quarta-feira, 5 de maio de 2010

Guiné 63/74 – P6321: Banalidades da Foz do Mondego (Vasco da Gama) (X): As minhas (in)Congruências ou as minhas (in)Coerências?

1. O nosso camarada Vasco da Gama, ex-Cap Mil da CCAV 8351, Os Tigres de Cumbijã, Cumbijã, 1972/74, enviou-nos, em 5 de Maio de 2010, a seguinte mensagem:

BANALIDADES DA FOZ DO MONDEGO X
AS MINHAS (in)CONGRUÊNCIAS OU AS MINHAS (in)COERÊNCIAS ?

Da revolta interior contra o que me obrigara ir combater para a Guiné, até ao regresso a Portugal já livre dos pesadelos horrorosos, tinham passado vinte e dois longos meses de sofrimento.

Desembarquei no Figo Maduro, estava Agosto de 1974 quase no fim, fui com os meus camaradas para o RALIS (?) onde entreguei o que havia a entregar, meti-me num táxi, disse aos três camaradas da minha região, o Lopes da Esperança, Alhadas, o Piscas de um local pequenino com um nome engraçado -Perna de Pau – e o Preto da Tocha e “ordenei”: vamos embora que eu pago o transporte.

O nosso embarque da Guiné para Portugal foi marcado de um momento para o outro, pelo que não houve tempo de a maior parte da malta avisar os seus familiares, o que foi aliás, o meu caso.

Vinte quilómetros antes de chegarmos à Figueira da Foz, seriam sete e pouco da manhã, telefonei aos meus pais a dizer que daí a pouco estaria em casa e que fossem avisar a minha mulher, morávamos então em casa dos meus sogros ausentes em África, que o Vasquito estava a chegar.

Lá os consegui convencer que não era nenhuma brincadeira e passado pouco tempo estava com a minha outra família, a que nunca quereria ter abandonado, a única que havia tido antes da partida para a Guiné.

De mim, camaradas, vão sabendo alguma coisa pelo nosso Blogue ou nalguma comezaina onde nos vamos juntando; o Lopes enviuvou mas está bem na vida, reformado, mas no activo ajudando o filho na oficina.
O Preto continua na faina marítima, não tendo perdido o vício da sua garrafa de tinto, que substitui pelo garrafão quando o mar está mais bravo e o meu camarada Piscas suicidou-se, como vos contei há uns tempos. Atirou-se para debaixo de um comboio, abandonado pela família e pela “querida pátria” que ele um dia, convictamente, defendera nessa Guiné.

Cheguei da Guiné confuso e desenvencilhei-me dos camuflados, das botas, dos quicos, enfim de tudo a que cheirasse a tropa e à Guiné. O outro diria Guiné jamais (jámé)…

Não quero ouvir falar mais na tropa e no tempo que perdi, agora que estou num Portugal livre!

Vamos ser um grande país, confiava à minha mulher perante a aprovação do meus pai.

Vou terminar as cadeiras que me faltam e agora sim, vamos combater pela nossa Pátria, pela Democracia, pela Liberdade, por um Portugal melhor sem Salazares nem Caetanos...
O curso terminei e empreguei-me… o resto falaremos noutra altura…

O “jámé” Guiné, foi substituído pelo Guiné “for ever” e hoje, dia nenhum a leitura do nosso Blogue falha. Pode falhar tudo, mas o nosso Blogue é sagrado.
O bichinho da Guiné morde-me cada vez com mais intensidade e a minha outra família, a que me havia sido imposta numa guerra que eu odiava, é cada vez mais verdadeira e está cada vez mais presente.
Foi com eles que lutei, foi por eles que lutei, foi com eles que vivi vinte e dois meses no mato profundo, sempre juntos, sem população, sem instalações e sujeitos a constantes ataques.

Cumbijã era um deserto de terra queimada coberto por minas e todos nós a viver em barracas de lona… Quando regressávamos das patrulhas muitas das vezes não havia água para o banho, mas havia a força suficiente para amassarmos blocos com os nossos pés, pois tínhamos de fazer por nós próprios habitações com o mínimo de dignidade.
Tínhamos uma meta a atingir e conseguimos fazer as nossas casernas. Cada grupo de combate tinha o seu palácio feito pelos Tigres.

É também por eles que hoje aqui venho! Pela minha outra família, que de imposta passou a verdadeira.

