quarta-feira, 17 de março de 2010

Guiné 63/74 - P6009: Notas de leitura (79): sairòmeM Guerra Colonial, de Gustavo Pimenta (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Março de 2010:

Queridos amigos,
Este “sairòmeM” é surpreendente, conclui-se a leitura com a sensação de que autor e leitor mereciam mais confissão, mais intimidade, mais memória.
Seria muito bom que pudéssemos contar com o Gustavo Pimenta (ou quem se esconde sob este nome) para saber mais sobre Béli e Madina de Boé, por exemplo.

Um abraço do
Mário


Um beijo, minha mãe, eu prometo voltar

Beja Santos

“sairòmeM Guerra Colonial”, de Gustavo Pimenta (Palimage Editores, 1999), é, a diferentes títulos, uma obra singular no panorama da literatura da guerra colonial. Logo o título, memórias em anagrama, o que nos remete para uma charada a decifrar. Depois a estrutura em flashback, o filme dos acontecimentos que vai sendo rebobinado e como a prosa é boa, convincente e afectuosa, precisamos de três leituras, pelo menos: a primeira, para nos aproximarmos dos factos; a segunda, para nos fixarmos na cronologia de uma comissão que terá ocorrido entre 1967 e 1969; a terceira, para sorver em ecrã e nos cinco sentidos um depoimento tão sensível sobre quem viveu quase um ano em Madina do Boé e perdeu soldados naquela trágica travessia da jangada, em Fevereiro de 1969.

Este autor, que se apresenta como limiano pelo berço, vianês por amor, do Porto por circunstância e do mundo por opção, começa por nos dizer no fim das suas recordações que à despedida “O beijo da minha mãe demorava uma eternidade”. Fechou os olhos para que todas as impressões daquele momento guardassem o tempo, ele estava a despedir-se de si próprio, pressentia as mudanças que se iriam operar.

Em Setembro de 1967 chegou à Guiné, a bordo do paquete Timor, com armas e bagagens foi a unidade despejada em Fá Mandinga. Aqui foram praxados, aprendeu que a maneira mais eficaz de pescar era lançar uma granada na bolonha, os serões eram passados a jogar o póquer de dados. Surge um registo de espanto e admiração: “Não teria mais do que doze ou treze anos. Seria mandinga, mas falava uma data de línguas nativas, era o nosso guia, participava nas acções mais arriscadas. Exibia uma postura colaborante, às vezes irónica face à nossa ignorância. Nunca subserviente. Devia viver a um ritmo incrível para saber tanto com tão poucos anos. Adoptámo-lo, passou a viver connosco”. A sede do seu batalhão estava em Bambadinca, era dali que se telefonava para Portugal.

A primeira operação foi no Poidom. Em Bambadinca tinham-lhes dito que ia ser um ronco, tratava-se de revistar o local onde os guerrilheiros se acoitavam, isto depois do fogo de artilharia e aviação. Na capela de Bambadinca foi depositado um dos camaradas, morto com um tiro furtivo: “O fogo, intenso, do inimigo surpreendeu-nos. Havia pouco que os T6, connosco a poucas centenas de metros, tinham terminado o arrepiante – e belo, no seu descer a pique, largar a bomba, subir em manifesto sobreesforço do motor – exercício de bombardear o refúgio do PAIGC”.

Seguiram depois para Porto Gole, aqui se passou o primeiro Natal. Mais tarde em Nova Lamego, aquela tropa é confrontada com o pesadelo das minas, viaja-se para Madina do Boé, nova morada. O registo das impressões faz vibrar qualquer combatente, o que ele diz das abelhas, dos jogos da malha, o interior daquela fortaleza praticamente inexpugnável, as extravagantes regras do jogo da sobrevivência, o delírio da guerra: “Deslocarmo-nos para as tarefas mais comezinhas, para uma simples mijada fora do abrigo, tornara-se numa espécie de jogo do gato e do rato. Nunca sabíamos se eles estavam à coca e nos sairia na rifa o tiro isolado do dia. Aos mais afoitos, ou mais loucos, já lhes dava, às vezes, para subirem ao alto de um abrigo e despejarem insultos a tudo quanto fosse guerrilheiro e respectiva família, enquanto evidenciavam convenientes manguitos”. É um registo antológico, o de Madina do Boé: os jogos de carta dentro dos abrigos, a criação de animais nas tabancas, a solidariedade dos amigos, longe ou perto, sempre prontos a mandar vitualhas. É no meio deste inferno que o autor se confessa sobre as razões que o levaram a ir para a guerra: “De apego à minha tribo, de não sustentar que me pudessem apodar de cobarde e, também, porque sentia uma grande necessidade de ver no locar se as coisas eram como dizia a propaganda do regime. Provavelmente, o que me faltou foi coragem de atrever sozinho o desconhecido”.

