segunda-feira, 12 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6144: O Spínola que eu conheci (6): Depoimentos de Paulo Raposo e Luís Graça



Apresentação do livro Spínola: Biografia, da autoria do historiador Luis Nuno Rodrigues (Lisboa, A Esfera dos Livros, 2010). Local: Lisboa, Fundação Mário Soares, 8 de Abril de 2010. 2ª parte da intervenção do Embaixador João Diogo Nunes Barata, antigo chefe de gabinete de Spínola na Guiné. Neste excerto, são abordados dois capítulos do livro, correspondentes à carreira militar de Spínola durante a guerra colonial (Angola e Guiné). Afirmação de Spínola como "grande político" na Guiné.


Vídeo (4' 17''):  © Luís Graça (2010). Direitos reservados (Alojado na conta You Tube > Nhabijoes)




Guiné > Algures > Maio de 1973 > A 25 Costa Gomes, Chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, dá início a uma visita ao Comando Territorial Independente da Guiné (CTIG), para se inteirar do agravamento da situação militar e analisar medidas a tomar  com vista a garantir o espaço de manobra do poder politico. Uns dias antes, a 22, Spínola tinha mandado um telegrama ao Ministro da Defesa, com o seguinte teor: "Conforme seu pedido telefónico informo que sob pressão IN comandante local mandou evacuar Guileje e destruir acampamento sem ordem deste comando. Trata-se de lamentável estado de pânico perante  manifesta superioridade inimigo o que em caso algum justifica tal decisão. Esclareço  Guileje estava sem comunicações Bissau virtude destruição antena pelo inimigio. Mandei levantar auto corpo de delito comandante responsável. Insisto pedido reforços" (Fonte:  Carlos Matos Gomes e Aniceto Afonso - Os anos da guerra: volume 14: 1973: perder a guerra e as ilusões. Matosinhos: QuidNovi, 2009. p.46).

Na foto, vê-se o Gen Costa Gomes à direita de Spínola, falando com milícias guineenses. Foto do francês Pierre Fargeas (técnico que fazia a manutenção dos helis AL III, na BA 12, Bissalanca), gentilmente enviada pelo nosso camara Jorge Félix (ex-Alf Mil Pil Heli, BA12, Bissalanca, 1968/70).

Foto: © Pierre Fargeas / Jorge Félix (2009). Direitos reservados.


1. Continuamos a publicar pequenos depoimentos de camaradas nossos que estiveram, no TO da Guiné, no tempo de Spínola (entre Maio de 1968 e Agosto de 1973). São excertos de textos já publicados no nosso blogue (I e II Séries). São pequenos contributos para o conhecimento (e apreciação crítica) daquele que terá sido porventura o mais o mais falado, criticado, idolatrado, carismático, detestado e controverso dos nossos comandantes militares durante  a guerra colonial. Spínola nasceu há 100 anos, em Estremoz, a 11 de Abril de 1910, no final da monarquia, ainda no reinado de D. Manuel II. O nosso blogue fica aberto à publicação de novos testemunhos e comentários sobre Spínola, o Governador e Comandante-Chefe da Guiné (1968/73).


(i) Paulo Laje Raposo (ex- Alf Mil, CCAÇ 2404 / BCAÇ 2852, Mansoa, Galomaro, Dulombi, Julho de 1968/ Maio de 1970)

 (...) Chegámos a Bissau nos primeiro dias de Agosto [de 1968]. Depois de uma noite mal dormida, e cheios de picadas de mosquito, lá fomos para os adidos em Brá. Os dois Batalhões [BCAÇ 2851 e 2852] formaram na grande parada e o então Brigadeiro Spínola passou revista às tropas e fez a sua saudação.

 Spínola tinha chegado há pouco tempo à Guiné [, em Maio de 1968, ] e esta foi a primeira cerimónia deste género que realizou. Acabadas as cortesias, ouve-se o toque a Oficiais e vamos para um briefing. Reunimo-nos numa sala pequena. Nós, os chegados, fomo-nos sentando em várias filas de cadeiras. À nossa frente estava uma pequena mesa aonde se sentou ao centro o Brig Spínola, Governador e Comandante Chefe da Província, à sua direita o Brig Nascimento, 2º Comandante Militar, e à sua esquerda, o Comandante Militar Brig Novais Gonçalves, que já estava no fim da sua Comissão.

