segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5784: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (25): O Puto não me largava

1. Mensagem de Luís Faria (ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72), com data de 3 de Fevereiro de 2010:

Amigo Vinhal
Para continuidade, segue outro capítulo de “Viagem…” que espero possa minimamente transmitir a quem o ler, um estado de espírito vivido, no mínimo confuso, criado por uma situação que não sei se teria sido muito comum aos Camaradas (gostaria de saber).

Um abraço para todos
Luís Faria


Viagem à volta das minhas memórias (25)

O “Puto“ não me largava

Ao amanhecer de 6 de Julho de 1971, apanhado pelo bafo quente e húmido que se me colou, desci a escada do Boeing que me trouxera das férias no Puto e dirigi-me, não recordo como, aos Adidos(?) para me apresentar e posteriormente dar umas voltas pela Bissau que até então só tinha pisado por breves momentos, aquando da chegada da Companhia à Guiné e por outros também escassos, quando apanhei o avião para ir de férias, um mês atrás.

A esperança tinha-me feito de certa forma interiorizar que iria passar uns diazitos no bem-bom de Bissau, à custa de um servicito ou outro e fico siderado quando me informam que tenho de me apresentar, nesse dia na 2791 FORÇA - Teixeira Pinto.

Não foram precisas estacas ou outros escolhos para, no meu cérebro e se calhar nos arredores também, se ouvirem os “uiuis” lancinantes provocados por “tamanha injustiça”! Então por que raio é que não tinha direito a uns tempitos no bem-bom, como todos os outros ou quase todos??!! Tinha acabado de chegar de férias. Que porra era aquela de me não darem sequer um tempito para me reambientar e recuperar do cansaço dispendido naqueles maravilhosos trinta e tal dias passados?! Puta de guerra que não tinha consideração por (quase) ninguém!

Aqui, a minha memória apaga-se não me deixando lembranças de qualquer espécie. Não recordo se cheguei a Teixeira Pinto de coluna motorizada, avioneta, barco... sendo que a pé seria difícil, convenhamos (!?). O facto é que lá cheguei.

A memória começa a reacender-se com algumas intermitências irritantes.

Madrugada de 7 de Julho de 71. O bi–grupo da FORÇA forma na Parada. Já acomodados, as viaturas arrancam. A ponte Alferes Nunes fica para trás e largam-nos algures na estrada para o Cacheu. É noite e os objectivos estão ainda distantes, assim como o amanhecer.

Segundo apontamentos, vamos em missão de intercepção e destruição a P.Teixeira, Balanguerez, Pijame (a que por inclusão, chamava Zona do Balanguerez), situadas a Oeste da estrada Teixeira Pinto – Cacheu.

Em progressão e na certa recorrendo como era norma aos azimutes, fomo-nos internando nas matas daquela zona belicosa, abrigados pelos “ponchos” de uma chuva que nos dificultava o andamento e ao mesmo tempo nos dava uma certa protecção. Entra a manhã e a penetração continua, ao que recordo sem problemas. Continuamos, com as cautelas devidas e com certeza a corta–mato, como nos era costumeiro proceder.

Era normal que, quando saiamos em bi–grupo (em Teixeira Pinto foi quase sempre, ainda que muitas vezes reduzido em elementos) ir só um Alferes e dois ou três Furriéis, alternando-se entre os graduados o comando na frente onde, - já tive ocasião de explicar em Poste passado - por pensarmos ser mais seguro, por norma um de nós ocupava o 1 ou 2 lugar durante as progressões. Era também usual que qualquer um de nós, em especial o Barros, Castro, Fontinha e eu próprio assumíssemos o comando e posicionamentos da rapaziada e nossos, independentemente das equipas (Secções), GCOMB ou até do Oficial a que se pertencesse. Estávamos “calhados” com o pessoal, em especial do 2.º e 4.º GCOMB. Estas trocas e baldrocas dependiam da avaliação que fazíamos das situação a cada momento.

Toda esta “orgânica”, talvez muito própria e suigéneris, descreverei em outra ocasião. O certo é que nos dávamos bem com este sistema e como resultava, não o abandonamos.

A caminhada continua, as horas avançam. Tiros… “nem vê-los”, nada!

A dada altura pela frente depara-se-nos um acampamento dissimulado no meio das árvores. O silêncio torna-se quase absoluto. Parece sem ninguém. Envolvemo-lo e... nada! Faz-se a inspecção, nada... abandonado mas varrido! Vamos “mamar” na certa!!! Queima-se e arrancamos. Nada e nenhum tiraço!? Admira-me! A tenção nervosa é grande.

Dou comigo de novo a divagar pelas férias acabadas há uma dúzia de horas e na merdice em que estou metido. As botas de couro, julgo que cubanas e apanhadas em P.Matar, vão-me levando na fila, acompanhando o pessoal como se fosse um autómato.

A tarde já vai alta e novo acampamento se nos depara pela frente. Tiros... nada! É vasculhado... apanham-se documentos e umas armas.

Preparamo-nos para queimar e reagrupar. Rebentam os tiros. Como um eco, ouço algo do género:

- Estão ali... os “cabrões” estão a uma dúzia de metros à nossa frente metidos naquelas árvores e vegetação. Não consigo descortinar nada, por muito que me esforce!

