, por mim, estou tão longe de uns como dos outros, e “hitleres” e “stalines” sempre os haverá, mas não representam minimamente a humanidade, representarão sim a desumanidade que infelizmente também faz parte da humanidade.

Meus camarigos, este escrito já vai longo, mas quero que fique bem claro que não faço a apologia da guerra, (como cristão, condição indissociável de mim, sou totalmente contra a guerra), e que não afirmo que tudo correu maravilhosamente sem terríveis atitudes de parte a parte, mas afirmo, isso sim, que no cômputo geral as forças em presença, quer de um lado quer do outro, se portaram bem mais dignamente que as forças armadas dos países que se pretendiam “donos do mundo” no século XX, quer da “direita”, quer da “esquerda”, e que afinal não foram exemplo para ninguém.

Reafirmo ainda para terminar, que a minha questão não tem a ver comigo próprio, (tenho a consciência tranquila sobre o modo como me comportei na Guiné), mas com aqueles que olham para mim, para nós, como uma referência para as suas vidas, porque somos pais, avós, amigos ou simplesmente mais velhos.

A todos o meu forte e camarigo abraço
Joaquim

Monte Real, 6 de Julho de 2010
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 18 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6615: 20 Anos depois da Guiné, à procura de mim (J. Mexia Alves) (6): Sem Título 3

Vd. poste de 6 de Julho de 2010 > Guiné 63/74 - P6678: Controvérsias (91): Mário Cláudio e o debate, Açordas! (José Brás)

5 comentários:

antonio graça de abreu disse...

O Joaquim Mexia Alves vem colocar no seu próprio terreno questões fundamentais do nosso estar na guerra da Guiné.

Quem éramos, o que fizemos, o que fomos, o que somos?
Infelizmente os portugueses adoram os tiros no pé, mesmo quando os pés são poucos e os tiros quase sempre de pólvora seca. É o nosso nosso fado.
Isto tem alguma coisa a ver com o Mário Cláudio.

Leiam Miguel Torga,outro escritor premiado nos seus Diários III e VII:

"Enchi com frequência uma página de lamúrias quando na verdade estava cheio de força e alegria."

E

"Sou uma espécie de ruminante do sofrimento, encho-me primeiro dele e depois é que o saboreio."

Eu tenho um poema intitulado Nosso Fado, no meu livro "Cálice de Neblinas e Silêncios", Lisboa, Vega Ed. 2008, pag. 75. Assim

"Sufocar a alegria,
enredá-la em cintilantes roupagens de pranto
na viagem pelo logro aberto das palavras,
carpir no disfarce extremado da tristeza.
Ai, este gosto de fingir tantas penas,
de tão fingidas e falsas, verdadeiras!...
Ai, este fado tão magoado,
esta malfadada lamúria lusitana,
mesmo num tempo sereno,
com céu azul nos olhos
e girassóis na alma!"

Denegrir o esforço quase sobre humano das nossas tropas na Guiné?
Acho que não.
Branquear as atrocidades e os sofrimentos de uma guerra em que todos participámos? Acho que não. Exaltar as virtudes da excelsa pátria lusitana? Acho que não.

Então como é?

Por terras da Guiné, fomos todos muito mais bandos e bandos de pardais à solta, do que colónias de abutres e aves de rapina pairando gulosos sobre a carne dos nossos irmãos negros.

No complexo tecido de etnias na Guiné Bissau, porque somos hoje bem recebidos por aqueles tão pobres mas dignos povos?
Porque andámos por lá a cortar orelhas?
Ou porque, apesar de vivermos e fazermos uma guerra, 99,9% de nós saímos de lá em paz com aqueles povos, em paz connosco próprios?

Forte abraço,

António Graça de Abreu

António Martins de Matos disse...

Amigo Joaquim

Peço autorização para assinar por baixo do teu nome.
Um abraço
António Martins de Matos

Anónimo disse...

Caro Joaquim M. Alves.

As minhas felicitações pelo texto, que é o que eu penso sobre a nossa guerra na Guiné.

Focalizas o lado que deveria ser mais salientado, militares que construíram, educaram sararam, e protegeram populações com risco da própria vida, e lutaram com grande dignidade, sem serem devidamente reconhecidos.

Felizmente temos imensos relatos de camaradas nossos neste blogue, a testemunharem essa outra guerra menos visível, mas de grande significado.

Nem santificados, nem diabolizados, apenas e só combatentes que sempre puseram o que de melhor sabiam e podiam no cumprimento dum dever forçado ou voluntário.

