quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Guiné 63/74 - P5640: Canjadude, a chegada de um periquito (1): De Lisboa a Gabú (José Corceiro)

1. Mensagem de José Corceiro* (ex-1.º Cabo TRMS, CCaç 5 - Gatos Pretos -, Canjadude, 1969/71), com data de 10 de Janeiro de 2010:

Caro Luís Graça, Carlos Vinhal e Colaboradores, Boa Tarde
Envio este trabalho caso queiram postar.
O título pode ser CANJADUDE, A CHEGADA DE UM PERIQUITO, este ou outro que achem adequado. Logo que tenha a palavra-chave Canjadude tudo OK.

Boa semana de trabalho, um abraço para vocês e para todos os tertulianos. Haja saúde.
José Corceiro


INTRODUÇÃO

O que escrevi sobre o passado, praticamente foi transcrito dos apontamentos que tenho da época, alterei alguns tempos verbais, algum discurso e adequei alguma adjectivação, de forma a torná-los contextualizados; excluí passagens para não tornar o documento tão maçudo. Já passaram mais de 40 anos desde que escrevi os apontamentos, que serviram de apoio e referência para escrever este artigo. Os apontamentos têm estado arrumados e esquecidos, sem justificação alguma, a não ser desinteresse. Após o meu regresso, excluindo, 3 ou 4 meses, após a minha vinda, que mantive correspondência regular com alguns amigos, que continuaram na Guiné e um telefonema feito há 30 anos, não tive mais contactos (não os tinha) com camaradas do meu tempo embora não tenha havido razão e motivação para este comportamento. Ainda não há um mês é que acidentalmente, na “Net”, descobri o José Martins.


CANJADUDE, A CHEGADA DE UM PERIQUITO (1)

Somos obra moldada por diversas condicionantes, meio sócio-económico, família, ambiente, amigos, experiências… e hereditariedade. Porém, acho que o meu Genoma humano, não trouxe mapeado o código belicista, eu tenho os 46 cromossomas, sendo um emparelhamento XY, como todo homem tem, mas predicados armíferos e destreza militar, não me cativam, não nasci para ser combatente guerreiro, embora saiba que todos somos por natureza animais selvagens à nascença. Mesmo assim, fui parar a uma guerra e não sei onde nem como, arranjei forças para levar a minha missão até ao fim, ainda que não tivesse tido necessidade de disparar uma arma no teatro de guerra.


Uma das necessidades primárias dos seres vivos é a sobrevivência

Contrariando o psíquico e o somático consegui força e aprumo para chegar a bom porto e estar agora aqui.
Estava a meio da especialidade de transmissões, BC 5, quando recebo a notícia (08-02-1969) a dizer que no dia 4 de Fevereiro de 1969, o meu tio, Francisco Vaz Silva, irmão da minha mãe, praticamente com a minha idade, tombou em combate em Angola, Zala, BCAV 2854/CCAV 2431. O meu tio veio de França, voluntariamente, para cumprir o serviço militar. Da minha terra tombaram dois mancebos em combate no Ultramar, meu tio foi o primeiro. Era tio, amigo e companheiro, fomos criados juntos, até andámos na mesma escola, brincámos à xoina e ao pião.

Em 2 de Maio 1969, recebi a reconfortante notícia que estava mobilizado, rendição individual, para a Província da Guiné.
Fui para a minha terra, gozar os 10 dias da praxe devido à mobilização. Por recear que a minha família viesse a saber, não tive coragem de contar, a quem quer que fosse, que estava mobilizado para o Ultramar, pode não ter sido a melhor opção, eu é que estava no palco, e ponderando, pareceu-me a mais razoável. Tinha a família toda de luto e destroçada. A minha avó passado meia dúzia de meses faleceu, relativamente nova, com menos idade do que eu tenho agora, tendo contribuído a morte do filho para esse fim. O meu avô, sentia uma certa culpa por ter incentivado o filho a regressar de França, para cumprir o serviço militar, ainda que, para tentar ocultar e minimizar o seu sofrimento, dissesse que ele tinha morrido em defesa da Pátria.

