segunda-feira, 19 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6188: José Corceiro na CCAÇ 5 (9): Resposta a comentário ou eu e os meus registos

1. Mensagem de José Corceiro* (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos -, Canjadude, 1969/71), com data de 10 de Abril de 2010:

Caros amigos Luís Graça, Carlos Vinhal, J. Magalhães
Por lapso da minha parte, quando devia, não respondi ao comentário deixado pelo Jorge Picado no Poste P-6117.
Deixo ao vosso critério a publicação deste artigo, caso tenha interesse, para dar resposta ao acima referido, com inclusão das fotos.

Um grande abraço
José Corceiro


José Corceiro na CCAÇ 5 (9)

Resposta ao comentário ao Poste P6117


Respondendo ao comentário que o Jorge Picado fez ao Poste P6117.
Venho pedir desculpa, mas na altura, devido a ocupações imponderáveis, não respondi, porque honestamente nem me apercebi.
Agradeço as palavras de estímulo e apreço do Jorge Picado.

O Jorge Picado apreciando a minha descrição no Poste em questão, disse: - É impressionante como conseguiste escrever um diário tão completo e descritivo no meio daquela guerra!

Eu não comecei a escrever quando fui para a Guiné. Já antes de entrar no serviço militar tinha o vício de fazer registos de determinados acontecimentos do quotidiano da minha vida e, não só. Não fui instigado por ninguém para escrever, mas comecei a criar o hábito de registar acontecimentos quando começaram os meus primeiros namoricos dos tempos de Liceu, 14, 15 anos de idade. Embora o meu forte não fosse a área de Letras (ainda que tenha dispensado das orais no 2.º e 5.º anos, antigos, em que com a média acima de 13,5 de nota na escrita, se dispensava da oral) o meu forte foi sempre nas áreas de Ciências e Matemática.

Com a entrada na tropa, o engenho afiou a arte e até tive necessidade de introduzir nos apontamentos que fazia algumas nuances, tipo códigos simples complementares para agilizar a escrita e me salvaguardar de algum curioso, uma espécie de escrita cuneiforme, em que um símbolo definido e memorizado por mim representava por exemplo um acto que eu pratiquei.

Paralelamente a estas virtudes, ou defeitos, associavam-se outras que me são peculiares na área do coleccionismo indeterminado; sem ser a mais importante, para o exemplo, cito a fotografia. Ainda antes de ir para a Guiné já tinha máquina fotográfica que me acompanhava com alguma assiduidade.
Com a ida para a Guiné, no meu caso numa conjuntura muito complicada, ainda que eu só possa aferir e valorizar o meu desconforto e a minha situação ao ver-me envolvido num teatro de guerra, que eu tinha muita dificuldade em compreender, mas que era meu dever cumprir e acatar, perante esta ambivalência de conflito psicológico e para colmatar as lacunas do ambiente, acentuou-se a necessidade de compensação e eu entre as poucas opções que tinha, refugiava-me a ler e a escrever sempre que podia. Tinha sempre duas agendas para fazer os registos, uma maior que a outra, uma das quais me acompanhava sempre para escrever na data certa e sequencialmente.

Foto 6 > Cadernos e folhas dos escritos do Corceiro, do Ano 1970, onde estão duas agendas do mesmo ano, uma cor azul (pequena) e outra cor laranja (maior).

Foto 7 > Ano visível 1970 na agenda n.º 1 do mesmo ano. As agendas para as referenciar, eram numeradas, 1 e 2.

Nas operações no mato eu ia sem saber previamente itinerários, objectivos, grau de perigosidade, pouco sabia, pois não assistia ao explanar da operação, mas a minha Especialidade, Transmissões, sempre deixava que transpirasse qualquer coisa pró meu conhecimento. Quando ia em operações, logo que nos instalávamos para descansar e comer a ração, eu fazia logo apontamentos na agenda, de memória rápida, dos casos verídicos vistos pela minha óptica, ainda que registados com a imparcialidade possível. Casos que eu considerasse importantes, tinham que ter mais conteúdo e mais pormenor, assim como outros escritos que eu intitulo de “divagações fantasiosas” que são textos com algum desenvolvimento, registava-os logo que podia, em cadernos do tipo escolar.

