domingo, 24 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5700: Tabanca Grande (200): As razões por que eu gostaria de, mas não posso nem devo, aceitar o vosso convite (Carlos Matos Gomes)




Guiné-Bissau > Bissau > Hotel Palace > Simpósio Internacional de Guiledje (1-7 de Março de 2000) > Parte final da comunicação de Carlos Matos Gomes, Cor Cav Ref, antigo combatente português, escritor. Título da comunicação: "Guiné 1973: Quando os portugueses perceberam que chegara o fim"...

Vídeo: 2' 57''. © Luis Graça (2008). Alojado em You Tube > Nhabijoes


1. Mensagem de 17 do corrente, do Cor Cav Ref Carlos Matos Gomes, conhecido estudioso e analista da guerra colonial, investigador e também romancista e argumentista (autor de, entre outras obras, sob o pseudónimo, do romance "Nó Górdio", 1983).

Meu caro Luís, a propósito de uma resposta minha ao post do Jorge Félix relativo ao vídeo da viagem pelo Rio Cacheu Acima (*), fizeste-me uma proposta de integrar esta Tabanca, que me fez reflectir com serenidade antes de ter responder.

A primeira reacção foi: é claro que sim!... Preencho todos os requisitos, tenho ali (na Tabanca) tantos amigos, conhecidos. O local é bem frequentado, isto é, a frequência é de boa gente, são boas as intenções e a finalidade dos que frequentam a Tabanca. Une-me aos que aqui se reúnem recordações de lugares e de tempos e ainda o afecto pela terra da Guiné e das suas gentes. Nada a obstar, antes pelo contrário, tudo me levaria a sentir-me, além de honrado, disponível para integrar este grupo como membro de pleno direito.

Mas… vamos aos mas…

Sou leitor e frequentador assíduo e muito interessado da Tabanca. Tenho um juízo sobre esta Obra. Penso, sem qualquer lisonja, para a qual tenho espinha demasiado rígida e a boca demasiado dura, que este blogue é algo de extraordinário. Um daqueles casos que nos aquecem a esperança e nos incham a alma.

É extraordinário a vários títulos: pela ideia de reunir antigos combatentes num espaço democrático (o que quer dizer de livre expressão de cada um e de obrigatório respeito por todos e cada um dos outros), onde relatassem as suas experiências de há 30/40 anos, revivessem a sua grande aventura dos 20 anos, restabelecessem contactos, amizades e camaradagens, recordassem através da escrita e da imagem os lugares, os acontecimentos e as pessoas com quem partilharam os seus tempos da guerra, que servisse até de veículo de ajuda.

É extraordinário porque tem mantido o diálogo entre pessoas com diferentes visões da guerra e das situações num elevado nível de tolerância, mesmo quando o calor provoca reacções mais ásperas.

É extraordinário porque o colectivo do blogue conseguiu criar um "espírito de corpo" entre os tabanqueiros, que se revêem nas histórias, nos convívios que se vão multiplicando, nas acções que se desenvolvem, seja de solidariedade e ajuda ao povo da Guiné, seja a camaradas em dificuldades, seja ainda a familiares que procuram reconstituir as histórias de parentes seus na guerra.

O bloque e a Tabanca são um espaço de pureza e generosidade.

A pureza do blogue e dos seus tabanqueiros tem a ver com aquilo que é a sua matriz, a sua característica fundadora, o seu ADN: o blogue serve para relatar, contar, descrever, para transmitir emoções, para despejar pesos acumulados.

O blogue é a camaradagem, o que desaconselha grandes reflexões, análises e explicações. Deve continuar assim. É a sua força.

Ora eu, pelos rumos que a minha vida tomou, se ainda mantenho a minha generosidade, perdi a pureza de reviver a guerra colonial. Isto é, eu bebo do blogue, leio o que os homens da minha idade e da minha geração que passaram pelos locais por onde eu passei escrevem sobre ela, tento perceber como, em termos colectivos, a minha geração viveu este período da nossa História. Cada pequena descrição, ou relato, ou fotografia, ou filme, que cada um coloca é para mim um objecto de análise. Não tenho, pois, a pureza indispensável para me intrometer neste ambiente, não me sentiria confortável a fazer de mais um, quando afinal eu era e sou o que está a observar.

Um dos muitos factores de interesse do blogue é ser, além de um extraordinário local de convívio para os antigos combatentes da Guiné, uma futura fonte de conhecimento para a História da guerra colonial. E este conhecimento assenta em informações, por vezes únicas, sobre determinados acontecimentos e só isso já seria muito e bom serviço, mas o mais importante é que este blogue vai permitir aos historiadores e aos interessados do futuro pela História de Portugal, pela história colonial, pela história das forças armadas portuguesas e pela História da Guiné uma visão muito real sobre os actores que estiveram no terreno.