O funeral, do meu tio, só se realizou em 23 de Junho de 1969, já eu estava na Guiné. Passaram mais de quatro meses, após a sua morte até se realizar o funeral, sem que entidade alguma tivesse tido a amabilidade de dar uma justificação para esta dilação de tempo, embora tenha havido esforços do lado da família, para obter informações; a família continuava a sofrer em lume brando!

Campa de meu tio na sua terra natal, Vale de Espinho, Sabugal.

Em 24 de Maio 1969, por volta do meio-dia, deixo o Porto de Lisboa no N/M Niassa, rumo à Guiné. Foi emocionante e comovente, ver aquela moldura humana de familiares e amigos a despedirem-se. No cais, eram uns com lenços nas mãos a acenar, outros com lenços nos olhos, no nariz, na boca, outros deitavam as mãos à cabeça, enquanto outros apertavam a barriga, cada familiar e amigo expressava queixume e desespero com o sentimento de gesto diferenciado. Um quadro impressionante que me fez cogitar e questionei-me:

- Será, que é a atitude mais acertada, eu empenhar-me a defender a Pátria e a Bandeira neste caso?

- Será, que têm razão os que desertam, como fizeram alguns da minha terra?

Fiquei confuso, ao ver tanto rosto carregado de tristeza, fisionomias que transpiravam sofrimento e mágoa e, pensava:

- Não será esta expressão de dor uma manifestação de revolta colectiva amordaçada, e estão aqui os familiares a despedir-se dos seus ente queridos, como que a implorar, alertar e sensibilizar, os responsáveis do País, para ver o que estão a fazer à "mocidade"…?

- Se a minha família soubesse que eu estava de partida, também estariam aqui com este pranto? Estas e outras dúvidas apoderaram-se do meu pensamento…
Fiquei esmagado, senti-me qual neutrão, quando se dá a explosão da bomba atómica, insignificante!

Como era rendição individual, no barco, não tinha laços de proximidade com ninguém. Não havia conhecidos. Fui escalado para ficar responsável, por um grupo de dez homens para juntamente com dois, irmos buscar a alimentação à hora das refeições. Após a distribuição da mesma, cada um arranjava o melhor local onde podia comer, era no chão, nas escadas, onde houvesse um buraquinho, era a lei do desenrasca, mais parecíamos uns indigentes. Quanto a dormir e higiene, o mínimo que se podia dizer é que eram condições desumanas, era uma promiscuidade!

Antes de passar pelo Funchal, segundo dia de viagem, comecei a enjoar, era o conflito do meu sistema nervoso para-simpático com o simpático, estava instalada a guerrilha, durou até à Guiné.

Dia 29 de Maio 1969, por volta das 21.00 horas, cheguei ao Porto de Pidjiguiti em Bissau, só desembarquei dia 30. Levaram-me para o DGA, onde logo que cheguei, quis a minha fada madrinha que encontrasse, por mero acaso um amigo, tínhamos estudado juntos. Não me deixou mais. Escrevi, e pedi desculpa aos meus Pais pelo que tinha acontecido, assim como a outras pessoas a quem devia esclarecer e informei que estava tudo bem. Nestes três ou quatro dias, que estive em Bissau, tinha que estar presente na parte da manhã para responder à chamada e saber se havia transporte para o meu destino. O meu amigo, arranjou-me lugar para dormir, sossegadamente, senão tinha que dormir ou numa viatura ou no chão, servindo a bagagem de cabeceira, como muitos estavam a fazer, aparecendo quase todos cheios de edemas das picadas dos mosquitos, eram aos milhares e não resistiam à tentação de uma sugadela de sangue fresquinho de periquito.

Nestes dias, praticamente, não dei despesa ao Exército, só os transportes, do DGA para Bissau e regresso. Para descomprimir e fazer uma purgação de exultação, assim como libertar energias negativas, o meu amigo e outro amigo dele, levaram-me a ver, e não só, umas lavadeiras, numa bolanha, relativamente perto do DGA, não sei bem o local exacto, quando se ia de Bissau para lá, era lado direito.

Sou por natureza bucólico, encanta-me o campo, a paisagem a floresta, fiquei surpreendido, havia contraste com o espaço árido entre o DGA e Bissau. Além disso, foi agradável ver as lavadeiras, algumas completamente nuas, uma mais atrevida e desinibida, vendo o nosso olhar maroto e malicioso, aveludado de concupiscência, dirigiu-se ao meu amigo nestes termos:

- Bu mamé é puta, sinon bu cá tinha nascido.