Aconteceu o 25 de Abril e passado muito pouco tempo sabíamos das festas e convívios que as N.T. faziam praticamente por todo o lado com o P.A.I.G.C. Li já algumas dezenas de postes onde camaradas nossos ilustram fotograficamente esses encontros.

Curiosamente os nossos soldados nessas fotografias aparecem sempre desarmados e quase sempre trajando despreocupadamente, enquanto os guerrilheiros estão sempre bem ataviados e armados até aos dentes.

Abraçam os guerrilheiros como se fossem amigos de longa data, quase sempre numa posição que dá a ideia de alguma subserviência que eu não aceito.

Trocam-se quicos e bandeiras e lenços e botas e mais não sei o quê….

Sabem, camaradas, a minha Companhia de Cavalaria “Os Tigres”, manteve-se no Cumbijã até ao dia 25 e 26 de Junho, tendo seguido para Buba nesses dois dias, partindo a 27 para Bissau. Pois dois meses após o 25 de Abril nunca por nunca o P.A.I.G.C. se aproximou do nosso aquartelamento.

Vi um grupo quando comandava a coluna Cumbijã - Aldeia Formosa, espalhado num dos lados da estrada, mandei parar a coluna, todos nós estávamos armados e apenas eu me apeei e perguntei ao chefe do grupo: Tudo bem?
O homem acenou a cabeça afirmativamente, cumprimentou-me, mas nunca me passaria pela cabeça convidá-los a visitarem o meu aquartelamento.

Sei que logo após a nossa saída, o quartel havia ficado entregue aos milícias e a dois pelotões da C.Cav. 8350 do Guileje, na altura comandada pelo Capitão Vieira, hoje coronel reformado, os guerrilheiros entraram, devidamente autorizados, eventualmente para convencerem as milícias de que…

Ainda bem que não nos “visitaram” nesse período.

Dou-vos a minha palavra de honra que não saberia o que fazer!
Entregar o meu aquartelamento ao P.A.I.G.C., feito pelas nossas mãos, depois de tanto trabalho, de tanta emboscada, de tantos embrulhanços, de ataques ao arame?

Conviver com fraternidade com os guerrilheiros?

O que diriam os meus mortos e os meus feridos, alguns dos quais vieram a morrer em Portugal? O que diria a minha família de combatentes com quem lutei e por quem lutei?

Não tive que resolver esse problema…felizmente.

Mas como é que este gajo, que foi assumidamente contra a guerra colonial, ainda tem dúvidas? Que os meus camaradas me ensinem a responder à pergunta, caso contrário fico-me pelas minhas (in)congruências ou pelas minhas (in)coerências.
Legendas das fotos:
1. Cumbijã renovado: instalações 5 estrelas.
2. Alô; Alô, aqui posto de comando.
3. O Cumbijã que os Tigres encontraram: um deserto de minas. O Alf. Beires, o Alf. Abundâncio e eu próprio tratando de uma anti carro.
4. Amassando blocos para a construção das casernas.
Fotos: © Vasco da Gama (2010). Direitos reservados.

Do meu Buarcos, cada vez mais lindo, segue um abraço de amizade para toda a nossa Tabanca Grande.

Vasco da Gama
Cap Mil da CCAV 8351
___________
Nota de M.R.:

25 comentários:

Anónimo disse...

Conseguis-te colocar no papel o que muitos sentem quanto a subserviências frente aos que, dias antes ainda tinham "sangue fresco" de soldados portugueses nas maos.RESPEITO PELA LUTA DELES,pela sua terra,pela sua independência.Mas muita,desnecessária e trágico-complexada "postura" houve que em NADA SE JUSTIFICAVA frente a estes.No fundo mais nao foi que uma manifestacao de algo que se repetiu em alguns locais de Angola e Mocambique.Subserviências?Porquê?Um abraco amigo.

Anónimo disse...

Caro Vasco da Gama.

De grande coerência é o que eu chamo ao teu texto, e é bom que hajam também estes testemunhos do pós- Abril na Guiné, escritos de forma clara, porque eu também não participei nos abraços e nem a eles quis assistir.

Sempre pensei e ainda penso, que não tenho de pedir desculpas por ter andado aos tiros na Guiné, não devo nem quero ser tolerante para com o PAIGC. pois a isso me obriga o dever sagrado do respeito pelos camaradas que lá tombaram, cumpri o meu dever e eles fizeram o deles, ponto final.

Assim como não respeito quem no nosso país, não respeita os seus combatentes, porque já nos bastam estes que fazem tudo para não respeitar quem lutou e nada pediu.

