sábado, 16 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5657: Notas de leitura (55): No Regresso Vinham Todos, de Vasco Lourenço (Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), com data de 14 de Janeiro de 2010:

Queridos amigos,
Aqui vai a recensão do livro organizado pelo Vasco Lourenço.
Agora vou começar a ler as obras do Armor Pires da Mota, tenho uma grande tarefa pela frente.
Consola-me a surpresa que nos vai trazer este combatente escritor.

Um abraço do
Mário


Antes suar que verter sangue
(ou o desejo permanente de um feliz regresso)


Beja Santos

No Regresso Vinham Todos é o relato da CCAÇ n.º 2549 contado pelo seu Comandante, Vasco Lourenço, um dos Capitães de Abril, um acervo de memórias de oficiais e sargentos que nos falam singelamente das suas emoções, medos, desenrascanços, tiroteios, descobertas culturais, ausências de toda a espécie. É um testemunho encadeado de estados de alma a várias vozes. A maior alegria que perpassa por todo o texto é que regressaram todos, a despeito de todas as contrariedades, sofrimentos e inquietações. Sobretudo em Cuntima, bem ao pé do Senegal, o pessoal da CCAÇ n.º 2549 combateu, construiu, ensinou a ler e a escrever que lá ficou.

Chegaram à Guiné em 25 de Julho de 1969, dias depois partiram de Brá em LDG para Farim e depois Cuntima. Foram praxados, periquito sofre. Segue-se o baptismo de fogo, gente meio estremunhada salta para os abrigos sem saber muito bem como foguear, dando vazão à corda dos nervos. Muitas mais flagelações vieram. Depois atacam-se objectivos, o inimigo bate em retirada, destroem-se casas de mato e apreende-se algum material. Fazem-se emboscadas bem perto da fronteira ou nos corredores por onde o inimigo se infiltra, a caminho dos santuários. Por vezes há equívocos, os pelotões andam às voltas à procura da boa direcção. Aprende-se o que a guerra tem para nos ensinar: os ataques de formigas, a sede, a saudade de uma sopa bem-feita, a nostalgia da noite da Consoada, as piadas carnavalescas, as aflições das emboscadas, a fazer hortas de onde não saem legumes mas onde se pode enterrar garrafas que estão frescas à hora das refeições. Alguns dos contadores são imaginativos. Um deles decide contar uma história aos netos, do género: “Pois já que tanto insistis, hoje vou contar-vos uma passagem que vivi na Guiné. O que ides ouvir é o pouco que recordo com saudades do muito que vive e sofri. Quando estava em Cuntima, povoação fronteiriça do Norte da província, habitei durante dez meses no Tosco. Ora, o que era o tosco?, perguntais vós. Era um abrigo aí com as dimensões da vossa salita de estar, um cubículo onde vivia o vosso avô com mais quatro camaradas. O abrigo era feito de grandes troncos de árvore, daquelas árvores gigantescas e muito rijas que há em toda a África. Eram troncos dos lados e troncos por cima. Estava cavado no solo a uns metros de profundidade e interiormente forrado com panos de tenda, ponches e esteiras de palha feitas pelos nativos... o abrigo enchia-se sempre que havia ataque, pois a messe de sargentos e cantina do soldado eram ali próximo. Ao primeiro rebentamento, todos tentavam alcançar o abrigo o mais rápido possível...”

A CCAÇ n.º 2549 teve muito orgulho em ver crescer a nova tabanca de Cuntima: ”Durante todo o mês de Maio e meados de Junho de 1970, todas as casas estavam construídas, primeira fase uma obra que se seguiria com o reboco exterior e interior das paredes e varandas com cimento e caiação... Quando saímos de Cuntima em coluna, olhámos para trás e vimos os raios solares reflectidos no zinco das casas da nova tabanca, como um espelho, como símbolo da nossa acção em terras da Guiné”.

Depois partiram para Nema, a comissão caminha para o fim, fala-se de amores com nativas, há muita inquietação pela vida que se vai retomar. Há também estórias soltas daquele soldado que se dizia filho único, esquecia-se de incluir o irmão vagabundo e a irmã surda-muda, o soldado Ribeiro considerava-se o amparo dos seus pais. E Vasco Lourenço despede-se deste singelo relato assim: “Regressou-se. Fizeram-se variadíssimos roncos, quer em baixas infligidas, instalações destruídas, meios de vida destruídos e inimigo material capturados. Mas para nós o ronco mais desejado fora atingido. No regresso vinham todos os que tinham partido e sem qualquer desaire a lamentar.”

Estamos em crer que não deve haver alegria maior do que todas estas vidas preservadas.

Vasco Lourenço, alguns dos seus alferes e outros oficiais a caminho da Guiné. Um bonito apontamento da viagem da partida de onde regressaram todos: fardas imaculadas, tecido ainda por lavar, sorrisos despreocupados
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 15 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5650: Notas de leitura (54): Guiné 1968 e 1973 Soldados uma vez, sempre soldados!, de Nuno Mira Vaz (Beja Santos)

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