quinta-feira, 22 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6210: Os gloriosos malucos das máquinas voadoras (21): Meu tenente, eu e o Tomás Camará não vamos com o Honório! (Amadu Djaló)


Guiné > Brá > Comandos do CTIG > Junho de 1965 > Cap Mil Comando Maurício Saraiva > Idolatrado por uns, odiado por outros, foi um mal amado, diz o Virgínio Briote... O Amadu Djaló, por sua vez,  foi um dos oito "negros" (sic) - a par do Marcelino da Mata, do Tomás Camará e outros - a participar "no 1º curso de quadros para os Comandos do CTIG", que teve início em 3 de Agosto de 1964  (Amadu Bailo Djaló - Guineense, Comando, Português. Lisboa: Associação de Comandos, 2010, p. 82). O seu primeiro comandante, no Grupo Fantasmas, foi o Alferes Saraiva (entretanto promovido a tenente e depois capitão).

Foto: © Virgínio Briote (2006). Direitos reservados


1. A leitura do livro de memórias do Amadu Djaló tem sido, para mim,  uma verdadeira surpresa. Mesmo já conhecendo, superficialmente, o autor, e sabendo, por alto, algumas das peripécias da sua vida como pessoal e militar (tem "treze anos de serviço militar"), através do Virgínio Briote, dou-me agora conta de que é um testemunho humano, singelo, mas  de valor, com bastante interesse, do ponto de vista sócio-antropológico, para um melhor conhecimento do passado da  Guiné-Bissau e em especial do período da guerra colonial,  como para a construção do presente e até do futuro. 

O título do livro pouco tem a ver com o conteúdo. É claramente um título, forçado pelo marketing, com o objectivo de vender, o que no caso do Amadu até é um objectivo relevante, sabendo-se que ele tem 10% sobre o preço de capa e é um homem pobre e doente. Guineense, comando, português é claramente uma concessão aos  brancos ou europeus (como ele nos chama, quase sempre) e, muito naturalmente, ao gosto da Associação dos Comandos que editou o livro, na colecção Mama Sume (é o 2º título, depois de 25 de Novembro de 1975: Os comandos e o combate pela liberdade, de Manuel Amaro Bernardo, Francisco Proença Garcia e Rui Domingues da Fonseca).

Se um homem é sempre ele próprio mais as suas circunstâncias (, logo determinado pela historicidade), o Amadú é uma espécie de Sancho Pança guineense, servindo diversos Dom Quixotes, do Saraiva ao Spínola, mas também poderia ter sido o Nino Vieira ou o Amílcar Cabral, como ele próprio admite, quando a páginas 30/31 evoca a tentativa de aliciamento, para ingressar nas hostes do PAIGC, em Julho de 1961, por parte de Adulai Djá,  "un colega meu de Bissau" (que, tendo militado nas fileiras do PAIGC, chegaria a ser 2º comandante da base principal do Morés; mais trade morto num ataque de Comandos helitransportados, em data não especificada pelo Amadu, p. 30, nota de rodapé).

Nessa altura, o Amadu ouvia, em Catió, na casa de um cipaio,  a rádio de Conacri e confessa que chegou a estar "hesitante" (sic) (p. 31), entre aderir ou não aderir ao PAIGC, numa altura em que "toda a gente falava de um tal Nino Vieira que tinha fugido da prisão da administração de Catió", ajudado por um cabo cipaio, por sinal cunhado do João Bacar Jaló) (p. 30)...

O Amadú acabou por ir para a tropa portuguesa ("tropa era uma obrigação"), depois de um série de peripécias que meteram o pai, os primos do Senegal (militares do Exército francês), o administrador de Bafatá, o tenente Carrasquinha, do BCAÇ 238 (que tinha um fraquinho pela prima, bonita, Aua Djaló)... Em suma, o Amadú poderia estar hoje no Senegal ou até em França, como poderia ser hoje  um grande Combatente da Liberdade da Pátria, vivo ou morto. É um ponto (controverso) da vida do Amadú, a que poderemos voltar em breve. (De resto, ele confessa como,  naqueles tempos,  "era difícil ser bom português", p. 14; "nós, Povo da Guiné, antes da guerra, mal conhecíamos o Povo Português", p. 15)...

O que eu agora quero sobretudo sublinhar é o talento narrativo do Amadu. Como bom africano, ele é um homem da cultura oral e, logo, um grande contador de histórias. E essa oralidade,  espontânea (mesmo em português que não é a sua língua materna...), perpassa por todo o livro, graças ao talento de outro homem, o Virgínio Briote, à sua paciência, perserverança, bom senso, bom gosto, sentido de ética e camaradagem.