Um esclarecimento, também “militei” contra a guerra colonial, e nem por isso sinto que esteja a ser incoerente ao defender ao longo destes anos, o direito á indignação dos combatentes da Guerra Colonial.

Um abraço

Manuel Marinho

Anónimo disse...

Vasco,

Conseguiste transmitir-nos uma realidade vivida no passado, no presente e que provavelmente perdurará no futuro.

Um abraço,
BSardinha

admor disse...

Caro Vasco,

Já tenho pensado muitas vezes nessa situação e acabo
sempre dizendo ainda bem que estive lá em 1968/70 e não tive de passar por isso.

Un grande abraço para todos.
Adriano Moreira - Cart. 2412 "SEMPRE DIFERENTES"

Torcato Mendonca disse...

Caro Vasco
O nosso quotidiano é feito de hábitos, mais salutares uns que outros. O vir aqui é um deles. Salutar! Vim, saí em tempo de atrasos...fui pensando e,assim que regressei voltei a ler.
Podia dizer que faço minhas as palavras do J. Belo,M.Marinho,Bsardinha,AMoreira e faço efectivamente. Acrescento somente que era impensável, repito impensável eu cumprimentar, além do cumprimento militar, qualquer combatente do PAIGC. Não quero ir mais além só: por vezes não são as fotos, são as palavras escritas que me agridem, como é possível? Passo por de cima e digo: deformação minha...obrigado pelo texto a levantar estas questões, a relatar a estadia na Guiné, o regresso e a confusão...vidas! (parti de taxi também...ia "perdido"...ia eu sem saber do eu)
Abraço especial para ti camarada e outro, muitos a toda esta tertúlia plural e livre de pensar ou não como eu. Ab do TM

Anónimo disse...

Sr. CAP VASCO DA GAMA
Embora não tendo sido combatente no TO GUINÉ,fui em ANGOLA, quero felicitá-lo pelo desassombro e frontalidade como expôs o que muitos sentem e não têm coragem de o dizer.Infelizmente muitos militares daquela tempo esqueceram-se dessa condição, perderam a dignidade, desrespeitando-se a si próprios e aos camaradas que tombaram no campo da HONRA.José Tavares

Luís Graça disse...

Vasco:

Felizmente que somos complexos, que somos livres, que temos valores, que somos gregários, que temos emoções... Porra, não somos animais de sangue frio! Nem simples máquinas pensantes!

Incongruências ? Incoerências ? Culpa ? ...Deixa essas dúvidas (existenciais) para quem se interroga em exercícios de simulação no computador: o que eu faria se estivesse lá ?

A grande vantagem é que não estás numa aula sobre tomada de decisão nem um nenhum laboratório de psicologia nem em nenhum sessão de psicoterapia, está entre camaradas e amigos que tu consideras a tua segunda família... E que te compreende e te aceitam como tu és, sem teres que te justificar, explicar, retratar, pedir perdão, implorar, autoflagelar...

Aqui tens a grande vantagem de ninguém te dizer (nem poder dizer), olhos nos olhos: "fizeste bem fizeste, fzieste mal, foste um herói, foste um cobarde, foste isto, foste aquilo"...

Quem, como tu, miliciano, com o teu perfil psicológico e intelectual, com as tuas ideias e valores, com uma família (e com Buarcos) que fica para trás, teve que comandar 150 homens, jovens de 20 anos, numa guerra como aquela, de "baixa intensidade" (dizem eles os especialistas, que nunca estiveram no Cumbijã ou na Ponta do Inglês, para caracterizar a luta de guerrilha e contra-guerrilha...) e teve a obrigação de os trazer vivos, e mais ou menos inteiros, merece um tremendo respeito...

Eu não me imagino no teu lugar... Por outro lado, há um grande pudor em falar dos nossos sentimentos na guerra... Tu és dos poucos (ainda para mais capitão miliciano) que o fazem, aqui, em público, pondo o coração a sangrar... Que dignidade, que coragem... Eu só o consigo quando escrevo poesia... (E, claro, no meu dário, que nunca publicarei, a não ser alguns excertos, que já por aqui passaram...).

Não procures, pois, resposta à tua pergunta... Cada caso foi um caso que todos nós devemos respeitar. Eu também respeito os que, com dignidade (!!!), souberam tanto honrar os seus mortos como também estender a mão ao imimigo de ontem, com as G3 e as Kalash ainda quentes...