A chegada do correio, descobre ele, é um evento crucial, receber correio era mais importante que o seu conteúdo, era a imperiosa necessidade de nos sabermos lembrados (“Quem passa mal, gosta de perceber que o mundo se incomoda com o mal que passa”). Cartas ou aerogramas lidos e relidos, fica a memória indelével da algazarra que rodeava a distribuição do correio, cada piloto que os visitava em Madina de Boé era recebido na pista com balde de gelo, água perrier e garrafa de uísque na mão. Conta-nos a evacuação de Béli: “Chegámos a Béli noite avançada. Tantas viaturas e tanta gente naquele espaço habitualmente ocupado somente por um grupo de combate, tinham feito temer uma flagelação com armas pesadas de consequências imprevisíveis... um grupo de picadores à frente da coluna, a tropa em protecção lateral e os T6 a despejarem bombas sempre que a picada era rodeada de acidentes geográficos que nos parecessem suspeitos, propícios à emboscada”.

Depois é a retirada de Madina de Boé até Nova Lamego. Parecia um cortejo fúnebre, mais de 40 homens tinham sido levados pela correnteza do Corubal. O autor está de férias, encurta-as em função dos acontecimentos. Seguem para Cabuca, mais tarde são colocados em S. Domingos. A curiosidade é forte, interessasse pelo povo Felupe: “Era o povo mais primitivo que já conhecêramos. Pescavam deixando deslizar as suas canoas ao sabor da corrente, sobre as quais se posicionavam em pé, parecendo estátuas, arco tenso e flecha apontada. O mergulho nas águas para recolher o peixe, sucedia-se ao disparo, que nunca vi falhar, nas cenas da nossa fascinação olhadas da margem do rio e do centro do nosso espanto”. Comprova que os imprevistos brutais não eram só os de Madina, em S. Domingos a morte também ronda: “Do lado por onde saíra a bala, o buraco. Enorme. Do outro, num ouvido, tudo chamuscado à volta e um orificiozinho. Fragmentos de couro cabeludo, miolos e sangue a manchar os beliches ao lado. A G3 caída. A mala aberta. Sobre o desalinho do seu conteúdo, um aerograma escrito para a mulher. Fechado. Outro, para o amigo lá da terra, ostensivamente aberto, exposto na indecência de explicar o inexplicável: não suportava regressar a Portugal, para a mulher, com a pichota toda estragada. O estrondo do tiro na caserna, pela tórrida calmaria da hora do almoço”.

A comissão está a findar, agora já não se teme propriamente andar na mata, o que custa é pensar no que fazem as minas anti-pessoais. Com alvoroço, partem para Bissau, entregam-lhe um cão à sua guarda. O relato termina tal como começou (isto é, começa onde tudo cronologicamente se finda): “A casa antiga – para não dizer velha – acolheu-me com o cheiro e o conforto que a memória reconheceu. Quanto tempo passado e como tudo me pareceu, de súbito, regressar ao princípio”. O pai e filho estreitam-se num abraço longo. O cão espreguiça-se, a viagem a partir de Lisboa foi de táxi, deixando três soldados em vários destinos. Com o beijo de sua mãe, ele despedira-se de si próprio, nesta chegada todos os recantos se identificam, a guerra, finalmente, ficou para trás. Décadas depois, deu público testemunho de si.

O contacto telefónico da Palimage Editores é 232 432 244 (palimage@mail.telepac.pt).
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 16 de Março de 2010 > Guiné 63/74 - P6001: Notas de leitura (78): Morrer Devagar, de José Martins Garcia, De Catió para Farim (Beja Santos)

3 comentários:

Carlos Pinheiro disse...

De facto, como dá a entender Beja Santos, há muita coisa ainda para contar. E no que respeita à eveaucação da 1790 de Madina do Boé o que está contado parece-me que não esteja bem. Convivi com alguns sobreviventes daquela última viagem da jangada que se virou e a verdade era outra.
Nestas andanças pelo blog também não me lembro que tenha aqui sido referida outra figura mitica do abastecimento de frescos e da entrega do correio em Madina do Boé. Era o Furriel Honório que pilotava uma DO27 e parece que era dos poucos que ia mais ou menos à vontade a Madina. Quem é que sabe dizer maisl aguma coisa sobre o Honório?

Unknown disse...

Ora bem
Como diz o amigo Beja Santos parece-nos que o autor fez parte da 1790. E diz no seu livro uma coisa importante. Madina do Boé era inexpugnável. Isso já eu sabia e por isso é que o cerco a Madina não fazia sentido. A única maneira de nos atingirem era com atiradores solitários postados no cimo das árvores. Foi assim que sofremos um morto no regresso de uma patrulha e já com parte do pessoal dentro do aquartelamento.E veja-se a 1790 os mortos que sofreu. 3 e todos nativos. E onde estavam nessa altura ? Se calhar na tabanca. Reparem que o nosso camarada José Martins na sua Hitória sobre Madina do Boé Parte II diz Morto em Madina do Boé em combate com o IN. Isso é o que está escrito, mas pode não ser verdade.Como exemplo temos o sodado Ilidio Bonito Claro que foi abatido por um atirador postado no cimo de uma árvore, não tendo a patrulha tido qualquer contacto com o IN. São azares da vida.

José Marcelino Martins disse...

Gustavo Pimenta foi Alferes da CCaç 1790 e é advogado.
Visitou Madina do Boe, juntamente com o Camandante, então Capitão Aparicio, que deu lugar ao vidio que foi difundido na SIC, há já algum tempo, e que foi objecto de largos comentários no blogue.
o livro sairómeM foi referido nessa altura.