quinta-feira, 1 de julho de 2010

Guiné 63/74 - P6667: As nossas mulheres (10): Um pouco de mim (Ana Duarte)

1. Mensagem de Ana Duarte, viúva do nosso camarada Sargento-Mor Humberto Duarte, que foi Fur Mil Op Esp / RANGER do BCAÇ 4514, Cantanhez -1973/74.

Um pouco de mim

Sou Ana Duarte,  viúva de Humberto Duarte,  Ranger que esteve na Guiné no BCaç 4514. Em 2000 foi considerado DFA e em 2002 reintegrado nas FA, fez o curso de Sargento Ajudante e infelizmente partiu em Fevereiro, sendo na altura o Sargento-Mor mais antigo de todas as FA no activo.

Sou moçambicana, vim em 75, éramos seis irmãos, casa sempre cheia de adultos e miúdos. Em casa era sossegada só lia e fazia puzzles, na rua tinha a alcunha de turra ou chamuça, gostava de me sentar a ouvir os mais velhos e o descanso de subir muros e árvores era ouvir a conversa dos escuteiros mais velhos e tentar perceber porque aqueles rapazes tão bonzinhos quando iam pró norte fardados voltavam brutos. O primeiro contacto com stress pós-traumático, tinha eu 9/10 anos, foi com um dos tais rapazes que tinha boina vermelha e tinha estado lá em cima,  perto de Tete.

Lutei ao lado do Humberto para conseguir que ele fosse considerado DFA e depois reintegrado. Depois disso foram vários os camaradas que foram por nós ajudados a iniciar os seus processos. Muitas vezes era eu que,  nos almoços, jantares e na concentração do 10 de Junho,  lhe chamava a atenção para este ou aquele.

Conheci alguns que um ano estavam impecáveis e no ano a seguir eu notava qualquer coisa no olhar que me dizia que o stress acumulado durante anos estava prestes a estoirar; quantos tinham empregos estáveis, uma vida familiar que parecia impecável e de repente tudo desmoronava e normalmente ficavam sós!?

Não estou a criticar familiares porque sei por experiência que não é facil viver com alguém que tenha uma percentagem grande de stress de guerra e muitas mulheres e filhos não têm conhecimento de causa daquilo que vocês passaram, a maior parte das fotos que elas viram foi em poses ou em descanso, falar normalmente quem verdadeiramente passou não fala e depois são alcunhados de malucos, bêbados... Têm problemas com álcool, muitos têm, mas porquê?

Eu tenho amigos que até me aturavam, mas como se habituaram a eu aguentar tudo, agora sou eu que não sou capaz de chorar ou queixar-me à frente deles, são as desvantagens de estar durante 12 anos na retaguarda de alguém com 40% de stress de guerra,  sempre preocupado com os outros, sempre a querer ajudar, mas quando as coisas corriam mal tinha que explodir e o normal no ser humano é explodir com quem se gosta mais.

Tenho doze anos tão intensos que pessoas que viveram 40 anos juntas, não têm. Pessoas que não conheciam a nossa história, mas nos conheciam pessoalmente, agora ficam muito espantadas e há quem não acredite que só vivíamos juntos há 12 anos.

Tenho muitas histórias que talvez ajudassem mulheres que amem mesmo o seu companheiro, mas que lhes seja extremamente difícil por vezes aguentar quando por alguma razão há uma descarga de stress, mas ao mesmo tempo essas mesmas histórias lidas por quem não consiga perceber o que é o stress pós-traumático, podem servir para,  como tanta vez infelizmente ouvi, [criticae],  "eram uns assassinos e agora são bêbados, agressivos.."

Tinham que ser histórias filtradas por alguém competente, que eu não sou, pois eu rio-me delas e não é agora, porque quando passavam as crises e algumas foram bem grandes, eu falava com ele, ríamos juntos e muitas vezes ele acabava a dizer "eu não sei como me perdoas,  como aguentas" e eu a responder "percebo-te, gosto de ti e amo-te".

