sexta-feira, 2 de abril de 2010

Guiné 63/74 - P6092: Notas de leitura (87): Antologia O Corpo da Pátria, de Pinharanda Gomes (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 24 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Não conheço mais obras sobre literatura de nacionalistas que combateram na Guiné ou à Guiné aludam.
Peço a amabilidade a quem possua livros de exaltação nacionalista, proveniente de antigos combatentes na Guiné, que me facultem para se proceder a inventário.
Recordo que já aqui se fez referência a uma Antologia do Conto Ultramarino organizada por Amândio César.

Um abraço do
Mário


O corpo da Pátria:
Dar voz aos nacionalistas que combateram na Guiné


Beja Santos

Alguns dos poemas publicados por Rodrigo Emílio em “Vestiram-se os Poetas de Soldados” tinham aparecido na antologia “O Corpo da Pátria” (Editora Pax, Braga, 1971) organizada por Pinharanda Gomes, um intelectual e filósofo que nunca escondeu o seu ideal nacionalista. Aos poetas nacionalistas que não combateram ou combatiam em África chamou-lhes poetas da retaguarda (caso de Fernanda de Castro, Natércia Freire, Fernando Guedes e Pedro Homem de Mello); aos poetas combatentes chamou-lhes poetas da frente, incluindo, entre outros, Rodrigo Emílio, José Valle de Figueiredo, Jorge Silveira Machado, Almeida Matos, Armor Pires Mota e João de Mattos e Silva. Como se compreenderá, iremos referenciar os poetas que combateram na Guiné e que pelo seu canto se assumiam pela integridade territorial, usando as expressões possíveis que a lírica, o epigrama, a épica e a apologética consentem, revelando sentimentos exaltados, de apelo ao heroísmo, por vezes de consciência abismada e patética. Diz Pinharanda no prefácio: “O leitor encontrará um mundo vário de motivações: o amor, a morte, a saudade, a promessa, o ódio, o medo (o medo!), a indecisão, o regresso, a viagem sem retorno – o testemunho vivo, directo, de quem reagiu ao empurrão. Ainda que a validade intrínseca de alguns poemas possa ser posta em causa, todos os poemas antologiados são vivo testemunho de um lance histórico da vida portuguesa”.

Como se passa a exemplificar. De Jorge Silveira Machado, natural de São Jorge, Açores, oficial condecorado, o poema “Quem é o inimigo”:

Só conhecemos o inimigo
quando começa o tiroteio
a força a violência o ódio os berros
e a morte pelo meio

quem é o inimigo
quando há silêncio na floresta
no rio no tarrafo no capim
esperar é o que nos resta

só conhecemos o inimigo
quando o fogo cresce à nossa volta
e tudo acaba como principia
quando se volta
..............................................

só conhecemos o inimigo
quando começa o tiroteio
a dúvida o perigo
e a morte pelo meio



De Almeida Mattos o poema “Guiné/67”

Solenes, voltaremos.
E sobre o mar as cicatrizes ficam
livres da dor, do ódio desta guerra

Inútil e eterna essa lembrança
breve e inútil como nossas vidas.

Amanhecerá no teu corpo um pleno verão,
feito de frutos desta longa ausência
dos corpos que ficaram nas bolanhas
que em nossos próprios corpos viverão.



De Armor Pires Mota e do seu poema “Cântico”

Vou partir para a metralha, Senhor!
Carrego de morte os bolsos e os olhos
doidos de manhãs de claras, rasgadas no infinito.
Afivelo a alma bem dentro da alma
e, de medo, trauteio a marcha do rio Kwai.
Não sujo as mãos de qualquer remorso,
não seja cobarde: tenho o meu povo, a minha bandeira! –
e, se tombar no sangue, na lama,
seja para Ti, Senhor,
a força do meu cântico.



A minha maior surpresa foi encontrar nesta colectânea “Poema de uma Guerra Longe”, de Ruy Cinatti, datado de 1970. Conhecia-o, recebi-o na Guiné, era a resposta a uma descrição que eu fizera de um encontro com guerrilheiros. Carta e poema foram oferecidos à Sociedade de Geografia de Lisboa:

Sete horas húmidas, algures.
Progressão, fardas ensopadas.
Silêncio na terra de combate.
Silêncio nos corpos.
Estacas calcinadas.

O piar da aves, o olhar súplice.
Dois tiros quase num só eco.
O desabar das folhas, ramos rápidos.
Um grito que se apaga.

Missão cumprida, a meta adivinhada.
Febre sem alma ou acordo.
O peso súbito de um morto

Caindo nos ombros estreitos,
Doloridos,
da minha miséria.

__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 1 de Abril de 2010 > Guiné 63/74 - P6087: Notas de leitura (86): A Lebre, de Álvaro Guerra - a intervenção da tolerâcia numa escrita que escapou à censura (Beja Santos)

1 comentário:

Anónimo disse...

Estimados tertulianos

JOSUÉ Pinharanda Gomes, referido nesta recensão ao livro por Beja Santos – O Corpo da Pátria - é natural de Quadrazais, terra (nos anos…e 40, 50, 60) de contrabandistas e boa gente, que dista da aldeia onde eu nasci cerca de 5km.
Pinharanda Gomes, ilustre pensador e investigador da Cultura Portuguesa Contemporânea, como homem e pensador foi muito influenciado, já eu lho ouvi numa palestra, por Nuno de Montemor, também este natural de Quadrazais.
O primeiro livro que eu tenho consciência de ter lido foi – O Maria Mim de Nuno Montemor - é um romance que relata a vida difícil do contrabandista no seu dia-a-dia, a ganhar o pão que o diabo amassou, e, descreve com pormenor a revolta do contrabandista, devido à perseguição da Guarda-Fiscal que os apelidava de malandros e ladrões. Relata muito pitorescamente os amores da Maria Mim. Que saudades eu tenho dessa meninice!

Um abraço para todos e boa Páscoa

José Corceiro