segunda-feira, 19 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6190: Os nossos seres, saberes e lazeres (19): Nas Caraíbas, em Castries, capital da ilha de Santa Lúcia, encontrei um amigo negro da Guiné e depois fui almoçar com uns americanos ricos (António Graça de Abreu)






1- Caraíbas > Ilha de Santa Lúcia > Castries >  St. Lúcia, é ou não é parecido com a Guiné?




2- Caraíbas > Ilha de Santa Lúcia > Castries > Bissau ou Caraíbas?


3- Caraíbas > Ilha de Santa Lúcia > Castries > O meu amigo com tetravós na Guiné prepara o seu arroz de peixe, sem peixe.


4- Caraíbas > Ilha de Santa Lúcia > Castries > O arroz... sem mafé.



5- Caraíbas > Ilha de Santa Lúcia > Castries > Sandals Resort > O bar na piscina dos ricos. Aqui bebi duas das melhores cervejas da minha vida. Melhor só na Guiné.



6- Caraíbas > Ilha de Santa Lúcia > Castries > A praia no Sandals Resort, St. Lucia.


7- Caraíbas > Ilha de Santa Lúcia > Castries > Sandals Resort > Pastelinhos de bacalhau, ou coisa parecida, à moda das Caraíbas. Deliciosos!

Fotos e legendas.  © Graça de Abreu (2010). Direitos reservados





1.
Texto do nosso camarada António Graça de Abreu, enviado em 11 do corrente (*):

Comecei a escrever um Diário em Outubro de 1963, tinha dezasseis anos. E nunca mais parei, são milhares de páginas com parte da minha vida esparramada, pontuada, condensada. O meu Diário da Guiné 1972/1974 corresponde exactamente aos textos que escrevi durante a comissão em Teixeira Pinto, Mansoa e Cufar. Essas centenas de páginas estavam guardadas há muitos anos e em 2007 foi só ir buscar, melhorar ao de leve o português e publicar.

Trabalho neste momento no meu Diário de Pequim 1977/1983, os muitos textos que escrevi durante a primeira longa estadia na China, cinco anos em Pequim, sete meses em Xangai, e viagens, muitas viagens por dentro da China.

Continuo a escrever o Diário, agora mais espaçadamente, quase só em dias muito especiais.

O mês passado fiz um cruzeiro, não no Carvalho Araújo nem no Niassa, mas no navio Pacific Dream por cinco ilhas das Caraíbas. Não conhecia, foi uma semana de excelentes prazeres e recomendo vivamente a todos os camaradas da Guiné. Por mil e poucos euros temos a viagem de avião, via Madrid, e depois o bem bom de um navio moderno, com tudo incluído, (comer e beber como um rei!) a sulcar mares calmos e a deixar-nos em ilhas e praias maravilha, recantos do paraíso na Terra. Vivam a vida, meus caros camaradas da Guiné, gastem uns tostões. Estamos todos sexagenários ou septuagenários e dinheiro, mesmo quando não é muito, é coisa que não vamos levar para a cova ou para o crematório

A primeira ilha a que aportámos chamava-se Santa Lúcia. Nem sequer sabia que existia. No meu Diário escrevi então:

St. Lúcia, 9 de Março de 2010

O navio chegou a esta ilha às oito da manhã, com o dia já bem nascido. Entrou por uma enseada em busca do cais. Ainda no mar, na linha de costa fora da baía, vi ao longe uma praia linda, um rebordo de areia e casas bonitas. Não me pareceu longe do local onde o navio atracou e decidi ir até lá, sozinho, a pé, atravessando o pequeno burgo, circundando a enseada. Saí do Pacific Dream com sapatos de ténis, uns calções de banho largos, a t-shirt Lacoste, made in China, a máquina fotográfica, pequenina, digital e cinquenta dólares no bolso.

Primeira surpresa, a população da cidade -  Castries, assim se chama - era toda negra e imaginei Bissau. Os cheiros, os mercados, as frutas, o colorido tinham semelhanças. E que gente tão simpática, sorridentes, afáveis como os nossos amigos da Guiné!... São os descendentes dos escravos que, nos séculos XVIII e XIX,  os navios negreiros foram buscar às costas de África e trouxeram para estas paragens a fim de trabalharem, por exemplo, na cana-do-açúcar em condições infra-humanas. Quanto não sofreram os antepassados destes negros hoje espalhados pelas Antilhas e Caraíbas!

Atravessei a cidade e continuei a caminhada em busca da tal esplendorosa praia.

E a praia não aparecia. Subi, desci, subi por caminhos rodeando a costa rochosa e a praia parecia não existir. Andei uns bons quilómetros, era meio dia, eu ia na direcção certa, mas nada de praia. Resolvi perguntar. Na berma do estradão de terra,  um negro igualzinho a um manjaco, balanta ou bijagó, fazia o seu almoço, numa panela com lenha a arder por baixo. Meti conversa em inglês, a língua que se fala na ilha. How are you, hey, having a nice lunch!... 


Simpático, o rapaz disse-me que era fish rice, arroz de peixe. Olhei para a panela, cheia de arroz quase cozido, mais umas lentinhas e uma espécie de coentros ou salsa por cima. Não vi peixe nenhum e perguntei-lhe:
- Where is the fish?