Conhecem o filme Nascido a 4 de Julho? Eu costumava-lhe dizer que era a vida dele,  só que em vez de vir em cadeira de rodas, a cabeça dele é que tinha vindo.

Em 1998 vivia sozinho numa casa com um cão, uma cadela e um gato, água e luz com ligação directa, despensa e frigorífico vazios, de manhã bebia água e fingia que era leite, jantava em casa de um camarada, de vez enquanto tinha dinheiro que umas "amigas" lhe davam, deitava as beatas pela janela para as ir apanhar de madrugada, desfazê-las, secá-las na cloche e fazer novos cigarros. A 28 de Fevereiro de 2010 morre em casa nos braços da mulher, sendo o Sargento-Mor mais antigo das FA no activo, depois de reintegrado por streess pós-traumático.

Fico danada quando me dizem,  como disseram ontem,  "se não fosse a Ana..." porque a partir do momento em que o conheci, percebi o que tinha, gosto dele e o amo, só faço aquilo que tenho de fazer, ele também fez muito por mim, amou-me e casei, porque ele quase me obrigou para poder ter as regalias que tenho.

Gostei das fotos dos monumentos aos combatentes, mas já está na hora de isso passar para o outro lado, sair dos blogues dos ex-combatentes, passar para a nova geração, entrar nas escolas, nem que seja naquele dia em que o neto ou filho chegam dizendo que a professora quer um trabalho sobre o passado de Portugal ou o porquê do 25 de Abril.

A minha "guerra" era essa,  ao lado do meu marido e agora continua, eu sou educadora, neste momento as idades com que trabalho não dá para isso (2/3 anos), mas trabalhei muitos anos com miúdos de primária e aproveitava sempre essas datas para explicar qualquer coisa àquelas crianças. Deu frutos, porque no dia 12 estive em Belém, e a minha companhia foram, um com 22 anos que é militar e foi o último a quem o meu marido impôs a boina, um com 19, um dos tais de quem fui educadora, um com 13, vizinho, que um dia estava aflito com um trabalho sobre o 25 de Abril e os pais não sabiam explicar, e o meu neto com 7 anos que se fica quieto quando do toque do silêncio aos mortos, e na altura do Hino, que o canta todo.

Outra coisa, o 10 de Junho tem de ser em Belém, é lá que suposta ou verdadeiramente estão os nomes de todos, é uma maneira de chamar a atenção da opinião pública, ou então arranjem um dia dos ex-combatentes e vão lá todos. Em Abril estive no Porto, fui entregar uma lembrança do meu marido a um Camarada, e ele levou-me a um jantar de caloiros e fez-me falar.

Detesto falar em público, mas fi-lo para lhes falar dos ex-combatentes e no fim vieram agradecer, porque tinham pais, tios... que estiveram lá fora, que eles percebiam que havia qualquer coisa, mas não sabiam nada da guerra, nem do que muitos sofrem em silêncio por causa dela.

Desculpem o desabafo, mas eu sei o que passaram, o que passam hoje, conheço bem alguns que com a idade as coisas só pioraram, as mulheres não perceberam e agora estão com dificuldades e sozinhos.

Ana Duarte
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 13 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6591: O discurso de António Barreto no dia 10 de Junho de 2010 (3): O dia do ex-combatente devia ser comemorado noutra data (Ana Duarte)

Vd. último poste da série de 4 de Maio de 2010 > Guiné 63/74 - P6310: As nossas mulheres (16): Hoje é Dia da Mãe (Felismina Costa)

10 comentários:

Luís Graça disse...

Amigos e camaradas:

É já tanta a nossa produção bloguística (às vezes chega a 8 e 9 o nº de postes por dia, para não falar já dos comentários, que são três vezes mais), que se torna difícil acompanhá-la em termos de leitura...

Espero, no entanto, que não tenha passado despercebido este poste da Ana... É um notável documento humano, escrito por uma mulher de armas (termo que nada tem de pejorativo, é um elogio: uma mulher de coragem, frontalidade, combate, generosidade...).

