sábado, 23 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5694: Histórias de José Marques Ferreira (14): O macho desejado


1. O nosso Camarada José Marques Ferreira, ex-Sold. Apontador de Armas Pesadas da CCAÇ 462, Ingoré - 1963/65 -, enviou-nos com data de 22 de Janeiro de 2010, a seguinte mensagem:

Camaradas,

Não me ausentei, nem abandonei a Tabanca Grande... Apenas andei "distraído" com outras coisas, não me deu oportunidade de aqui poder "estar" mais frequentemente com a colaboração a que me comprometi, enquanto posso e houver motivos.

Pressinto que estarei desculpabilizado e, com votos de boa saúde para toda a gente deste «local», aqui envio uma pequena estória, de Ramiro Fernandes Figueiredo, que foi médico da CCaç 462, em 1963-1965, em Ingoré e outras localidades por onde passamos. Pequena e singela, apenas produzindo uma amostra da sombria vida daquele povo Guineense. É isto o que o seu conteúdo pretende "mostrar".


O MACHO DESEJADO


Velho nas giras balantas, de coxas musculosas – mas já flácidas -, mascando o tabaco em pó, guardado em pequena extremidade do chifre de uma vaca, barba crescida e já entremeada de laivos prateados, com o chapéu de esteira quadrangular na cabeça, lá estava o velho SAMUD olhando o capim que crescia em alvoroço em bolanha fértil.

Com aquela idade já pouco podia fazer.

Ano após ano esperava em vão o filho que sonhara, sentado no ourique empapado e negro, imaginando-o troncudo e enorme que rasgava a lama fecunda com a precisão de um veterano e o entusiasmo de rapariga em noite de batuque.

A cada sulco, a cada golpe, o velho abanava a cabeça numa aprovação muda e amarga. Acariciava a barba requeimada por anos de cachimbadas apreensivas e sôfregas.

Como lhe tardava a nascer um filho, como ele o desejava! Chuvas e chuvas de canseiras, lavrando e suando; beijando a terra que lhe daria o arroz, na mira de pecúlio para aumentar as cabeças de gado. Trabalhador e honesto jamais aparecera no Posto por furtar uma vaca.

Luas e luas, na época do seco, enganando a fome, fugindo da loja onde a aguardente de cheiro activo e adocicado tentava um santo, para que não se endividasse, para não ter de entregar, na hora da colheita, toda a produção a título de pagamento.

Quantas dores não recalcara, silencioso e grave no dia que lhe roubaram três vacas amarelas e possantes que o seu suor, a sua fome, o seu isolamento haviam pago com moedas de sangue!

Por fim casara. Não tivera de mendigar mulher, de porta em porta requerendo prazos, firmando contratos. Aparecera, um belo dia, com um bom partido. Pudera escolher, fazer-se exigente, impor condições. De nada lhe servira.

Ano após ano esperava em vão o filho que sonhara. Nem o jambacosse, nem as viagens que a mulher, só, de povoação em povoação fizera, nem os mèzinhos, nem as sovas, nem as pragas.

NADA!

Vezes sem conta arrumara as alfaias e as esteiras, pronto para a mudança de terra, mas aquelas bolanhas férteis e negras, incansáveis, agarraram-no sempre, e sempre o acorrentaram à grilheta eterna.

Arranjara outra mulher. Desta vez, porém, pagara-a bem paga – que a notícia da esterilidade correra toda a Administração de Posto e lhe assacaram a culpa. Trouxera-a mimada, enchera-a de panos e lenços, de aguardente e tabaco. Fechara os olhos, complacente, à sua malandrice. E não ouvira – nunca as pragas e as queixas, as revoltas espectaculosas que a primeira fazia, em gritos furiosos que toda a povoação escutava.

Um filho. Ele mais não queria que um filho, um macho valente que juntasse aos seus braços novos músculos, aos arados novas mãos. E o filho tardara. Sofreu a injúria das piadas mordazes, a afronta dos desrespeitos, a dor de novos roubos – que homem sozinho é arado sem cabo.

Pedira apoio, gritara, ameaçara. Naté, aquele porco que deixou a mulher morrer no mato, depois de partir, empunhara o terçado quando lhe pediu ajuda e fizera-o calar. Estava bêbado o cão!
Tudo passava pelo seu espírito, sentia-se só, muito só e tristonho. DAVATAMBE, ainda a resfolgar, sem fôlego, borracho como um porco dissera a contorcer-se num riso rouco ao passar junto do velho SAMUD: - “Então a tua Cumba não fica prenhada?!...”

Samud emudecera. Como aquele cretino adivinhara o que pensava! E, aumentava a sua dor que mastigava e engolia silencioso. Rolou-lhe uma lágrima pelo rosto e olhou distante até aos confins do capim selvagem que lhe invadia as terras da bolanha outrora férteis.

E ali ficou parado e mudo, olhando estupidamente para a água muito clara, para a canoa encalhada, para a sua Cumba que se aproximava indiferente e sorna.

“OKEY”
Pseudónimo de Ramiro Fernandes Figueiredo
Ex. Alf Mil Médico da CCaç 462
Guiné – Ingoré, 11 de Abril de 1964
Um conto integrado no «Jornal da Caserna» (nº 5)
Periódico daquela Companhia

Cumprimentos a todos sem excepção,
J.M. Ferreira
Sold Ap Armas Pes
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Nota de M.R.:

(*) Vd. último poste da série em:


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