segunda-feira, 8 de março de 2010

Guiné 63/74 - P5951: FAP (49): Apertar com os "piras" (Miguel Pessoa)


1. O nosso Camarada Miguel Pessoa, Cor Pilav Ref (ex-Ten Pilav na BA 12, Bissalanca, 1972/74), enviou-nos, com data de 6 de Março, a seguinte mensagem:


APERTAR COM OS "PIRAS"

À chegada à Guiné do pessoal novato prestava-se, na maioria dos casos, a que o recém-chegado fosse objecto de uma recepção personalizada por parte do pessoal "veterano" há longo tempo (meses...) estabelecido no burgo.



Não sei como se processava esta recepção nas unidades do Exército mas penso que, tratando-se de rendições colectivas em que uma Companhia era substituída por outra, as cenas de recepção aos caloiros ("piras") deviam ser um acto mais colectivo do que sucedia na Força Aérea.


De facto, a maioria das nossas rendições era feita a título individual ("O Ten. X é nomeado para a BA12/Esq. 121 em substituição do Cap. Y", etc.). Portanto, o que sucedia era que permanentemente na BA12 se assistia à chegada sucessiva de novas caras, para substituir camaradas que entretanto acabavam a sua comissão.


Este facto proporcionava aos recém-chegados uma recepção personalizada, situação que testemunhámos frequentemente ao longo da nossa comissão, ou que sofremos nós próprios à nossa chegada ao TO da Guiné.


Um pouco de acordo com as características do novato, assim era preparada a recepção. Muitas vezes era engendrado um cenário em que os actores trocavam os seus papéis; quase sempre duas figuras importantes nesta recepção eram o "comandante" e o "capelão", motivo pelo qual era dado um certo ênfase às suas actuações, pelo papel importante que tinham na doutrinação do "pira" e que exigia desses actores um ar sério e ponderado.


Estou a falar do "pira" mas o primeiro caso que refiro é o de uma "pira", a enfermeira pára-quedista N... (a quem tínhamos a mania de chamar Amélia, vá-se lá saber porquê...) recém-chegada à Base, que logo no dia da sua apresentação teve direito à devida recepção, com a necessária conivência das suas camaradas enfermeiras lá colocadas.


Para além de um cenário maquiavélico que era engendrado (afinal até já estávamos no tempo em que isso se aproximava da realidade...), que passou pela ementa do jantar - uma "carne de macaco" que afinal era gazela - sucedeu que nesse fim da tarde se processava o treino da artilharia anti-aérea da BA12, com a largada de "flares" que eram massacrados pelos artilheiros no seu treino.
Naturalmente, aproveitou-se a coincidência para convencer a "pira" que a Base estava a ser abonada pelo IN* e, para agravar mais a situação, inventou-se uma série de evacuações a serem feitas de imediato, para pistas no mato e já noite cerrada, sendo que foi solicitada a sua colaboração para avançar, dada a necessidade de enfermeiras para o efeito. Bem argumentou a pobre que nem farda ou equipamento tinha, ao que lhe foi dito que ia mesmo assim, à “paisa”... É claro que a coisa foi abortada antes que a "pira" se apagasse ali mesmo.


No meu caso pessoal a coisa também não foi boa pois, sendo um oficial do quadro habituado ao cumprimento rigoroso do respeito hierárquico, não me agradavam muito os avanços dos alferes e furriéis "veteranos" que se valiam da sua "antiguidade na Guiné" para apertarem comigo. Considerava eu que, lá por ser "pira", não era razão para me pisarem os galões, só para me mostrarem o seu "estatuto" superior de "velhinhos".


Isso levou a que, num certo serão, uns tantos malandros resolvessem atacar o meu quarto disparando uns very-lights pela janela. E que a coisa não foi fácil é que até um bocado do fósforo de um deles veio atingir a minha mão, que ainda hoje tenho uma marca num dedo para o comprovar. O facto é que isso provocou da minha parte uma forte reacção, pois só me lembro de sair porta fora a disparar very-lights com a minha caneta, e não eram para o ar...
Felizmente conseguiu-se acabar esse serão sem baixas a lamentar. Da minha parte, no dia seguinte tive que tomar três acções imediatas: repor o stock dos very-lights indevidamente gastos, que podiam ser essenciais para a minha sobrevivência (e foram...); mandar pôr uma nova rede mosquiteiro na janela, que a outra tinha ficado toda furada; finalmente, ligar menos às tentativas de "praxe" dos tais "veteranos" e ganhar experiência rapidamente, para os calar(**).