No caso de companhias como a tua (ou como a minha, a CCAÇ 12, que era baseada em fulas, do recrutamente local), o "armistício" terá sido um processo difícil, complexo, violento (em termos psicológicos)...

Também não estava lá nessa altura. Gostaria de ter estado, confesso. Mas não te sei dizer também como te comportaria, a priori... Não somos robôs programados... Felizmente.

Parabéns pelas geniais "banalidades do Mondego" que acabas de publicar... Luís

PS - E que regresso ao blogue!

Anónimo disse...

Este texto fez-me recordar muitas coisas que ouvi falar sobre a guerra da Guiné por quem por lá andou.
Abraço amigo
Filomena

Juvenal Amado disse...

Vasco e restantes camaradas

Já cá estava quando quando aconteceram os encontros entre antigos inimigos.
Porque as razões deles se entrelaçavam nas nossas razões, não era difícil abraçá-los findas ou pelo o menos num limbo as referidas hostilidades .
SE lá estivesse não sei como reagiria à enorme festa do fim da guerra, que de tão próxima quase se lhe podia tocar.
Mas não estarei enganado se pensar, que a atitude de fim das hostilidades, que muitos dos nossos soldados tiveram é ditada por algum alívio, que já cheira a casa neste jardim à beira mar plantado.
E mais acrescento que a atitude não belicoso possivelmente evitou, que mais sangue corresse lá enquanto cá se festejava a Liberdade.
"Nem mais um soldado para as colónias"
"regresso imediato dos nossos soldados"
Quem não se recorda disso.
Sem vontade do poder que por cá havia, os soldados que lá estava arriscavam-se a ficar sós a combater por coisa nenhuma.
Nós somos soma de onze anos de guerra. O nosso posicionamento reflecte os anos que por lá passamos.
Infelizmente a festa cedo acabou lá com todo o cortejo de violência e vingança.
É pena.
Mas penso que nada resolve, aqui a apontar os que lá tendo estado, entenderam o 25 de Abril como o fim das situações odiosas em que todos (nós e eles)vivíamos, estão naquelas fotos sorridentes e que são por isso entendidos como subvernientes perante o PAIGC.

Muitos possivelmente combateram valorosamente até ao dia que se tornou inviável o seu combate e não acho justo serem hoje olhados de lado, por terem tirado umas fotos em jeito "ronco" à 36 anos.

Um abraço

Juvenal Amado

Joaquim Mexia Alves disse...

Caro camarigo Vasco

Julgo que te compreendo muito bem.

Quando me foi dado conhecer esses acontecimentos no final da guerra, (não os critico), dei comigo a pensar que era um homem feliz por já lá não estar.

Se por um lado havia o alivio do final daquela guerra, por outro também não me sentia à vontade, (para utilizar apenas esta expressão), para andar aos abraços ao PAIGC.

Repito que não critico os que o fizeram, como repito que fico feliz por não me ter visto em tal situação!

Um abraço camarigo para todos

E, Vasco, parabéns pelo texto, que demonstra a frontalidade e honestidade a que nos habituaste.

Anónimo disse...

Quando regressei,em Setembro de 74,colegas,amigos e conhecidos costumavam chamar-nos de "assassinos coloniais".
Olhei para todos nós e não reconheci nenhum.
Agora,passados 36 anos,e por um camarada de armas,dão-me a entender que a última geração da guerra,que teve contactos com o paigc,teve "posições de subserviência" e comportamentos indignos perante os nossos mortos.
Voltei a olhar para trás,e para todos nós,e voltei a repudiar.Agora estas últimas acusações.
José Zeferino

Manuel Reis disse...

Caro amigo Vasco:

Vou fazer uma pequena correcção e dar a minha opinião sobre o tema que lançaste no Blogue, que diverge da tua, como já sabes, pois já abordámos, superficialmente, o tema a sós.

A correcção relaciona-se com a entrada de grupos do PAIG no aquartelamento: nunca lá entraram até à entrega do aquartelamento no dia 19 de Agosto de1974.

Só entraram no aquartelamento, Comissários Políticos do PAIGC e devidamente autorizados por nós, para efectuarem os seus comícios.
Não vi qualquer motivo que justificasse o impedimento de esclarecer os seus conterrâneos, que em breve abandonaríamos.

Tivemos dois encontros com os guerrilheiros do PAIGC, um ao fundo da estrada alcatroada no sentido de Nhacobá e o outro nas imediações do aquartelamento.