 Não me recordo do teor do discurso proferido por Spínola, mas deve ter sido no sentido de apelar ao nosso patriotismo e responsabilidade na condução dos homens que tínhamos à nossa guarda. Após o discurso veio cumprimentar-nos, um a um. Quando chegou a minha vez, eu estava altamente perfilado, pois nunca tinha cumprimentado alguém com tantas estrelas nos ombros. Duas eram de Brigadeiro e as outras quatro de Comandante Chefe, em ambos os ombros. Ele põe-se em frente de mim, cumprimenta-me e eu também e, à queima-roupa, diz-me:
- Você tem sorte.

Eu, sem saber bem o que me esperava, digo muito timidamente:
 - Porquê, meu Comandante?
 - Porque quando começar a ouvir os tiros, já está mais perto do chão.

 Também tinha humor. A meu lado estava o Alferes Felício, que é uma viga, e que a meu lado ainda parece maior. O nosso Comandante Chefe diz-lhe o inverso:
 - Você que se cuide.

Realmente, aquele homem, com a sua voz rouca e arrastada, de luvas, com monóculo e o pingalim, impressionava qualquer um. A imagem de bravura que transmitia correspondia à sua maneira de ser. Nele tudo era verdadeiro e genuíno. (...)


 (ii) Luís Manuel da Graça Henriques  (ex-Fur Muil, CCAÇ 2590 / CCAÇ 12, Contuboel e Bambadinca, Maio de 1969/Março de 1971) (***)

 Bissau, 10 de Fevereiro de 1970 

(...) De facto, aqui [,em Bissau,] desaguam todos os rios humanos da Guiné: a carne que já foi do canhão e agora é do bisturi (ou dos vermes, em caixões de chumbo, discretamente empilhados, à espera que o Niassa ou o Uíge ou o Alfredo da Silva os levem nos seus porões nauseabundos); os desenfiados, como eu, todos os que procuram safar-se do inferno verde, quanto mais não seja por uns dias ou até umas breves horas, que o tempo aqui conta-se, de cronómetro na mão, até à fracção de segundo; os prisioneiros de guerra, esfarrapados, andrajosos, a caminho da Ilha das Galinhas; as populações do interior desalojadas pela guerra; os jovens recrutados para a nova força africana; enfim, os [alegados] criminosos de guerra como o capitão P. que está aqui detido no Depósito Geral de Adidos à espera de julgamento em tribunal militar – suponho eu -, juntamente com um furriel miliciano da sua companhia. Ambos estão implicados em vários casos, muito falados, de violação e assassínio a sangue frio de bajudas, além da tortura e liquidação de suspeitos…

 (...) A propósito, como os tempos mudam, meu caro!.. Em conversa com um sargento de cavalaria que teve o Velho [, uma das alcunhas de Spínola,] como comandante de batalhão no Norte de Angola – conversa a que ocasionalmente assisti -, o Capitão P. (que eu não sei, nem me interessa saber, se é miliciano, ou se é do quadro, ça c'est m´égale!), mostrava-se vexado (o termo é dele) pelo facto do então tenente coronel ameaçar executar, in loco, sumariamente os guias nativos que mostrassem a mais pequena hesitação na escolha dos trilhos ou os carregadores que deliberadamente deitassem fora a água dos jericãs...
- E agora, como Com-Chefe na Guiné, não permitir sequer que se toque no cabelo de um preto!

 Bissau, enfim, porto de fuga e salvação!... Embora não se possa exactamente prever até onde tudo isto irá parar, com a actual escalada da guerra, de parte a parte, aqui tu tens ao menos a reconfortante sensação de teres as malas sempre feitas, pronto a partir em qualquer altura… Mas nada te garante que embarques a tempo: é que estamos todos metidos num atoleiro e em vias de perder o último avião!... Make love, not war. Um abraço. Até mais logo. Talvez apanhe o barco da Gouveia, amanhã. Já estou farto desta merda. (...)

 Ponte do Rio Udunduma, 3 de Fevereiro de 1971 (****)

(...) De visita aos trabalhos da estrada Bambadinca-Xime [, a cargo da TECNIL], esteve aqui de passagem, com uma matilha de Cães Grandes atrás, Sexa General António de Spínola, Governador-Geral e Comandante-Chefe (vulgo, o Homem Grande). Eu gosto mais de chamar-lhe Herr Spínola, tout court. De monóculo, luvas pretas e pingalim, dá-me sempre a impressão de ser um fantasma da II Guerra Mundial, um sobrevivmente da Wermacht nazi.

 Mas o que é que faz correr este velho soldado, como ele próprio gosta de se chamar ? É difícil adivinhar-lhe a sua paixão secreta, o seu móbil, sob a sua impassibilidade de samurai (ou de figura de cera?): a mitomania, o culto da personalidade ou, hélàs!, a presidência da república ...