É mais fácil bater em nós próprios, do que avaliar o nosso ex-inimigo, na guerra.

Um grande abraço

Manuel Marinho

manuelmaia disse...

CARO MEXIA ALVES,

É BOM QUE SE PARE PARA CLARIFICAR DE VEZ AQUILO QUE FOI A PASSAGEM DOS PORTUGUESES MILITARES ENTRE 63 E 74 PARA QUE,DE UMA VEZ POR TODAS ACABE ESSA TENTATIVA DE DENEGRIR QUEM POR LÁ ANDOU,AMESQUINHANDO UM PAÍS ENORME COMO FOI O NOSSO,E DANDO UMA IMAGEM FALACIOSA DA GUERRA...
TODOS NÓS OUVIMOS HISTÓRIAS MÍTICAS À VOLTA DE DETERMINADOS INDIVÍDUOS COMO UM TAL PISTOLAS DE MOÇAMBIQUE QUE IRIA DE CINTURÃO COM REVÓLVERES PARA O MATO...
MAS AS RISTÓRIAS MAIORITÁRIAS, REAIS,AS QUE TIVERAM PROTAGONISTAS SAÍDOS DE GENTE NORMAL,ANÓNIMA,QUE CONSEGUE DAR-NOS UMA VISÃO DA SUA VIVÊNCIA, SÃO NA SUA ESMAGADORA MAIORIA AVESSAS A ESSES ACTOS MÍTICOS DE HERÓI DE PACOTILHA...

TAL COMO REFERE O GRAÇA DE ABREU,
PORQUE SERÁ QUE OS CAMARADAS(E SÃO JÁ MUITOS...) QUE SE DESLOCARAM À GUINÉ NESTES ÚLTIMOS TEMPOS SÃO UNÂNIMES EM SALIENTAR A HOSPITALIDADE DOS GUINÉUS E A SUA ALEGRIA EM RECEBER-NOS?
SERÁ QUE SÃO MASOQUISTAS?
NÃO MEUS AMIGOS,DURANTE A NOSSA PRESENÇA CRIAMOS LAÇOS INDESTRUTÍVEIS QUE ATÉ MESMO OS ENTÃO INIMIGOS RECONHECEM.
LEIAM O CHERNO E ANALIZEM A SUA VISÃO DE MIÚDO DO TEMPO DE GUERRA...
SEM MEDO DE CORRER O RISCO DE SER DESMENTIDO POR QUALQUER "ANALISTA" DE PENSAMENTO ENVIEZADO ENTRE OS MUITOS DA NOSSA PRAÇA,"ARMADOS EM DEFENSORES DOS POBRES E OPRIMIDOS" TÃO TIPICO ENTRE DETERMINADAS CORRENTES IDEOLÓGICAS QUE GOSTAM DE PRODUZIR GRANDES DISCURSOS E DE SE OUVIREM A SI PRÓPRIOS,OUÇAM AS VOZES AVALIZADAS DE QUEM JÁ LÁ FOI UMA OU MAIS VEZES E RECEBEU DOS AFRICANOS GUINÉUS,NÃO O REPÚDIO E ÓDIO DE QUEM PUDESSE TER SIDO ALVO DAS BARBÁRIES QUE ALGUNS TANTO GOSTAM DE REFERIR,MAS ANTES O SORRISO,O ABRAÇO FRATERNO ENTRE CIDADÃOS COM UM PASSADO QUE ENTONCA EM ALGO COMUM,À GUIZA DE IRMÃOS VIVENDO AFASTADOS FAZ TEMPO...

LI O COMENTÁRIO DO ANTÓNIO MATOS.
POR ONDE TENS ANDADO?

ABRAÇO CAMARIGO AO CRIADOR DA
EXPRESSÃO E A TODA A TABANCA

MANUEL MAIA

Unknown disse...

Camarigo (palavra que só fica/soa bem em ti)
Mas quem conhece as atrocidades que fizemos que as descreva. Eu só conheci uma. Que já aqui descrevi no blogue: A exposição de um corpo (guerrilheiro provàvelmente)que durante um assalto a Catió foi morto, por acaso ou não, no dia dos meus 16 meses de comissão e colocado à porta de armas, por ordem do 2º cmdt., que posteriormente passou a 1º do BART 2865.
Infelizmente as fotos que fiz e distribuí por alguns amigos nunca chegaram ao destino. As "chapas" estariam com o Barrinhos (assassinado anos mais tarde) que foi quem ficou com o meu espólio fotográfico.
As coisas boas, como hoje, ninguém fala delas.