Não sei se será algum provérbio guineense, mas foi oportuno, nunca o esqueci. Para o meu íntimo, estes momentos a que vinha assistindo, já eram reveladores do fosso cultural entre nativos e metropolitanos, começava-me a aliciar a idiossincrasia e a genuidade do povo guinéu, despido de formalismos e preconceitos; para mim era pureza, esplendor natural, como que um ode à criação. Logo ali, se iniciou mais um despertar, por um lado a intuição, por outro o raciocínio, comecei a ficar sobressaltado e a entender que era outra cultura, outra forma de ser e estar na vida, eles estavam no seu habitat. Só havia que aceitar e respeitar eu estava desintegrado, sou invasor!

A descontracção, um pouco libertina com o meu amigo e amigos dele, coisas de mocidade, mas nada demais, foi salutar, foram pequenos nadas mas muito tonificantes e reconfortantes para o meu ego, deram-me um certo alento e ânimo, os pólos das baterias ficaram desequilibrados. No organismo vivo, tem que haver desequilíbrio para haver reacção química. Equilíbrio é morte, é parar. Assim, o meu sistema nervoso, para-simpático e simpático anuíram em assinaram um armistício. O conflito não levava a nada estava-me a descompensar e depauperar.

Dia 3 de Junho 1969, informaram-me que tinha sido colocado na CCaç 5 em Canjadude e nesse dia deixei Bissau, estrada rio Geba, rumo Bambadinca numa LDG, onde iam militares e civis como sardinha em lata. Além da massa humana, havia muita mercadoria e os civis levavam de tudo, desde alfaias agrícolas, produtos alimentares, pilões, gaiolas com galinhas e pintos, todo o tipo de animais, que confusão, até cabras iam. Sol abrasador, sombra ou lugar para sentar não havia, isto tornou-se fatigante, se ao menos houvesse um mínimo de conforto, para quem gosta de Natureza como eu, isto era um mimo, pois a paisagem parecia-me deslumbrante, só que nestas condições maçantes, não havia serenidade e predisposição para apreciar e desfrutar o meio circundante. O Geba era bastante largo e o barco deslocava-se na parte central. As margens estavam praticamente ladeadas, em toda a sua extensão, por arvoredo compacto, pareciam ser matas virgens encantadoras, eram, para mim, matas onde a pata do homem nunca tinha posto a mão, familiar, para os meus olhos, só as palmeiras, de espaço a espaço viam-se habitações.

Numa altura do percurso, começo a notar uma movimentação algo precipitada nos militares de protecção e segurança da LDG, posicionam-se em locais estratégicos, com armas apontadas para as margens, o rio era mais estreito e sinuoso. Eu conversava com o meu imaginário e o olho de soslaio, sempre atento a divisar onde me poderia escudar, não fosse o diabo tece-las, e, ia pensando:

- Será que vou ser já baptizado sem me darem a oportunidade de aprender a saltar nos galhos, pois sou periquito, tenham dó de mim, porra… deixem-me debicar alguma mancarra.

O meu pensamento, em turbilhão, viajava pelo etéreo e comecei a magicar tácticas de guerrilha e a compreender o quão fácil seria para a tropa inimiga disparar um roquete das margens e provocar uma tragédia, ou quiçá afundar isto tudo, caso tivessem a sorte para eles e azar para nós, de acertar num ponto crítico mais fragilizado; não era guerra de guerrilha?! Felizmente cheguei a Bambadinca sem que nada de maior acontecesse.

Estive dois dias em Bambadinca, (nunca mais lá passei) tive que dormir no chão, ainda não estava habituado, tinha que zelar pelos meus haveres, não viesse algum abutre mais atrevido e pensasse que aquilo estava abandonado, foi tarefa complicada, não estava integrado em nenhuma estrutura. Como alimentação, quando cheguei, deram-me uma ração de combate sem pão, no dia seguinte o comer pouco melhorou, não havia comércio onde comprar, tive que passar fome. Um militar, não sei posto, devia estar aquartelado em Bambadinca, só sei que se chamava, Azevedo, repartiu alimento do pouco que tinha comigo.