Raramente, na história em geral e na história militar em particular é possível aceder ao sentimento, ao pensamento dos homens comuns que a fizeram. Este blogue dota os futuros estudiosos desse precioso elemento que é o de lhes fornecer o relato em primeira mão do soldado, do sargento, do subalterno, do capitão que estavam no mato, a bordo de navios, nos aviões.

Eu, pelo facto de ter enveredado muito cedo pelo trabalho de análise da guerra colonial, sou alguém que polui essa fonte. Se aceitasse pertencer à Tabanca e aceder ao teu convite, estava a seguir o meu instinto e a fazer o que eu gostaria, mas não estava a prestar um bom serviço à Tabanca (tenderia a apresentar análises e a fazer interpretações que gerariam tensões e desviariam a atenção dos puros tabanqueiros), nem estava a prestar um bom serviço ao futuro estudo da guerra colonial, pois introduziria factores de distorção na análise. Estava a fazer o que gostava, mas não o que devo,

É por tudo isto que aqui tentei resumir e sem ter a certeza de ter sido claro que, meu caro Luís, te peço para me deixares neste lugar de entre.portas, a vaguear pela Tabanca como um estrangeiro adoptado, respeitando os usos e os costumes, falando quando me autorizarem, ou quando me pedirem, saudando os que assumem a responsabilidade de manter o fogo aceso, o gado alimentado, os fracos protegidos. Sendo agradecido pelo muito que o vosso labor me proporciona, pelo que aprendo e pelas amizades que criei.

Um grande abraço

Carlos Matos Gomes.

NB: Desculpa a extensão da resposta, mas não consegui resumir e devia-te, e a todos os membros da Tabanca, uma explicação séria, sem falsas humildades, mas principalmente sem deixar qualquer mal-entendido sobre a recusa a partilhar um espaço como este que, reafirmo, honra todos os que a ele pertencem e me honraria a mim também, se não fossem as razões que tentei expressar.

[ Revisão / fixação de texto / bold / título: L.G.]

2. Comentário do Carlos Matos Gomes, com data de 21 do corrente, a uma mensagem minha em que lhe dava conta de um mesquinho e reles comentário de alguém a um vídeo com o excerto da sua comunicação ao Simpósio Internacional de Guiledje (Bissau, 1-7 de Março de 2008), disponível em You Tube > Nhabijao, em conta associada ao nosso blogue.

Olá, Luís, um abraço. Obrigado pelo envio do comentário às minhas declarações no colóquio. Nada a acrescentar, porque não merece resposta.


Estas afirmações lembram-me sempre uma pequena história passada com o realizador americano John Ford. Quando lhe perguntaram há quanto tempo estava em Hollyhood ele respondeu: não me lembro, só sei que quando cá cheguei, a Doris Day (uma atriz especialista em papéis de ingénua e pura) ainda não era virgem. Isto para dizer que quando andei pela Guiné ainda estes tipos não eram heróis...

Um abraço, Carlos Matos Gomes

3. Comentário de L.G.:

Carlos:

Em meu nome e dos demais editores, o Carlos, o Eduardo e o Virgínio, bem como de todos os demais amigos e camaradas da Guiné que se reconhecem neste blogue, agradeço as palavras que dizes a nosso respeito e que são um estímulo, público, para continuar...

Às vezes, as nossas forças também fraquejam e a gente tem dúvidas, legítimas, sobre o caminho a seguir... Tu bem sabes, da longa e dura experiência dos três TO por onde passaste, a começar pela Guiné, como as picadas pareciam não ter fim... As tuas palavras são um doce bálsamo para as dores do caminho e um bom tónico para prosseguir, apesar de alguns conflitos, incompreensões e escaramuças que, inevitavelmente - e por que não, saudavelmente - surgem neste percurso comum...

E queremos prosseguir, não exactamente por sentido de "missão" (não somos heróis nem iluminados, somos apenas 'common people'), mas pela simples razão de termos criado, quase sem o querer, uma comunidade de desvairadas gentes que têm, como menor denominador comum, uma experiência de guerra e o conhecimento, vivido, de uma terra...

A guerra colonial e a Guiné-Bissau (ou o discurso sobre) não são monopólio de ninguém, nem sequer mesmo dos guineenses... Este período da história comum de portugueses e guineenses está longe de estar encerrado. Vamos continuar a esforçarmo-nos por manter este espaço plural e aberto, e cultivar nosso espírito de partilha, de tolerância e de discrição.