Sempre sorridente, o negro disse-me que não tinha peixe, mas aquilo era arroz de peixe,  só que ele era pobre e não tinha conseguido o peixe. Convidou-me a provar o seu arroz de peixe, sem peixe. Agradeci, mas eu queria era ir para a praia. 
- Where is the beach

Apontou-me lá para baixo e respondeu: 
- No way from here, and it's private.

Praia privada, e não há caminho para se lá chegar… Andei eu uma data de quilómetros, já me doem os pés dentro dos ténis e agora volto estupidamente para trás….

O meu amigo recente, descendente dos nosso irmãos negros da Guiné, concluiu o nosso diálogo mais ou menos nos seguintes termos:  Se entrar na floresta e descer por aí abaixo, vai a corta-mato e acaba por chegar ao resort. (afinal era um resort, um complexo hoteleiro), mas avisou-me, para ter cuidado com as iguanas na floresta, eram verdes e tinham meio metro.

E cobras? Ah, cobras, pois também há umas cobras pequenas!

Sou Carneiro, teimoso e decido. E gosto de répteis. Na vivenda do CAOP 1 em Teixeira Pinto tínhamos um lago com crocodilos pequenos, negros e valentes. Uma vez, num dos meus crosses em Cufar, já em 1974, na extrema a pista de aviação matei uma cobra verde, a pontapé, daquelas que diziam ser altamente venenosas. Regressei ao aquartelamento com a cobra atada ao pescoço, a modo de colar. A bicha ainda mexia e os meus soldados fugiram a sete pés. Oh, meu alferes, o meu alferes é maluco! Devo ser, ao fim destes anos todos o meu juízo ainda se avaria, de quando em quando.

Regressemos a St. Lúcia.

Despedi-me do meu amigo negro e lá fui pela floresta. Depois desci pela ribanceira, agarrando-me às lianas e à vegetação luxuriante, à espera de calcar uma cobrazinha de estimação ou uma qualquer iguana pitosga ou transviada. Só encontrei colibris, aqueles passarinhos bonitos pouco maiores do que besouros.

Quando cheguei lá abaixo, estava dentro do campo de golfe  do resort. Entrara quase aos trambolhões pela porta do cavalo. Caminhei em direcção à praia. Os empregados negros tomaram-me por um golfista, sem taco, e cumprimentavam-me afavelmente. Estava na praia. Tudo cheio de americanos anafados, ao sol, de barriguinha proeminente como a minha. Um excelente banho de mar. Depois fui buscar uma toalha de praia do resort, coloquei-a numa espreguiçadeira e deitei-me de papo para o ar, junto à deslumbrante piscina. Estava com uma sede de morte. Dentro da piscina, um bar servia bebidas aos felizes usufrutuários daqueles luxos. Agora eu era um deles. Como ali o sistema era "Tudo Incluído", comia-se e bebia-se sempre à descrição. 


Fui nadar para a piscina, cheguei-me ao bar metido na água e pedi a uma empregada negra, uma bajuda já crescida com trisavós na Guiné, acho eu, pedi uma cervejinha. Que delícia! 
- One more bear, please

Não sei se há cerveja no céu, mas eu estava no paraíso e aquelas duas cervejas souberam-me divinamente.

Eram quase duas horas da tarde. Ao lado da piscina, os americanos ricos começavam a aproximar-se, a servir-se do requintado buffet. Juntei-me a eles e pestisquei gloriosamente uns tantos peixes e carnes grelhadas, saladas, comida caribenha, sei lá, um delicioso almoço onde até apareceram uma espécie de bolinhos de bacalhau que me souberam pela vida.

Lembrei-me do meu amigo negro, lá em cima, a comer o seu arroz de peixe, sem peixe. Mas o mundo é assim, tanta desigualdade, tanta injustiça!

Regressei ao navio, ainda a pé, mais uns quatro quilómetros agora por uma boa estrada de asfalto. Ao sair do Sandals Resort St. Lucia (vejam no google), o empregado do portão da recepção e um segurança saudaram-me com um enorme sorriso.

Quando cheguei ao Pacific Dream, eram quase cinco da tarde e a minha mulher chinesa, preocupada, perguntou-me:
- Por onde é que tu andaste?
Respondi:
- Fui à praia, encontrei um amigo negro da Guiné e depois fui almoçar com uns americanos ricos.

António Graça de Abreu

_______________


Nota de L.G.:

(*) Último poste desta série >  21 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6032: Os nossos seres, saberes e lazeres (18): Conversa com o meu neto (Jaime Machado)

3 comentários:

Anónimo disse...

A.Graça Abreu

Gostei,gostei bastante.
E... tudo incluido!! Boa!

Um abraço
Luis Faria

Anónimo disse...

António,

ELE leva-te através de Buda, Ghandi e outros Grandes, a viver a humanidade DELE na beleza da tua poesia, fazendo renascer o Homem Novo, doando para todos os outros irmãos, numa simplecidade estonteante,
a verdade humana.

É verdade! "Pêxe" cá tem!

Como tu és grande! Dizendo a verdade com tanta simplecidade!

Amanhã não serás esquecido, porque a tua poesia não o deixará!

Obrigado, pela sábia maneira que com humildade, dizes coisa grandes.

Canta o nosso Cumbijã! Do seu tamanho o já velhinho abraço, com farda amarela.

Mário Fitas

Hélder Valério disse...

Caro António

Bela aventura!
E sem perigos de..... "vocês sabem do que é que eu estou a falar..."

A sério, prosa leve e uma boa descrição!
Abraço
Hélder S.