Uma das necessidades primárias dos seres vivos é a manutenção

Ao longo de toda a comissão na Guiné, o dilema e busílis da questão, para mim, foi sempre a alimentação, o meu físico ressentiu-se, tive momentos delicados, ainda que me empenhasse para minimizar o problema sem que os outros percebessem; não sentia apelativo pelo comer militar! Confesso que sou adepto da teoria comer para viver e não viver para comer, porém, aprecio os comeres mais simples, não sou esquisito nem difícil com alimentação, sou exigente sim na higiene e estado de conservação, não há um alimento que eu possa dizer não gosto, sou omnívoro completo, não me repugna por exemplo comer carne de equídeo crua, sem sal, mas temperada com vinho ou limão e alho. Já o fiz muitas vezes, na minha juventude, quando os guardas-fiscais, na minha terra, matavam algum cavalo ao perseguirem os contrabandistas. Não encontro pois, razão para toda esta repugnância à alimentação militar à época. Continua a ser intrigante, quando faço viagens ao passado e psico-analiso esse período e me vem à mente esse passado, difícil, em que existia um conflito, entre o meu psíquico e somático, com o comer militar, pondo em risco a minha manutenção, desafiando uma das necessidades primárias dos seres vivos. Tinha alimento na mesa, precisava do comer, mas não conseguia comer. Sei que são muito complexas as sinapses, nos canais infindáveis, do subconsciente com o consciente mas eu tentava compensar através da sugestão, mas os resultados foram pouco palpáveis. Acho que o comer, não era bom, mas não seria assim tão mau, pois os outros militares comiam!?

Dia 5 de Junho, saí de Bambadinca em coluna militar rumo a Bafatá, é dia de Corpo Deus, logo, Quinta-feira e feriado nacional. Durante a viagem foi sempre a cair água da grossa, a cântaros, até os cães bebiam em pé, cheguei a Bafatá, parecia um pinto, todo repassado e encharcado, até ao tutano dos ossinhos, felizmente está calor. Mais uma ração de combate, só que aqui, há onde comer fora e lá me orientei, dormir, mais uma noite no chão e ao relento.

De manhã, por volta das 6.00 horas, dia 6 de Junho 1969, sem me darem nada para comer deixei Bafatá (não voltei aqui mais) em coluna militar, rumo Nova Lamego “Gabu”. Chegado a Nova Lamego apresentei-me e encaminharam-me para uma Delegação da CCAÇ 5, onde fui recebido pelo 1.º cabo Camilo Amaro (Natural de Murça), boa pessoa, que representa a Companhia em Nova Lamego e disse-me, que em Bissau também há uma Delegação da Companhia, com um furriel e um condutor, para tratar de assuntos da mesma, mormente dos frescos alimentícios. As instalações da Delegação aqui, são simpáticas e funcionais, são fora do quartel, separados por uma rua, é uma vivenda integrada no conjunto das outras habitações, não se pode, dentro do contexto, exigir mais. A habitação, dá acesso, pelo seu interior ou por um corredor lateral exterior, a um quintal a tardoz, onde há muitas lagartixas, que sobretudo quando está calor, o sol incide nos seus corpos e o sangue aquece, digladiam-se afincada e competitivamente para alcançar a presa, essencialmente insectos ou alguma migalha que esteja ao alcance; já os machos, distinguem-se das fêmeas, pela diferença melânica (pigmento na pele, melanina), envolvem-se em confrontos e lutas fratricidas pelas conquistas das fêmeas e domínio territorial.

Para todos um Abraço.
José Corceiro

(continua)
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Nota de CV:

(*) Vd. poste de 5 de Janeiro de 2010 > Guiné 63/74 - P5592: Memória dos lugares (64): Civis e militares em Canjadude (José Corceiro)

1 comentário:

Arsénio Puim disse...

Gostei do «primeiro capítulo», baseado em notas que teve a curiosidade de fazer na altura certa, o que, penso, muito poucos fizeram. A descrição revela espírito de observação, sensibilidade, ilustração, e está redigida com grça.
Um abraço
Arsénio Puim