 Há qualquer coisa de sinistro na sua voz de ventríloquo, no seu olhar vidrado ou no seu sorriso sardónico: talvez seja a superioridade olímpica do guerreiro.

 Cumprimentou-me mecanicamente. Eu devia ter um aspecto miserável. Eu e os meus nharros, vivendo como bichos em valas protegidas por bidões de areia e chapa de zinco. O coronel (?) que vinha atrás do General chamou-me depois à parte e ordenou-me que, no regresso a Bambadinca, cortasse o cabelo e a barba…

 A visita-surpresa do Deus-Todo-Poderoso foi o meu único monumento de glória em toda esta guerra… Ao fim de vinte meses!... Só quero regressar, são e salvo, a casa, daqui a um mês e, se possível, levar comigo a barba que deixei crescer… na Guiné, longe do Vietname.  (...)

____________

Notas de L.G.:

(*) Vd. último postre da série > 10 de Abril de 2010 >  Guiné 63/74 - P6138: O Spínola que eu conheci (5): Os depoimentos de Joaquim Mexias Alves e José Manuel Matos Diniz

 (**) 5 de Maio de 2006 > Guiné 63/74 - DCCXXVIII: O meu testemunho (Paulo Raposo, CCAÇ 2405, 1968/70) (4): Em Bissau com Spínola

(***) 14 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2264: Blogue-fora-nada: O melhor de... (3): Carta de Bissau, longe do Vietname: talvez apanhe o barco da Gouveia amanhã (Luís Graça)

(****) 30 de Setembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1132: Spínola e os seus 'Cães Grandes' na ponte do Rio Udunduma (Luís Graça)

8 comentários:

Anónimo disse...

Camaradas: Gostava de saber onde foi tirada a foto do Spínola com o Costa Gomes. Alguém tem uma pista (ou palpite) ? Um Alfa Bravo do Luís Graça

Anónimo disse...

Uma Avenida em Lisboa com o nome do Marechal Spínola, é um pouco uma rua com o nome de cada combatente da Guerra do Ultramar.

A Guerra do Ultramar existiu, e teve um principio e um final.

E tanto como qualquer soldado ou marinheiro, tanto como qualquer general ou almirante, que desse o nome aquela avenida, nenhum nome seria tão consensual.

Ele esteve em todos os momentos daquela guerra, absolutamente exposto.

Antº Rosinha

Anónimo disse...

Camaradas
Uma coisa é certa: o" Caco Baldé" "tinha-os no sítio e bem pretos " pois arriscava-se aonde os Ten.Cor. Comandantes de Batalhão e alguns capitães QP , comandantes de Compª não iam. Os meus Comandantes de Batalhão, Ten Cor.Cav. Chaves Guimarães, saíu uma vez para N.Lamego para ir de ferias, sofreu uma emboscada, andava lá parecia uma barata tonta, de gatas conforme testemunhos presenciais. Quando regressou de férias, passado pouco tempo tivemos a visita do "Caco" que o apanhou às 9 h da manhã na cama, mandou convocar uma reunião e após esta, destitui-o do Comando, e esperou por ele no heli e levou-o com as malinhas para Bissau.
O outro que o substituiu , Ten.Cor.Cav. Paixão Ribeiro, só saia de DO ou heli.
Alfa Bravo
Luís Borrega

Anónimo disse...

Vamos ver se ajuda!

Mais pista que palpite.

O homem que está à esquerda do Gen. Spínola (aqui no Blog uma vez escrevi "Caco" e caiume em cima o Carmo e a Trindade)pois bem esse homem de óculos escuros encoberto por um indíviduo de cor, foi o Comandante dos "Lassas" em Cufar e pouco depois da foto, Comandante do COP3. A pista está lançada.

Porqê os homens que escrevem sobre a Guerra não falam deste Homem? Todos eles sabem quem é! O não falarem terá algo que não pode ser dito?...
Consta-se que era dos poucos ou único
de Infantaria que rodiava o Velho, mas sabedor militar.
Sei que os eruditos irão dizer que é conversa de caserna, mas... Esse homem disse-me que "O Velho" sabia mais de Guerra e de Guiné a dormir,do que todos os outros acordados.

Um abraço do tamanho do Cumbijã,

Mário Fitas

Luís Graça disse...

Mário:

Obrigado pela pista... O teu antigo capitão, o "Leão de Cufar, comandante da CCAÇ 763 (Cufar, 1965/67), tinha nome de gente: Costa Campos... Em 1973, à frente do COP 3 (com sede em Bigene, região do Cacheu), deveria já ser major ou tenente coronel... Mas tu esclareces que passou a estar à frente do COP 3 depois de Maio de 1973...