Finalmente, um último exemplo, que não presenciei, pois se trata precisamente do piloto que foi substituir-me enquanto estive incapacitado. O Capitão B... nem era sequer um novato (já tinha feito uma comissão em Fiat G-91, em Moçambique). Mas, sendo "pira" na Guiné, teve direito à sua recepção, que mais tarde me descreveram.


Imagine-se o que é, à chegada do Capitão B..., aparecerem no terminal das chegadas da BA12 dois pilotos entrapados - O Comandante da Esquadra com a cabeça enfaixada e o outro piloto com um braço ao peito, a convencerem o recém-chegado que, dada a incapacidade dos dois e havendo pouco pessoal disponível, era necessário que o outro avançasse para um apoio de fogo imediato (ele que nem conhecia o território...). Eh! Eh! Tenho pena de não ter podido assistir a esta cena...


Enfim, estas acções, mais do que pretenderem achincalhar alguém, tinham como objectivo "desmamar" os novatos e apressar a sua integração no cenário de guerra existente. E nenhum mal daí veio para os "piras" que, à sua chegada, levavam um tratamento de choque para se aperceberem mais depressa do sítio em que tinham caído.


(*) Ocorrência que infelizmente não era preciso encenar em muitos dos nossos aquartelamentos.


(**) O que consegui rapidamente. Pois se até era eu quem atribuía as missões diárias aos pilotos...


Um abraço,
Miguel Pessoa
Cor Pilav Ref


Emblema da BA12: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.
___________
Nota de M.R.:


Vd. último poste desta série em:


27 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5902: FAP (48): A guerra Páras-Fuzos, vista por um fuzileiro (Rui Ferrão)

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

É verdade que esses 'desmamanços' foram realmente muito úteis para a maioria dos contemplados e serviram certamente para a sua mais rápida integração.

Mas, é claro, essas praxes assumiram aspectos diversos conforme onde eram aplicados.

Eu também tive a oportunidade de 'integrar' o meu substituto no Centro de Escuta mas deu-me trabalho.
A idéia foi simples e devia ter dado resultados mas a 'encomenda' superou todas as minhas expectativas.
Foi o caso de que estando para deixar-lhe o turno nocturno, depois de tudo muito bem explicado, preparei a 'coisa' de modo a que nos gravadores que estavam a fazer a gravação permanente às Rádios do Senegal e Conakry iriam ser necessárias durante esse turno novas fitas de gravação por as que estavam em serviço terminaram a sua capacidade.
As fitas que estavam 'disponíveis para gravar' eram das maiores, não me lembro as medidas mas para aí qualquer coisa dos 15 ou 17 cm de diâmetro e as que estariam vazias para receber eram das pequenas, aí duns 8 ou 9 cm de diâmetro.
Cerca das 4 da manhã o 'pira' foi acordar-me todo aflito, porque já 'não conseguia aguentar mais' e quando cheguei ao local (o meu quarto era na moradia anexa) havia fita espalhada por todo o lado.
Perguntei-lhe o que tinha acontecido (como se eu não soubesse o porquê... o que não sabia era o como!) e ele 'explicou-me' que quando a fita anterior acabou colocou uma nova mas para a receber só tinha vazias aquelas pequenas de modo que enquanto esta teve capacidade para receber, tudo bem, mas depois a coisa começou a complicar-se e ele teve que andar com o dedo a acompanhar a rotação da bobina até que já não conseguiu aguentar e aquela porcaria saltou e emaranhou-se toda! E agora, o que é que se fazia?
Ensinei-lhe: "cortas a fita no limite do que estiver cheio, se conseguires bobinar, colocas a parte restante noutra bobina vazia com a continuação, ou então escreves no relatório do turno, 'falha de gravação por interferências atmosféricas'".

Um abraço
Hélder S.