Todos correram lindamente, com um comportamento exemplar de lado a lado. Senti orgulho pelo evento,de modo especial pelo comportamento dos meus homens, que desarmados, se portaram com uma postura exemplar.

Temi alguma animosidade, mas para meu regozijo, não se concretizou.

Nos dois encontros estave presente o Capitão Santos Vieira,que depois de informado se deslocava de Colibuia e foi connosco ao encontro.

O impacto do 1º encontro foi marcante para todos nós.Ninguém ficou indiferente, ficou marcado pelo reencontro de dois irmãos, um milícia nosso de 20 anos e um combatente do PAIGC de 14.

O abraço dos dois irmãos,que rapidamente se reconheceram, é um momento único, altamente comovente.
Só isso teria justificava a nossa ida.

Recordo o brilho dos olhos do nosso milícia, quando o irmão lhe disse que a mãe estava viva e se encontrava bem. Tinham sido separados pelo PAIGC, em 1963, num assalto a Colibuia

No outro encontro já o diálogo se tornou possível, falou-se na tomada de Guileje, alguns eram portadores de objectos nossos, que traziam e nunca, em qualquer momento, manifestaram qualquer alarde de superioridade.

Nada pediram, mas aceitaram uma tachada de arroz que o nosso cozinheiro de imediato se prontificou a cozinhar.

Amigo Vasco, eu respeito a tua opinião de não querer entregar o quartel, foi constuído com muito sacrifício e sangue.

Mas...como podíamos nós impedi-lo, se o desejássemos?

O momento mais doloroso da descolonização de Cumbijã, foi na véspera da entrega do aquartelamento, quando me é exigido que desarme os milícias.

Destroçados animicamente,com um porte e uma dignidade invulgar todos fizeram a entrega do armamento, sem uma queixa ou um azedume.
No entanto Samba?, sargento-milícia, chamou-me à parte e disse-me: Alfero, até aqui deram-nos uma arma e pediram-nos para lutar por vós e agora desarmam-nos e abandonam-nos?

Era a verdade nua e crua!
Foi de partir o coração, mas que podia fazer por eles?

Acompanhá-los na sua fuga para o Senegal?
Bem me apeteceu!

Aqui, senti vergonha, pela minha incapacidade de salvar aquela boa gente que tinha de atravessar o Corubal e contornar a Guiné pelo leste para chegar ao Senegal.

Não sinto que tivesse desrespeitado os meus mortos.Sinto a tranquilidade de ter feito o meu melhor, tendo sempre em consideração as duas partes em conflito.

Amigo Vasco não te esqueças que esta não foi uma fogueira que ateámos, mas que tivémos de apagar, como bombeiros mal preparados para executar a sua tarefa.
Fizémos o nosso melhor!

Um abraço de Aveiro até Buarcos.
Manuel Reis

Carlos Vinhal disse...

Com a devida vénia ao camarada Mexia Alves, faço minhas todas as suas palavras.

Um abraço
Carlos Vinhal

Hélder Valério disse...

Caro Vasco

Grande amigo, também só agora chego porque não vi antes.
E apareces com um texto cheio de força, cheio das tuas razões, das tuas certezas e das tuas dúvidas.
É muito bom para se reflectir sobre as coisas lá contidas.
E eu gosto de reflectir.
E li também os vários comentários que foram produzidos pelo texto e que, deixa que te diga, em nada desmerecem o mesmo, pelo contrário, até ajudam a procurar a resposta para as interrogações que fazes no final, o teu apelo à ajuda para encontrar resposta às tuas dúvidas.
Não tenho pretensões a dar-te qualquer resposta que seja a fórmula 'correcta'. Até porque isso não existe em abstracto, cada um terá a sua 'solução' e, além disso, também até como foi recorrente, quer no texto quer nos comentários, 'não estava lá', não sei como reagiria.
Abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Pergunto a Manuel Reis se no primeiro encontro que refere também os elementos do PAIGC estavam desarmados ou só os nossos.
Abraço,
Carlos Cordeiro

JD disse...

Meu Amigo Vasco,
Tinha um comentário directo preparado antes de jantar. Depois veio a operação Mar Verde. Quando regressei ao computador, tinha perdido o contacto com a net e, por via disso, o comentário. Reduzo ao seguinte:
As tuas dúvidas também me são extensivas, apesar de não ter vivido o teu período;
De ambos os lados da trincheira haveria gente decente e indecente, pelo que não me custa encarar com cordialidade um imaginado encontro com o IN;
Quanto à entrega de armas, a coisa muda de figura, pois não se tratou de uma rendição. Parece-me que até ao abandono do TO havia que impor o respeito ao IN.
Gostei de alguns comentários anteriores.
Abraços fraternos
JD

Anónimo disse...

