terça-feira, 15 de junho de 2010

Guiné 63/74 - P6595: Estórias do Juvenal Amado (27): Os lugares e os amenos fins de tarde da nossa terra

1. Mensagem de Juvenal Amado* (ex-1.º Cabo Condutor da CCS/BCAÇ 3872, Galomaro, 1972/74), com data de 30 de Maio de 2010, com mais uma das suas estórias, sempre do agrado da tertúlia:

Caros Luis,Carlos,Magalhães, Briote e restante camaradas da Tabanca Grande
Esta estória é formada por retalhos de momentos vividos pelos jovens que se juntavam ali à volta das mesas, em cadeiras de chapa repintadas.

Contavam anedotas, faziam planos para os bailaricos ou jogatanas de matraquilhos.

Os lugares e os amenos fins de tarde da nossa terra

A tarde estava calma, uma ligeira brisa mexia as folhas novas dos enormes plátanos da praça D. Afonso Henriques, que fica junto ao lado Este do Mosteiro de Sta. Maria de Alcobaça. Muitos camaradas do Norte que estiveram nas Caldas da Rainha passaram na estrada entre a praça e o Monumento encimado pelo «Zé da Moca».* 1

Era um lugar aprazível em calçada portuguesa, havia bancas circulares onde se vendia a nossa famosa fruta aos turistas, a loja onde com sete anos vi pela primeira vez televisão através da montra e também a esplanada do café Trindade, local onde se tinha festejado euforicamente a vitória dos aliados sobre o nazismo.

Era assim anos depois lugar de encontro da malta mais jovem da vila hoje cidade.

Transformou-se num local por excelência para os abraços de quem chegava e as despedidas dos que partiam para o Ultramar.

Quase passava por momento solene diário, assim que saíamos das fábricas, das lojas de comércio, juntarmo-nos ali com que os que tinham continuado a estudar e os já tinham começado a sua vida militar.

Esses se encarregavam de contar aos que para lá iam, as suas peripécias com as marchas, com a pista de obstáculos e com o temível galho. Não sei porquê mas o galho inspirava-me um enorme respeito afinal infundado, pois era um pequeno Adamastor, que após passarmos por ele era como se não existisse.

Mas a verdade que as estórias mais ao menos trágicas, que se contavam à sua volta criavam uma áurea sinistra ao inerte e erecto obstáculo.

Mas as palavras do jovem piloto de helicópteros, regressado em gozo de férias, é que nos prendiam nessa tarde. Falava ele sobre a violência da guerra no Norte de Moçambique. Eu ouvia atentamente pois o meu irmão tinha de lá regressado em 1968 e muitos dos lugares conhecia de nome.

A dificuldade na evacuação dos feridos, o seu número e gravidade, tinham tirado a frescura juventude, aquele jovem que para lá tinha ido voluntário.

Seria difícil hoje recordar ou enumerar os relatos tantas vezes repetidos, por quem chegava com o rosto já envelhecido, passados que eram 10, 12 ou 24 meses sobre a partida.

Os relatos eram diferenciados entre excessivo e os quase contado em murmúrio. Esses eram mais fiáveis no meu entender.

Uma coisa ficou retida na minha memória, foi a sua afirmação de que os colonos em Moçambique não queriam enviar os seus filhos para zonas de guerra. Diziam eles que isso competia aos mancebos metropolitanos, pois o Estado Português ficava com riqueza do território suficiente, para arcar com essa responsabilidade.

Na altura fiquei apreensivo, pois estando eu a dias de me apresentar no CICA 4 em Coimbra, onde passaria o meu 21.º aniversário, e tendo morrido não há muito tempo em combate na Guiné, um dos gémeos se não estou em erro se chamava Luís, que não sendo de Alcobaça, eram por lá conhecidos por frequentarem a nossa vila amiúde, aquela observação foi como uma martelada*2.

Da malta da Guiné vinham relatos de violência e morte. Costureirinha era um nome tristemente famoso. Os que regressavam de Angola também traziam as suas estórias, mas por aquela que eu acabara de ouvir é que não esperava. Não queriam combater na terra onde muitos deles tinham nascido? Então porque razão teríamos nós que ir, que só conhecíamos as tais riquezas, praias, paraísos de marisco barato de nome e em nada, que eu soubesse, influíam no meu bem estar e qualidade de vida?

Isto para não falar noutras minhas razões, era coisa que fazia transbordar o copo já cheio.

Eu fui fazer a recruta, o meu amigo, findas as férias, voltou para lá cumprir o resto da comissão e acabou por seguir a vida militar.

Alguns como os gémeos José Eduardo e José Manuel, os irmãos José António e Joaquim António, frequentadores dessas reuniões informais, foram na mesma altura parar à Guiné tal e qual como eu, o Pedrosa foi para Moçambique, o outro Pedrosa foi para Timor e o Barrão para Angola, etc, etc.*3

Passados quase quarenta anos, por várias vezes pensei naquelas palavras quase queixume e comecei a duvidar tê-las ouvido.

No Domingo passado, tendo-me deslocado a Coimbra para assim assistir a uma cerimónia religiosa de um meu sobrinho neto de sete anos, em conversa com um antigo alferes que lá esteve, já perto do 25 de Abril, e por lá ficou muitos meses depois, vem ele confirmar-me, que afinal eu não tinha ouvido mal naquele ameno fim de tarde.

Juvenal Amado


1 - O Zé da Moca é uma alcunha dada a uma estátua de D. Afonso Henriques. Fica bem no cimo da lateral do Mosteiro. Quando eu era criança um raio atingiu essa parte do Mosteiro, tendo ficado com sequelas alguns frequentadores da antiga pensão Central, que ficava por cima do café Trindade, mas virada para a rua principal.
Trocaram a calçada portuguesa por um piso em saibro, e embora o café esteja no mesmo sítio, perdeu a mística daquele tempo.

2 - Os gémeos eram como duas gotas de água e de tal maneira, que vestindo de igual, um comprava bilhete para o cinema, entrava e a seguir enviava o mesmo por alguém para o irmão, para que ele entrasse também.

3 - Estes Pedrosas só tinham parentesco no nome. Uma particularidade mais os unia, era a o seu gosto pela poesia. Assim nas noitadas de bacalhau assado, no Quim do frangos em frente aos Bombeiros, eles ao despique, soltavam a sua veia e já com o tinto a fazer efeito, declamavam Camões ou Pessoa.
O que foi para Timor não regressou vivo pois suicidou-se lá.
As razões perderam-se no tempo e na distância. Descanse em Paz.

Esta foto é mais antiga, mas à esquerda está a entrada Arte Nova como era há 40 anos

Hoje a entrada é assim. Vá se lá saber porque tiraram as duas meias montras com a porta principal ao meio

Na esquina o café. Em frente, a rua alcunhada do Asilo, por onde passavam os militares para fim de semana e regresso à Escola Prática de Sargentos
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Notas de CV:

Vd. último poste da série de 4 de Junho de 2010 > Guiné 63/74 - P6532: Estórias do Juvenal Amado (26): Laura, ou as estórias da nossa terra

1 comentário:

Alcides Silva disse...

Olá Juvenal, bem vindo à Tabanca e muitos parabens por o teu aniversário, o tempo de tropa foi bom para aqueles que regressaram e com saúde, foi um sinal que servimos para alguma coisa que ainda não descobri, atendendo a tudo que se seguiu, resta-nos ir vivendo um dia de cada vez. Um grande abraço e felicidades.