Se assim é, pergunto, a quem souber, a que título é que ele, Costa Campos, aparece no séquito do "Caco" (ou "Caco Baldé", era assim que a gente o chamava, ao nosso Com-Chefe, entre as quatro paredes da caserna, não vale a pena sermos hipócritas ou politicamente correctos, pretensiosamente polidos e bem educados...) nesta foto, com o Costa Gomes e o Spínola ?

Antonio Graça de Abreu disse...

Não sei se repararam nestas palavras agora do Embaixador Nunes Barata:

"Carlos Fabião disse a Leopold Senghor no decurso de um encontro que ambos tivemos em Paris no dia 1 de Maio de 1974 que, se fosse feita naquela altura uma consulta aos guinéus, estes votariam por esmagadora maioria a favor da continuação de Spínola como governador da Guiné."

Então como é? O PAIGC ocupou o poder e, segundo Martins Barata a "esmagadora maioria da população" queria era ser governada pelo Spínola e pelos portugueses?

De que lado estava a maioria da população da Guiné? Do lado português. É uma questão fundamental numa guerra de guerrilha?

E perdemos militarmente a guerra?

Eu anda nesta cruzada há já uns bons tempos. Não sou spinolista, nem coisa nenhuma,nem de direita, nem nostálgico do passado. Mas é necessário respeitar a verdade, compreender a nossa história, não termos vergonha de ter sido soldados na Guiné.
Um abraço,
António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Também eu falei do Caco,à minha maneira claro,num tempo em que,com
prazer,colaborava no Blogue.Foi a
13 de Março de 2006,"SEXA O CACO EM
MISSIRÁ"
Só há meses é que descobri,não ter
sido uma visita de Natal,mas sim
uma Inspecção.Forneci o Relatório
da mesma ao Luís.
Assinado pelo próprio Spínola,
constitui um documento interessante
no qual se critica quase tudo,tendo
valido a substituição do Comandante
de Bambadinca.
Quanto ao meu Quartel,diz que a impressão foi má...Os abrigos estão
mal contruídos,o heliporto muito
atrasado..Confesso que na altura não me apercebi estar a ser inspe-
ccionado.Os abrigos eram do tempo
do Beja Santos...e quanto ao heliporto creio ter justificado
o atraso..

Jorge Cabral

Anónimo disse...

Caro Luís,

O que escrevi é a verdade!
Se fui chamado à atenção por utilizar o termo "Caco", é verdade.
Se digo que o Costa Campos me contou muita coisa. Dizem que é "conversa de caserna".
Como eu já referi em vários comentários no Blog e não só, muita coisa sobre o Costa Campos.
Fico admirado da ignorância que existe sobre este militar!
E já agora refiro que escritores e comentadores da Guerra da Guiné, tinham problemas militares com o Costa Campos, precisamente por ele ser da estirpe do Spínola.
Entre as quatro paredes não posso ou não devo escrever ou dizer o que um homem que tenho a certeza o diria ele próprio se estivesse vivo.
Portanto não são questões de pretenciosismos nem assuntos politicamente corretos. São verdades as quais eu não posso dizer, embora eu seja da tua opinião que aqui não valeria a pena etc. e tal...
Vou repetir: Não sei as datas (dias e horas)correctas. O major Carlos da Costa Campos estava na REPAK julgo ser assim o nome, e percorria toda a Guiné. Quando o major Mariz faleceu ele foi nomeado pelo Spínola para o COP3, mas já andava envolvido em tudo, até na "Ametista Real".Os galões de Ten. Coronel, foram levados por seu filho com 19 anos voluntário nos "fusos" do DEF1 em Ganturé.
Luís não leves a mal a minha forma de escrever, sou assim! Mas sou sincero.
O "Leão" de Cufar" é uma personagem de um livro meu. A última fotografia do Coronel Costa Campos antes de falecer fui eu que lha tirei.
Sinto muito orgulho em ter servido com ele como militar.
Só eu vi! O marejar ds olhos do Homem, quando me narrou os problemas das nossas tropas na Guiné nas duas semanas que levaram à solução dos Strella.
Não vale a pena toda esta conversa. Pois os problemas maiores foram vividos lá nas matas e bolanhas.
Estou a tentar digitar "Guiné" o livro do Costa Campos a uma terra que também ele amou.
Aproveito para expressar aqui o meu agradecimento ao Miguel Pessoa pelo trabalho que teve com o livro, e que tanto me ajudou.
Como sempre na Tabanca Grande, para todos aquele abraço do tamanho do Cumbijã.