Congruente Vasco,

Que poderei eu dizer, das tuas sábias e oportunas palavras?

Obrigado!

Aquele velhinho mas grande abraço do tamanho do nosso Cumbijã.

Mário Fitas

Anónimo disse...

Começava o Zé Brás por dizer que não sabia no que se ia meter, hesitava, mas escrevia e depois logo se via...

Estou quase na mesma com o comentário a um dos comentários feitos.

O José Zeferino, de quem sou amigo pessoal desde antes de sermos tropas, confesso-o desde já, merece-me toda a estima e consideração, mas não é essa apenas a razão pela qual venho de novo a terreiro, é pelo que ele diz, e sei ao que se refere quando nos diziam "assassinos" só por termos pisado aquele território e preocupa-me agora que ele se sinta ofendido, não foi essa a intensão do Vasco da Gama, tenho também a certeza porque também dele sou amigo.

Preocupa-me, dizia, mas percebo a leitura feita pelo José Zeferino, foi para a Guiné em meados ou finais de 1973 e apanha com o encerrar de tudo e a troca e abandono dos quartéis, não recebe com agrado que lhe chamem ou deixem entender que foi "subserviente" ou "colaboracionista", continuava a cumprir ordens com maior ou menor grau de responsabilidade.

Sou amigo de ambos e não sei como responder-lhes a esta questão, fico esperançado que alguém mais esclarecido e que não esteja tão próximo de ambos o possa e saiba fazer.
BSardinha

Anónimo disse...

Extracto da carta do Cap (Mil?) António Carvalho, comandante da CCaç 19, datada de 1 de Junho de 1974, dirigida ao comissário político do PAIGC. Publicada, com outros documentos, no poste 2939, de 14 de Junho de 2008.

"CAMARADA DUKE DJASSY

Começo por pedir desculpa do tratamento que lhe dou no cabeçalho. Poderá parecer incongruente da minha parte tratá-lo por camarada, a si, que com todos esses bravos combatentes durante anos e anos consecutivos, no meio das maiores privações e sacrifícios, lutaram para conseguir a liberdade deste povo oprimido e explorado por todos os camaleões do antigo regime "Colonialista fascista" que no momento mais alto da história do meu povo, foi derrubado pela união das Forças Armadas – Povo.

Dizia eu, portanto, que não me sinto com a força moral necessária e suficiente de o tratar por "camarada", mas sinceramente é assim que me dá prazer tratá-lo. Era assim que eu gostaria de o ter tratado ao lutar na mesma causa comum, infelizmente as minhas afinidades familiares sobrepuseram-se aos meus ideais políticos e eis a razão porque me encontro num exército que durante anos serviu um governo opressor dos povos africanos que lutaram pela sua liberdade, LIBERDADE essa prestes a ser atingida.

Tentei, portanto, integrado num exército, lutar com palavras, palavras de mentalização aos homens que me estão confiados, tentando informá-los da verdade e da justiça duma guerra em que eles estão inseridos, única e simplesmente, pela falta de informação, que nunca lhes foi confiada e prestada, e o que é ainda mais desumano, comprados à custa de dinheiro".
Abraço,
Carlos Cordeiro

MANUELMAIA disse...

VASCO,

LI O TEU ESCRITO COM A ATENÇÃO QUE MERECE UM HOMEM QUE ESCREVE BEM E ACIMA DE TUDO COMO UM SER HUMANO ENORME.

ESSA DÚVIDA QUE TE ASSALTOU DE COMO SERIA...
AINDA BEM QUE ...

CREIO QUE TERIA UM COMPORTAMENTO MUITO PRÓXIMO DO TEU SE TIVESSE A OBRIGAÇÃO DE COMANDAR UMA COMPANHIA E DE TRAZER TODOS PARA CASA.

O PRAZER DE ENTREGAR OS FILHOS E OS MARIDOS ÀS SUAS FAMÍLIAS,SÃOS E SALVOS, DEVE TER SIDO INDESCRITÍVEL.