Há porém, uma particularidade relevante, muito importante, que não pode ser esquecida, é o fosso que havia e nos distinguia, entre o Jorge Picado que era Capitão e eu 1.º Cabo (que só me lembro de ter usado os distintivos pouco mais de meia dúzia de vezes). No meio militar tínhamos tratamentos muitíssimo distintos, um do outro, eu no meu Aquartelamento, Canjadude, praticamente nem bar tinha para meros convívios de lazer, encontro para conversação, troca de ideias e beber um copo. O bar que havia era só de sargentos e oficiais e, quer queiramos quer não, a separação era muito acentuada, dificultando a miscigenação na vertente sociocultural que é lógico se reflectia em muitas áreas, privando-nos de muita coisa. A escrita no meu caso servia de trampolim para naquele teatro me auto-valorizar e, de alguma maneira me purificar. (eu na época escrevi: -… escrevo para me enaltecer e não me sentir aqui ovelha ou carneiro…)

Foto 1 > Corceiro, com autorização do 1.º Sarg Paulino, a escrever à máquina na Secretaria de Canjadude.

Foto 2 > Corceiro, com as suas escritas no abrigo onde dormia.

Foto 3 > Corceiro, a escrever por trás da secretaria, ao lado do abrigo de Transmissões.

Escrever era pois uma actividade que me dava gozo, ajudando-me a fugir ao tédio, suprir muitas necessidades, sublimar a solidão, de alguma maneira confortar o meu ego, compensava a minha auto-estima, a escrita era como que o elixir e refúgio dum combatente desiludido.

Estávamos confinados num meio muito restrito e carenciado, estávamos carentes, o convívio entre as praças, onde eu estava integrado, pode dizer-se que era o normal, o possível, mas faltava a componente cultural, por isso era recorrente jogar à sueca todos os dias e pouco mais.

Eu por mais duma vez, tentei diversificar os serões no abrigo, introduzindo componentes de lazer e competição, tais como: damas, xadrez, king, canasta, crapô (crapot), ler Os Lusíadas, que eu particularmente muito gostava e sabia navegar bem neles e interpreta-los, (pois tinha lá na altura e tenho, uma Edição muito boa - Porto Editora Lda. 3.ª Edição - com muitas anotações e notas que eu tomei, quando era obrigatório na disciplina de Português) fruto dum bom Professor de Português que tive no 5.º ano. Mas logo me convenci que só a minha boa vontade não era suficiente e, por isso, mais me apeguei a escrever e fiz os registos descritivos, à minha maneira, segundo o meu pulsar, transcrevendo para papel os acontecimentos da guerra que eu ia vivendo no dia-a-dia.

Foto 4 > Prateleira improvisada, junto da cama do Corceiro, onde há papelada de escrita.

Foto 5 > Corceiro, vestido à civil, em cima do abrigo de transmissões, à volta de Os Lusíadas.

Para todos muita saúde e um abraço.
José Corceiro
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 6 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6117: José Corceiro na CCAÇ 5 (8): Primeiro rebentamento de mina entre Canjadude e Nova Lamego

2 comentários:

António Tavares disse...

Caro José Corceiro,
Gostei dos teus textos.São parte da História, que nos ensinaram em "Os Lusíadas".Tenho essa edição mas por cá ficou.Levá-los para a Guiné foi o máximo!Eu fiquei pelo Eça de Queirós.Fui a Nova Lamego e ainda hoje recordo o armamento do IN que por lá vi nas casernas das N/T.O militar que apreendesse material IN podia utilizá-lo.Em 1970/72 o IN à saída de Bafatá fez uma emboscada a uma coluna que ía para Nova Lamego... ao meio da dita coluna,fraccionando-a.Era a guerra.
Um abraço do
António Tavares

Hélder Valério disse...

Caro José Corceiro

Ainda bem que tinhas esse bom hábito de tomar notas, fazer diário, desenvolver apontamentos.
Ficámos todos mais ricos.
Um abraço
Hélder S.