Há, ao longo do livro, uma mão cheia de boas histórias: umas  dramáticas, pungentes e reveladores da  grande nobreza humana do Amadu, das suas crenças, superstições e valores morais (como a cena, passada em Gundagé Beafada, no Xime, em que ele salva o menino turra, Malan Nanque, leva-o às costas para Bambadinca e adopta-o como filho: vd. pp. 91/93); outras, cómicas, burlescas e divertidas, como esta que aqui se reproduz... (com a devida vénia, e como aperitivo para os que ainda não compraram ou não leram o livro).

2. O meu adeus à guerra dos Fantasmas
por Amadu Bailo Djaló

Em [6] de Maio de 1965 fomos para Cacine com o objectivo de executar um golpe de mão a um acampamento em Catunco. Era a última operação do grupo Fantasmas e, por isso, o tenente [Maurício Saraiva, comandante do grupo] pôs-lhe o nome de Ciao.

Em Brá tivemos a manhã para preparar tudo. Depois, fomos em viaturas para o aeroporto de Bissalanca, onde estavam quatro avionetas à nossa espera. O tenente dirigiu-se ao Furriel Morais,  que já tinha acabado o tempo de comissão [, e que haveria de morrer umas horas depois, na madrugada do dia seguinte, no ataque ao acampamento de Catunco, e onde o próprio Amadú seria ferido], e disse-lhe:
– Vocês esperam pelo Honório, que parece que ainda não está pronto.
 – Meu tenente, eu não vou no avião do Honório! Custa-me muito faltar à operação, mas eu não vou! – disse eu.

O Tomás Camará [, futuro tenente comando graduado, da 1ª CCmds, do Batalhão de Comandos, mais tarde fuzilado pelo PAIG, ] disse também que, com o Honório, não ia. Então o tenente [ Saraiva] disse que as avionetas que os iam levar, regressavam para depois levar o resto do grupo. Visto que um dos pilotos concordou, eu e o Tomás Camará ficámos a aguardar. As três avionetas levantaram com o pessoal e, passados dez minutos, vimos o Furriel Honório a dirigir-se para a sua Dornier. Virou-se para nós e disse:
– Vamos ?

O Furriel Morais e um soldado europeu foram ter com ele.
– Só vão vocês os dois ?
– É, eles dizem que não vão na sua avioneta!
– Mas, porque não ?

Saiu da avioneta e dirigiu-se para nós. Cumprimentou-nos e perguntou:
 – Por que é que vocês não querem ir comigo ?

Olhámos para o lado, nenhum de nós deu resposta. Ele disse:
– É, pá, isso é uma grande vergonha para nós! Eu sou preto. Levo brancos, que têm confiança em mim e vocês, que são meus patrícios, não querem ir na minha avioneta ? Vamos embora, pá, não há problemas!
– Eu não gosto de manobras no ar e o Tomás também não !
– Eu não faço nenhum tipo de manobras!

Depois pegou nos nossos equipamentos e disse:
 – Vamos embora!

Não havia outra maneira! Muito contrariados, embarcámos na avioneta. Tomou altura, virou para o sul e o voo correu muito bem até ao campo de Cufar. Aí o Honório viu um homem a andar sozinho, apontou o dedo e disse alto:
–Vou assustá-lo.

Eu já não sabia onde me meter. Ele baixou a avioneta e passou por cima do homem, que continuou a andar com calma.
– Ai, ele não fugiu ? Então, vou acertar-lhe com a asa da avioneta!

E baixou outra vez e ainda mais, parecia que ia atrerrar ali. O homem viu aquilo, que não era nada normal, e saltou para junto de uma árvore. Mas agora, para retomar altura,  é que me parecia mesmo muito difícil. Ao homem, a árvore tinha-lhe salvo a vida e a nós, pouco faltou para perdermos as nossas.

A partir deste incidente, nenhum de nós abriu mais a boca, até chegarmos a Cacine. Esta pequena vila fica junto ao rio. O piloto parou o motor e mergulhou, mergulhou. Só víamos água à nossa frente. Naquela altura, eu disse para comigo, até aqui foi brincadeira, mas agora ele não vai poder controlar a avioneta e vamos morrer todos. Era só água que eu estava a ver, tapei a cara para não ver mais nada e gritei com força. Ouvi o Tomás também aos gritos. De um momento para o outro, senti o estômago na boa, o avião estava a levantar, outra vez, a pique. Mesmo assim vi os morangueiros bem perto e, logo depois, entrou directo na pista e aterrou.

Saltou cá para fora, abriu a porta a cada um de nós e, quando sem qualquer tipo de fala, lhe virámos as costas, ele apalpou-me o rabo, para saber se eu tinha borrado as calças (…).

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Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série > 4 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P5935: Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras (20): O Honório e o 2º Sarg que dizia que se aguentava (Vítor Oliveira)

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