Ao som dos tiros e rebentamentos, pela minha cabeça recomeçam a desfilar com pouco controlo, imagens ganhas no “Puto” até umas horas antes. Lisboa perfila-se assim como o S. João no Porto e muitos daqueles bons momentos passados. O que se passa... o que é isto... onde estou... que porra de merda é esta... que faço aqui… ?

Reparo em alguma da rapaziada a ripostar, uns deitados ou aninhados, em pé outros. Vejo Castro a pegar na “bazooka” e o Cancelo de joelho no chão a enfiar a granada no 60 quase na vertical. Recordo o Augusto a despachar uma “Instalazza” em tiro directo e o Castanhas agarrado à HK com o Fatana a ajudar.

Estava concerteza a assistir a um “Green Berets”?!! Era isso... só podia!! Aquilo não estava a acontecer!? Era isso... estava no meio de uma sessão no cinema Batalha, pois claro!

Não conseguia ver nenhum “turra” e o filme do Puto desfilava com intermitências diante dos meus olhos, enquadrado por aquela sinfonia de S João! Digo ao pessoal que substituo a segurança à retaguarda e viro-me para trás, para o acampamento e assim fico, tentando afastar aquelas visões e concentrar—me ao máximo no que estava a fazer.

Os tiros amainam e acabam. O IN tinha-se pirado e não tínhamos tido problemas.

Na sua fuga, são avistados alguns elementos. O Barros pega no LG-foguete e despacha na direcção, ouvindo-se o rebentamento lá para longe, ineficaz.

O acampamento é queimado, a bicha de pirilau inicia sob o meu comando a marcha de regresso em direcção à estrada, onde pensávamos passar a noite e aguardar a recolha pela manhã. Minutos andados e o Puto continuava presente, desviando-me da concentração necessária. As portas de S. Pedro estavam escancaradas e os “ponchos” incómodos, proporcionavam um certo abrigo.

O Castro avança para frente e leva-nos a porto seguro. Pelo caminho são apanhados um homem e uma mulher sem armas, que virão a ser entregues para interrogatório.

A noite diluviana iria ser terrível de suportar!

Quartel Teixeira Pinto > Vista do lado da bolanha (creio)

Progressão > Elementos do 2.º GCOMB > Estrada velha Teixeira Pinto - Cacheu. Augusto em primeiro plano com o “Instalazza”

Acampamento temporário IN
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 14 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5463: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (24): De volta à guerra, triste realidade

4 comentários:

Anónimo disse...

Caro Luís Faria
É bom voltar a ler as tuas narrativas daqueles "tempos de braza" a Norte do rio Costa ou Pelundo.
Não posso explicar-te ou corroborar essa ideia de ainda estares a viver mentalmente o tempo prépassado no Puto, metido no meio daquela balbúrdia vietenemesa, pois não passei, felizmente para mim, por tal situação.
Apenas quero dizer-te, um muito obrigado por teres (bem como todos os outros camaradas que faziam a guerra por "aquelas bandas") defendido a minha pele. Graças a vocês, eu podia deslocar-me a Sul do tal rio com muita segurança e à vontade.
Já agora, quanto a chegares "a casa" no dia 6JUL71 (terça-feira), foi com toda a certeza na coluna à tarde, pois creio ser norma realizar-se pelo menos às terças (já que tenho anotados vários regressos "a essa casa" às terças).
Um abraço
Jorge Picado

Anónimo disse...

Caro Luís Faria,
Essa tua "penetração" pela manhã no Balenguerez seguiu o trilho deixado, uns dias antes, pela CCaç 3327, durante a operação "Sempre Alerta" (Junho 28, 1971)
Felizmente não tivemos contacto directo com o inimigo. Mas vimos o suficiente para sabermos que ele estava de regresso aquela mítica mata.
Foi-me dito que, na vossa operação, vocês tinham tido baixas nesse dia. Durante anos vivi com esse estigma.
A progressão naquela mata era pura e simplesmente irreal. A mata era constantemente entrecortada com a densidade de uma planta baixa, cheia de piques (tipo palmeira baixa) que cortavam a pele como navalhas bem afiadas.
A nossa penetração também foi feita pela manhã. Nunca tive o prazer de o fazer pela noite (naquela mata claro).
A operação "Sempre Alerta" marcou a despedida da CCaç 3327 daquela zona.
Um abraço amigo,
José Câmara

Jorge Fontinha disse...

A sorte foi minha, que nessa astura ainda eu me mantinha em férias, algures por Lisboa..., passados que tinham sido os dias de S.António!Não teria muito que esperar pois estava perto o meu encontro com todos vos e então sim viriam as variadas situações que se passariam no Balangares.
Bom regresso ao Blogue.Aquele abraço.

Jorge Fontinha

JD disse...

Meu Caro Luis,
Essa tua teimosia de passares as férias em sessões contínuas, só podia dar no que deu, teres acordado na realidade.
Para a próxima já sabes: desembarcas clandestino, vais pedir hospedagem no Chez-Toi, escondes-te bem escondidinho nas caminhas bem cheirosas das garotas, até que um dia, fumas um charros, e apresentas-te no HMP para a consulta sobre alucinogenios.
Nunca mais voltas à mata.
Um abraço
JD