segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5820: Notas de leitura (67): O Disfarce, de Álvaro Guerra - Mais ou menos tão divertido como o teu exílio (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos* (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 10 de Fevereiro de 2010:

Queridos amigos,
Confesso que “O Disfarce” me impressionou pela sinceridade deste combatente que nos legou imagens tão impressivas, de grande recorte literário.

Um abraço do
Mário





Mais ou menos tão divertido como o teu exílio

Beja Santos

Álvaro Guerra (1936 – 2002) combateu na Guiné entre 1961 e 1963, regressa com um ferimento e em 1964 vai estudar na École des Hautes Études da Sorbonne. Volta a Portugal em 1969, ano em que edita O Disfarce, o seu segundo livro. Os Mastins (1967), O Disfarce, A Lebre (1970) e Memória (1971) são obras povoadas de recordações de um combatente que procura ajustar-se, por vezes com imensa dificuldade, a uma sociedade que se revela indiferente à guerra de África. Estes livros trazem já a marca de água de um talentoso escritor, Álvaro Guerra, a par de Armor Pires Mota, é nome cimeiro da literatura da guerra, sobretudo nos anos 60.

O Disfarce” corresponde a um tempo de desencanto, regista uma incapacidade de apaziguar a experiência da guerra junto de quem preferiu o exílio e vive na comodidade de Paris. Admito que no seu todo seja uma obra menor no conjunto da vasta biografia de Álvaro de Guerra, mas possui parágrafos belíssimos, irrecusáveis em qualquer antologia onde se pretendam registar os nomes perduráveis dos escritores combatentes. Logo o primeiro parágrafo de “O Disfarce”: “De narizes no ar, farejavam o céu, o motor do avião muito perto, muito perto, mesmo sobre as suas cabeças mas para além do nevoeiro cerrado, um grande insecto matreiro, invisível, irritantemente só nos ouvidos dos homens de narizes no ar, as armas na mão, empoleirados nos camiões estacionados no extremo da pista rodeada de pequenos grupos, para cada um sua metralhadora, as ligaduras brancas dos feridos quase brilhando entre os verdes e castanhos dos homens deitados nas macas, sentados nos jeeps, ou de pé, narizes no ar como os outros, ou ansiosos ou ciumentos, mas todos impacientes e, enfim, uma sombra aérea sobre a pista, por um momento, logo dissolvida naquele nevoeiro tão denso que molhava e, dentro dele, o bezoiro de prata que zumbia cada vez mais fraco, mais longe, até definitivamente se extinguir”.

São memórias sobrepostas, trata-se de alguém que vê e revê, que percorre Paris e outros locais europeus, que procura dar explicações sobre uma guerra onde esteve e que poucos querem ter notícia. O escritor transforma-se em agente figurante que em locais aprazíveis pode ouvir metralhadoras a crepitar, movimentos espasmódicos da culatra no seu vaivém. Por vezes alguém lhe pergunta se o braço lhe dói, o figurante responde que não e acrescenta “O que me está a doer é o sangue que lá perdi, a terra que ele não ensopou”. Toda esta narrativa é uma viagem, de amores precários, de tensões num mundo exilados, de recordações entre Bissau e Cacine, de uma mulher amada que se chama Maria e de que no final da obra nos apercebemos que é amor perdido. O figurante percorre as ruas de Paris e lembra-se de Safi, uma companheira acidental. Ele procura Jorge, o amigo que partiu para o exílio. Quando se reencontram, Jorge pergunta porque é que ele também não se exilou. E o figurante responde que não está arrependido: “Talvez eu não quisesse perder a oportunidade de ver e estar numa guerra ainda que sabendo estar nela no lado pior, longe de casa e a fazer horas para regressar”. Jorge responde-lhe que afinal fora divertido e o personagem desfecha-lhe sem uma hesitação: “Mais ou menos tão divertido como o teu exílio”.

Não nos interessa se esta Paris é autobiográfica, a cidade e o seu cosmopolitismo que não podem interpretar os barulhos do avião, o tumulto dos combates os gritos dos feridos. O figurante disfarça a vida que foi roubada ou postergada. Mas a memória está pujante de vida. A caminho da Holanda, ele recorda uma aldeia queimada, é um registo que não nos pode deixar indiferentes:

“Havia um cheiro adocicado, enjoativo, quando se aproximaram do que fora Lenguel, aldeia balanta, sinais de chamas recentes, devastação, e o povo escondido no mato. Tropeçou na carcaça calcinada de um boi cujos ossos amarelados se desconjuntaram, no meio de cinzas e destroços, pilões lambidos pelo fogo, cabaças enegrecidas, restos de primitivas enxadas de madeira, os gigantescos potes com as grandes bocas negras como os rombos enormes nos seus ventres vazios, e as paredes em ruína das cubatas sem tecto. Extensa, a bolanha estendia-se diante da aldeia queimada, a bolanha empapada, escaldante, febril, onde o arroz apodrecia na ponta dos calos amarelos a tombarem para a água”. O figurante pensa que a sua guerra é interminável, os seus pensamentos deslizam por uma corrediça tão extensa que chega à infância, à casa do tio João, mas cedo se embebe naquela floresta virgem, naquela terra de formigas pretas e de uma infinita saudade de gente que dá pelos nomes de Amadu, Gibril, Bubacar ou Malã.

O jovem escritor Álvaro Guerra revela-se pródigo em imagens que nos transferem sons, nos chegam aos sentidos, como se todo o corpo da guerra se tivesse colado à fisiologia. Por exemplo: “Com as pontas dos nervosos dedos, ele acariciou a granada suspensa de cobre da cavilha presa ao botão do casaco camuflado, sobre o peito, sobre o coração, a baloiçar a cada passo, de modo que ele podia permanentemente concentrar a atenção nesse levíssimo ruído das pancadas certas da granada contra o peito, ruído abafado, interior, só perceptível exteriormente pelo roçar do metal no botão da algibeira”. São imagens, convenhamos, de alguém na casa dos vinte anos que ainda não pôde filtrar tudo aquilo que é obra do tempo. Veja-se esta outra imagem de uma emboscada, vai ficar para todo o sempre: “Caiu em cima deles a surpresa, uma chuva de ferro, estampidos e silvos de ar vergastado quedas e ramos partidos e pragas e explosões e gargalhar fantasmagórico das rajadas matadoras e o homem ao lado dele com o sangue no ventre e nas mãos que disse “Ai, mãe!” e morreu”. Um sofrimento para toda a vida, porque são poucos os momentos desta tragédia, são instantes que vão ressoar no ser humano, por natureza mnésico, fraterno, comovido pela dor que pôde aliviar ou a morte que pôde obliterar. Esta a sinceridade de um tempo de disfarce, alguém que anda por Paris e veste uma mortalha, num mundo onde não se pedem explicações, parece que só os exilados é que têm direito à dor. Contido, o jovem escritor Álvaro Guerra deixou-nos esta memória discreta, efabulando uma mágoa tão poderosa que os seus amigos exilados até pensavam que era menor que a deles.

É pena falar-se tão pouco de Álvaro Guerra e do que ele escreveu sobre a Guiné onde se feriu, onde combateu, e cujo combate ele não escondeu.
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Nota de CV:

Vd. poste de 14 de Fevereiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5817: Notas de leitura (66): Armor Pires Mota (8): A Cubana Que Dançava Flamenco - O amor é mais forte do que a guerra (Beja Santos)

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