MAS COMO SIMPLES "RAFAEL", GARANTO QUE NÃO ACEITARIA OS CONVÍVIOS QUE ACONTECERAM EM MUITOS LOCAIS.
CREIO QUE PODERIA AFIRMAR QUE NA MINHA COMPANHIA DIFICILMENTE SE ENCONTRARIA ALGUÉM QUE CONFRATERNIZASSE COM O PAIGC,NÃO PORQUE NÃO ENTENDESSE A SUA LUTA MAS PORQUE NÃO É FÁCIL A NINGUÉM PASSAR DOIS ANOS OU MAIS AOS TIROS E DEPOIS ,POR DECRETO,AVANÇAR PARA BEIJOS E ABRAÇOS AO ATÉ ENTÃO INIMIGO COMO SE NADA SE TIVESSE PASSADO...
RECORDO QUE ESTANDO JÁ NO DUGAL ASSISTIMOS NUM DOMINGO À PASSAGEM DE UMA COLUNA COM ALGUMAS BERLIETS CARREGADAS DE AFRICANOS,A CAMINHO DE BISSAU,PARA UM COMÍCIO DA FLING...
ENTENDEMOS A MANIFESTAÇÃO DE REGOZIJO À PASSAGEM PELO NOSSO AQUARTELAMENTO COMO PROVOCATÓRIA,E VAI DAÍ HOUVE INSULTOS E AMEAÇAS IMEDIATAS...

POUCO DEPOIS SERÍAMOS REPREENDIDOS POR BISSAU,UMA VEZ QUE OS DITOS SE HAVIAM QUEIXADO A UM QUALQUER "VIRAVENTO" INSTALADO NO AR CONDICIONADO...
TAL COMO A TUA COMPANHIA,TAMBÉM A MINHA AQUANDO DA PASSAGEM POR CAFAL BALANTA E CAFINE CONSTRUIU REORDENAMENTOS E ERIGIU AS SUAS PRÓPRIAS HABITAÇÕES( SÓ DEPOIS DO NÚMERO SOLICITADO POR BISSAU TER SIDO OBTIDO...) E ÓBVIAMENTE SENTIRÍAMOS BASTANTE TER DE ENTREGAR O QUE FÔRA FEITO COM CARINHO E MUITO ESFORÇO.

UM GRANDE ABRAÇO

MANUEL MAIA

Anónimo disse...

Vejam bem, camaradas, como são as coisas!
Vem o Vasco dar público conhecimento da sua complicada situação em Cumbijã em 1974, face à necessidade de entregar o aquartelamento ao PAIGC, na sequência da dupla libertação, Lisboa e Bissau, e da decisão nacional de descolonizar; vem ele mostrar-nos hoje, revivendo as contradições psicológicas vividas então e que, ao que parece ainda hoje lhe mantém dúvidas...e vai daí, cada um interpreta como convém às suas convicções pessoais, uns dando parabéns pela recusa no respeito pelos seus mortos, outros assinalando a legitimidade da alegria e de alguma festa partilhada.
Fica bonito o quadro!
Acho que razão têm os que, humildemente rfeconhecem a enrascada em que se sentiriam se tivessem estado na situação do Vasco.
Já disse muitas vezes que quando daqui parti julgava justa a luta do PAIGC, mas no entanto parti e disparei contra eles sem que me sinta culpado.
Mas que gostei do fim da guerra que nunca deveria ter começado, isso gostei.
Festejaria, sim, não sei se sozinho chorando e cantando, se acompanhado.
Abraços
José Brás

Anónimo disse...