A Ana faz parte, por mérito próprio, da nossa Tabanca Grande. Ainda está fazer o luto do Humberto e, como tal, precisa, igualmente do nosso carinho e amizade. Toda a gente gosta de dar e de receber. Aliás, toda a gente precisa de dar e receber.

Grande acto de amor e compaixão, foi igualmente o texto que ela escreveu, a quatro mãos, servindo de apresentação do Humberto à Tabanca Grande, em Fevereiro de 2010, quando ele já sabia que tinha pouco tempo para viver... É de algum modo também um epitáfio: eis, camaradas, como eu quero ser recordado, quando vos deixar...

São momentos únicos e mágicos, esses, que temos o privilégio de compartilhar, e que reforçam o "espírito de corpo" desta comunidade virtual... Todos temos a obrigação de ser um pouco melhores, como homens e como mulheres, como portugueses e como cidadãos, depois de ler este e outros depoimentos que têm sido publicados no nosso blogue. Bem hajas, Ana! Até sempre, Humberto!

L.G.

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19 de Fevereiro de 2010
Guiné 63/74 - P5847: Tabanca Grande (204): Humberto Carneiro Fernandes Duarte, ex-Fur Mil Op Esp / RANGER do BCAÇ 4514, 1973/74

AQUILES disse...

Gostei do texto.
José Grave

Joaquim Mexia Alves disse...

Camariga Ana

Permite-me que te trate assim e que te trate por tu, senão, não serias a camariga que eu sinto tão combatente como nós fomos.
Sinto orgulho ao ler-te, ou seja, sinto orgulho nas mulheres de Portugal, que tanto deram e continuam a dar.
Muitos dizem mal do Movimento Nacional Feminino, por exemplo, mas havia nesse Movimento muitas mulheres de uma entrega notável, que acalmaram muitas dores, amenizaram muitas recordações e resolveram muitos problemas.
É assim a mulher Portuguesa, e mais uma vez eu sinto orgulho em dizê-lo.
E que bem dizes do teu casamento!
Nem o Humberto teve sorte, nem a Ana teve sorte, a não ser a de se encontrarem, porque tudo o resto saiu do vosso empenhamento no amor, que é sempre, ou devia ser, mais dar que receber, pois só assim dando se recebe.
Eu que não tive “grande guerra”, tenho de quando em vez irritações incontroláveis.
Aprendi há muito pouco tempo de onde elas vêm, e por vezes até as pressinto e consigo dominar.
E nisso muito me ajuda a compreensão da minha família, embora tão distante em idade da guerra que eu vivi.
Compreendo-te assim bastante bem e gostaria muito que ao lado de cada combatente houvesse uma mulher como tu.
Sei, porque o vi agora no nosso convívio, que as nossas mulheres se orgulham de nós, que também nos aturam as nossas irritações, reminiscências da guerra, mas também elas podem estar cientes de nós muito nos orgulhamos delas e da sua capacidade de permanecerem ao nosso lado neste estado latente de guerra que de vez em quando nos persegue.
Obrigado pelas tuas palavras.
Um abraço forte e camarigo para ti e para todas as nossas mulheres.

Anónimo disse...

Camarada Ana
Costumo dizer que só um ex-combatente compreende outro ex-combatente, mas estava enganado, afinal, sentes (desculpa tratar por tu)aquilo que um ex-combatente sente, a indiferênça da família em relação ao nosso passado de combatente, só desabafo sobre guerra com alguns camaradas, e escrevo no blogue para desanuviar, porque digam o que disserem " A Guerra nunca acaba para aqueles que se bateram em combate". Lamento que o Humberto tenha feito "A Grande Viagem" tão precocemente.
Abraço Fraterno
Luís Borrega

Anónimo disse...

Ana Duarte,
Obrigado pelo belo texto publicado neste blogue.

