segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Guiné 63/74 - P5740: Pensar em Voz Alta (Torcato Mendonça) (22): Fotos esquecidas, imagens de gentes de outrora

1. Mensagem de Torcato Mendonça (ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69), com data de 23 de Janeiro de 2010:

Meus Caros
Voltei a ver e guardar melhor fotos que arrumei há dias. Fotos esquecidas, fotos que, de certo modo, provocaram recordações de definição difícil, ou, se o faço direi serem pouco agradáveis. Imagens de uma parte de meu passado.

Militar, Guiné, guerra.

Tudo junto a influir num comportamento, de certo modo, pouco consentâneo com a dita normalidade. Vidas de minha vida. Ou as metamorfoses de um jovem, o claudicar a regras que lhe foram impostas. Regras a vergarem comportamentos futuros ou mentes fracas?

Há escritos aí a necessitarem serem passados à tecla. Adia-se e de repente sai este, sentido, a questionar ainda hoje a influência da vida militar em mim.

Segue o texto e, como sempre terá o destino que entenderem. É vosso.

Abraços, bom fim de semana,
Torcato


IMAGENS
Começava a ficar cansado de arrumar tanta fotografia.

Primeiro foram os slides e recordou certa parte de seu passado.

As fotos falam, dialogam se as olharmos bem. Aparecem acontecimentos de outrora e deixamo-nos embalar nessas recordações. Boas, más, nem uma coisa nem outra? Difícil de nos serem indiferentes. É sempre uma marca do passado.

Como faltavam tantos slides? Recordou então o que acontecera. Fora mau, demasiado mau e aparecia agora, mesmo tantos anos depois em dramáticas recordações, os sons do crepitar das chamas, os gritos de dor, dramático agora, neste momento do presente. Como reagia ele nesse tempo longínquo, aquando dos acontecimentos? Com frieza, com a brutalidade que entrara por ele adentro, com a indiferença por valores que anos antes respeitara. Agora já não, agora não eram valores, agora eram fraquezas.

Desviou o pensamento. Recordou outra perca anos depois, muitos anos depois de outra perca, outra fogueira a entrar na sua vida e perdeu relatórios, livros, projectos em arquivo, fotos e slides de trabalho. Tudo se fora em menos de uma ou duas horas. Porque tinha esta má relação com o fogo? Ou seria uma purificação, um apelo a começar de outro modo?

Que interessava isso agora? Tantas fotos por arrumar ainda. Abriu mais um envelope e parou. Que era aquilo, porque estavam aquelas fotos ali, porque não desapareceram tantos anos depois? Olhou bem o envelope e nada dizia. Não se recordava de as ter guardado. As fotos foram passando lentamente entre os dedos, as imagens entrando olhos dentro, as recordações a virem fortes, demasiado fortes quase se transformando em acontecimentos, não de quarenta anos, mais muitas delas, mas em acontecimentos quase de presente.

Parou depois de ter espalhado as fotos pela mesa. Era doloroso agora rever aquelas imagens. Ela aparecia sorridente, cabelos caídos em ondas largas e olhava a objectiva ou olhava-o ou juntos apareciam numa ou noutra.

Recordava agora aqueles cabelos, aqueles olhos verdes que se fundiam com o seu olhar. Olhar de carinho, de desejo, simplesmente olhar entre pessoas que se dizem amar e trocam promessas. Tantas promessas em juras de fidelidades eternas.

Não, não, isso não. A provar isso ali estavam uma e depois outra foto a atestar a infidelidade, a fuga dele a compromissos, a prisões, a querer sentir-se liberto de ou do nada.

Porque estavam ali as fotos que esquecera. Não as imagens de quem representavam. Sem querer começou a encontrar desculpa na vida militar, na passagem pela Guiné, no enganar-se ainda agora a ele mesmo.

Certo é que a guerra provocou o fim de uma ou outra relação. Certo é que a deriva dos tempos a seguir à vinda também ajudaram. Certo é que hoje, naquele momento não queria ainda assumir culpas, assumir o desejo de voltar a encontrar quem estava naquelas fotos, naquelas imagens. Porque sentia a cabeça a latejar? Apetecia-lhe um cigarro. Não, há anos que não fumava. Um uísque também não.

Arrumou devagar as fotos e esperou pensando em muito do que acontecera.

Onde estariam agora? Que interessava isso? Porque não? Não ia começar de novo ou ia?

Afagava lentamente as fotos e metia-as num álbum da Guiné. Não era a esse tempo que pertenciam? Não fora por ter lá estado que tudo acontecera? Ou eram desculpas?

Voltou a ver as fotos, a rever, a recordar quase uma a uma. Acabou à momentos de o fazer, passada já cerca de uma semana e resolveu guardar bem fundo, mais uma recordação, uma montanha de recordações a ficarem bem fundo.

Recordações de um tempo que sendo ele não o era bem. Desculpas, sempre desculpas.

Eram fotos, simples imagens, imagens de gentes de outrora, gentes que foram passado. Onde estarão? Porque…

Imagens, imagens!

Fnd/22 Jan/010 – 23H50
TM
__________

Nota de CV:

(*) Vd. poste de 31 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5735: Blogoterapia (140): Pensar em voz alta: E agora? (Torcato Mendonça)

8 comentários:

Joaquim Mexia Alves disse...

Meu camarigo Torcato

Não escrevo nada a não ser um abraço para não estragar o sentimento daquilo que li.

Um abraço portanto!

Anónimo disse...

Caro AMIGO. Tao longe e fazes-me sentir tao perto! Um abraco.

António Matos disse...

Caro Torcato,
Ofereço-te o meu silêncio de grande cumplicidade com o humanismo do teu texto.
Um abraço

Luís Dias disse...

Caro Torcato

Deixaste-me com asas por uns momentos e contemplei fases da minha vida, vistas de cima, por assim dizer....

Afinal o humanismo existe ainda dentro de nós.

Uma grande abraço

Luís Dias

Anónimo disse...

Caro Torcado,

Foram-se as cartas e os sonhos. Os bate estradas e os poemas.

Foram-se as fotos, e os escritos.

Ficou uma. Está publicada.

Os tempos são outros, mas a vida teve os seus caminhos.

Foi-se! Flor ainda em botão, deixou a louca recordação!

Foi e será assim até nos extinguirmos...

É bom sonhar acordado.

Um abraço,

Mário Fitas

Hélder Valério disse...

Torcato
Como quase sempre, consegues fazer despertar sentimentos que já estavam 'arrumados'.
Essa tua mania de 'pensares em voz alta' tem esse efeito.
Pelo que já li de comentários anteriores deves ter provocado muitos nós na garganta.
Um abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Torcato Amigo e Camarada, CAMARIGO.
Estou contigo na análise que fazes.
Continua a escrever e a passar para os nossos camaradas e Jovens a mensaghem de Paz. Fim a todas as guerras.

Um ABRAÇÃO,
CMSantos
Mansambo 68/ 69

Anónimo disse...

Torcato,

Obrigado por mais estras palavras que aqui escreveste.

Nada mais tenho para dizer.

Um abraço
BSardinha