Dito isto, entendo inteiramente as razões por que gostarias de, mas não podes em deves, aceitar o meu/nosso convite para integrar a Tabanca Grande. És uma figura pública, um autor com obra feita sobre a história e a ficção da guerra colonial, não queres com a tua presença inquinar ou enviesar as fontes subterrâneas que alimentam este blogue... É de um grande honestidade intelectual: tu não queres ser o eucalipto que seca tudo em seu redor, os poilões, os bissilões, as cabaceiras, o mangal... da nossa Tabanca Grande.

Em contrapartida, deixa-me aceitar a tua proposta de seres uma espécie de marginal-secante, alguém que está fora e está dentro, que intersecta dois sistemas... Não propriamente esse "estrangeiro adoptado" de que falas, mas sim alguém que ocupa esse "lugar de entre.portas, a vaguear pela Tabanca (...), respeitando os usos e os costumes, falando quando me autorizarem, ou quando me pedirem, saudando os que assumem a responsabilidade de manter o fogo aceso, o gado alimentado, os fracos protegidos"...

Carlos, aparece sempre que te der na real gana, entra e sai: não precisas de bater à porta...

Como bem sabes, nesta Tabanca Grande não há moranças com portas nem janelas, não há bunkers nem abrigos, não há portas de armas nem cavalos de frisa, não há cercas de arame farpado, nem muito menos campos de minas e armadilhas... No dia em que nos impuserem tal, serei eu o primeiro a escolher a picada do exílio...
_____________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 12 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5632: Comentando o vídeo do Jorge Félix / Pierre Fargeas, sobre a viagem em LDG entre Bissau e Binta, no Rio Cacheu (Carlos Matos Gomes)

(...) 2. Comentário de L.G.: Dei conhecimento prévio deste mail ao Jorge ("Para teu conhecimento em primeira mão e incentivo para o próximo vídeo")... Quanto ao Carlos, disse-lhe o seguinte:


Carlos: Obrigado pela aplicação no TPC... LDG e não LGD: a culpa é sempre das pressas e da falta de controlo de qualidade... final.


Tudo de bom para ti e para nós em 2010. Já é altura de entrares para a Tabanca Grande, que não tem porta nem janelas...Luís

4 comentários:

José Marcelino Martins disse...

Daqui envio um abraço fraterno ao Calos Matos Gomes.

Só o conheci "pessoalmente" na apresentação do filme as "duas faces ga guerra"

Mas já o tinha "contactado" através dos seus livros, nomeadamente, Nó cego e Soldadó, alem das obras sobre história militar da Grande Guerra e Guerra Colonial.

Como diz o Luis Graça, continua a aparecer por cá. Aqui tambem tens o teu lugar, de direito próprio, por combatente e amigo da Guiné, e, sobretudo, por aqui se matêm os teus amigos.

José Martins

Anónimo disse...

Caro Matos Gomes.

Depois da leitura das razões apontadas para declinar o convite para o ingresso na Tabanca Grande feito pelo Luís Graça, a consideração pelo combatente e a admiração pelo escritor ficaram mais sólidas.

Percebo claramente a tendência para a análise em detrimento do contar como foi, neste espaço que é o blogue.

Por outro lado agrada-me a perspectiva de ter camaradas com o prestígio do Matos Gomes no papel de observador, e com fácil acesso aos meios de comunicação social, sempre que falar sobre os ex-combatentes, estou certo de que o fará sempre de forma a que se evite o esquecimento.

Um abraço

Manuel Marinho

Hélder Valério disse...

Ao Carlos Matos Gomes

Li com atenção tudo o que foi escrito sobre o Blogue e sobre as razões invocadas para declinar o convite feito pelo Luís Graça. É óbvio que respeito a decisão tomada (nem podia ser de outra forma) mas compreendo os argumentos e parecem-me consistentes.

Também considero aceitável esse 'entre-portas', até porque, na prática, é o que se passa com muitos camaradas, que seguem o Blogue, às vezes fazem um comentário, um ou outro fará um texto mais elaborado, enfim vão, também, à sua medida, contribuindo para alimentar este 'rio'.

O que é mais importante, o que é fundamental, é essa disposição manifestada para continuar a haver contribuições quando e sempre for oportuno ou solicitado.

Um abraço
Hélder S.

Anónimo disse...

Sinto que hoje irei adormecer mais seguro (entre as renas) confortado pelo sentimento de haverem intelectos que,das alturas do Olimpo analisam os meus pensamentos básicos...ou de básico. Com as melhores Saudacoes.