Olá Vasco, sê bem-vindo

Já há algum tempo que não tínhamos o prazer de ler as tuas “banalidades” como lhe chamas, cá estás e, pelo que parece, vivinho da silva, sinal de boa saúde.
Gostei do teu texto mas achei-te um bocado amargo no teu relato, sobretudo, penso eu, devido ao destino inglório de tanto esforço, vidas e cabedais de que resultou uma mão cheia de nada. Acredito que, apesar do teu desabafo, não se terá perdido tudo e hoje, aquela boa gente continua ligada connosco, aos “colonizadores”, basta ver a forma como são recebidos os que dentre nós lá têm ido em visita.
Não gostei da forma como te referiste aos encontros com o PAIGC depois do 25 de Abril. Posso falar-te por experiência própria, porque isso aconteceu comigo. Quando aconteceu o 25 de Abril a minha companhia já tinha 22 meses de mato. Estávamos fartos de mato, da segurança às estradas em construção, exaustos e o pior é que a companhia, CART 6250, parecia o “peão das nicas”, companhia independente é no que dá. Quando um bigrupo do PAIGC veio a Mampatá em Junho de 1974, a guerra já tinha ficado para trás, embora muito recente, tinham sido levantados os campos de minas e o que queríamos era ir embora para casa e para a outra família e é, nesta ambiência, que surge este contacto. Quero acrescentar, que a minha companhia só conseguiu regressar em Agosto de 1974 com 26 meses e a minha importante pessoa, por ficar na Comissão Liquidatária, só regressou em Outubro, com 28 meses, é dose!
Subserviente a CART 6250? Porquê? Acho que as duas companhias, a minha e a tua, a CART 6250 e a CCAV 8351, se conheciam bem. Trilhámos os mesmos carreiros da mata, limpámos Colibuia e Cumbijã, fomos juntos a Nhacobá e sei lá que mais! Os abraços que se deram, as prendas que se trocaram nada têm a ver com amizade, são o resultado da euforia do momento que se vivia. Não esqueçamos que eles também eram combatentes como nós, que sofreram e tiveram mortos, como nós.
Para mim, a grande nódoa de todo este processo, não foram as pequenas euforias de jovens, a maior parte com menos de 24 anos, a pensar já no regresso às suas famílias, o que manchou verdadeiramente este processo e onde houve subserviência, não só ao PAIGC mas a todos os outros movimentos, terroristas como se chamava então, de libertação como se chamaram depois, foi a entrega, de bandeja, da soberania do território, sem uma fase de transição, que deveria ser supervisionada pela ONU, tendo deixado as populações totalmente desprotegidas, sobretudo aquelas que confiaram em nós e não se tendo salvaguardado a integridade e o respeito pelos ex-combatentes que nos apoiaram.
Num dos comentários pareceu-me que alguém interpretou que as N.T. estavam desarmadas. Não consigo entender uma força armada sem armas. A minha companhia só entregou as armas em Bissau, antes de embarcar.
O comentário já vai longo, desculpem qualquer coisinha.

Carlos Farinha

Anónimo disse...

VASCO

Não estou aqui para dizer que concordo ou que discordo nem para falar de coerência ou incoerência. Venho só dizer que... GOSTEI MUITO.

(Dizem os norte-americanos:"Mixed feelings")
Um abraço
Alberto Branquinho

mario gualter rodrigues pinto disse...

Para os camaradas
V. Gama, Manuel Reis e C. Farinha

Quando anos antes palmilhei os mesmos trilhos, bolanhas e tabancas, combatendo o mesmo opositor, longe de imaginar o que estava reservado aos camaradas das Companhias posteriores-

Ao ler as vossas exposições e interrogações, só posso agradecer á sorte divina que permitiu ter lá estado noutra época e noutra altura.


Um abraço

Mário Pinto

Anónimo disse...

Caríssimo Vasco:
A amizade, o respeito e a admiração que mereces da minha parte, de algum modo me contem o discurso. Mas... a amizade implica franqueza e, assim, aqui a tens.
Sabes melhor do que eu, da história distante e próxima, de casos em que os inimigos de ontem se abraçam pondo fim a uma relação de conflito. Nalguns casos esse abraço é o ponto de partida para a construção de uma nova vida de paz e prosperidade.
Em Mampatá, com cerca de 2 anos de mato, o encontro com o inimigo de ontem foi um dia de festa porque significava, definitiva e inexoravelmente, o fim do conflito e a certeza de que regressaríamos vivos. Quanto aos que nos tínham morrido ou que vimos morrer...não os esqueci, trago-os comigo. Não posso passar em Barcelos sem ler o poema do Zé Manel na campa do Albuquerque.Há dias fiz uma jornada de visitas a campas dos nossos (meus) mortos,por Pinhel, Satão e S.Pedro do Sul.Tivesse havido lucidez por parte de quem nos governava e milhares de vidas perdidas ingloriamente, na flor da idade, tinham sido poupadas.Sei que é difícil lembrarmo-nos dos mortos deles quando o nosso coração sangra pelos nossos mas eles também morreram e causaram dor aos seus familiares e amigos.
Há dois grandes momentos indissociaveis: o 25 de Abril e os abraços ao inimigo de ontem.
Estou plenamente de acordo com a posição do Farinha quando defende a fixação no terreno de tropas da ONU para, num regime provisório, assegurarem uma transição pacífica, sem actos de vingança selvagem do PAIGC sobre aqueles que estiveram do nosso lado.

Um grande abraço
Carvalho de Mampatá