Embora o camarada Mexia Alves aproveite para fazer a comparação com as pessoas que integravam o Movimento Nacional Feminino em nada a comparo ou ao texto com essas pessoas, são opiniões.
Contudo, respeito e admito que houvesse algumas com espírito de missão, mas não comparo.

Uma vez mais obrigado para o alerta feito, o meu agradecimento.
BSardinha

Anónimo disse...

Ana Duarte,
Este seu texto deveria ser lido por muitas mulheres. É uma linda história de vida, com sacrifício e muito carinho.
Conheço bem a dor que se sente quando se perde o companheiro de uma vida, tenham sido 12 ou 25 anos de vida em comum.
Um abraço amigo.
Filomena

Anónimo disse...

Estimada Ana,

Foram e são assim muitas mulheres do meu país.

O Joaquim Mexia Alves, conhecedor com coração maior que o corpo, disse tudo.

Ao Joaquim peço para subscrever o seu comentário pois conheci um pouco o drama da Ana e tive a honra de ainda falar ao telefone com o Humberto Duarte.

Obrigado Ana!

UM fraterno abraço,

Mário Fitas

Anónimo disse...

AMIGA ANA DUARTE QUE DEUS TE DEI FORÇAS PARA CONTINUARES SEMPRE ASSIM,COMO EU TE COMPREENDO, AINDA ESTA SEMANA CÁ EM CASA SE PASSOU UM PEQUENO PROBLEMA, ESTAVA EU FALANDO COM A MINHA ESPOSA E SEM MAIS NEM MENOS COMECEI A DISCUTIR COM ELA E SÓ ME DEI CONTA DAQUILO QUE ESTAVA FAZENDO QUANDO ELA COM UMA CARA DE MUITO ESPANTADA ME PERGUNTOU, QUE MAL É QUE EU TE FIZ PARA ESTARES COM ESSA ATITUDE, SÃO ESTES PROBLEMAS QUE TU E MUITAS MULHERES DE EX-COMBATENTES ATURAM HÁ QUARENTA ANOS E SEM NINGUÉM NOS RESOLVEREM ESTE PROBLEMA DO STRESS DE GUERRA, O ESTADO ESTA-SE MARIMBANDO PARA A GENTE, ACHO QUE ESTÁ CHEGANDO A ALTURA PARA TOMAR-MOS UMA POSIÇÃO, TEMOS QUE NOS UNIR PARA RESOLVER DE UMA VEZ POR TODAS ESTE NOSSO PROBLEMA.
MAIS UMA VEZ FORÇA MUITA FORÇA PARA ULTRAPASSARES ESTE OBSTÁCULO.

UM ABRAÇO DO TAMANHO DA GUINÉ PARA TI E TUA FAMÍLIA

AMILCAR VENTURA EX-FURRIEL MILº. MECÂNICO AUTO DA 1ª.CCAV DO BCAV8323 BAJOCUNDA 73/74

Luís Dias disse...

Cara Ana

Há dias assim. Dias em que parece que o tempo vai ledo e quedo e que a vida segue sempre igual. Fui ao nosso blogue e deparei-me com um texto cheio de alma, de coragem e, ao mesmo tempo, de uma ternura e de um sentido humano a que ninguém pode ficar indiferente.Emocionou-me!

Um abraço de muita amizade e o meu obrigado por tão belo documento.

Luís Dias

Pereira da Costa disse...

Cara Senhora Ana Duarte
Também não consigo chorar ou deplorar a vida que tive enquanto ex-combatentes na Guiné. Também estive no CIOE em 1968 e na >Guiné de 1968 a 1970.Tive a felicidade de não vir afectado tal como o Humberto. Não o conhecia pessoalmente mas a última vez que o vi foi na grande manifestação em prol do célebre decreto estatal de miséria.
Vou fazer o mesmo comentário aquando do seu felecimento: «onde ele esteja, que seja em paz \e no coração de todos aqueles que o estimavam ou o amavam»
Para a Ana muita força, coragem e continue a tê-lo no seu coração e no seu amor.