quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5486: Estórias avulsas (22): Partida e chegada ao inferno (Jorge Canhão)



1. O nosso Camarada Jorge Canhão*, ex-Fur Mil At Inf da 3ª Companhia do BCAÇ 4612/72, Mansoa 1972/74, enviou-nos a seguinte mensagem em 15 de Dezembro de 2009:


Camaradas,

Agora tenho a mania que sou escritor, (deve ser do PDI), por isso, decidi debitar no papel algumas das minhas lembranças, enquanto existe memória no conhecimento da rapaziada.

São histórias engraçadas (nem todas), mas que reflectem o que um rapazinho, então com 22 anos, sentiu e passou pelas terras da Guiné.

Já avisei todos os meus contactos, para abrirem o blogue lerem o que escrevi sobre o jantar e se encontra no poste P5475.

Partida e chegada ao Inferno

Saímos de Lisboa em avião, do Aeroporto da Portela, de onde demos os primeiros passos na manhã de 5 Outubro de 1972 - feriado nacional -, na direcção da desconhecida Guiné, onde chegámos poucas horas depois.

Logo no aeroporto de Bissalanca tive os meus dois primeiros choques quase em simultâneo. O primeiro foi o clima, assim que abriram as portas do avião aquele calor sufocante e a humidade, fizeram-me lembrar das historinhas que nos contavam em crianças sobre a existência do “inferno”.


Mal sabia eu que ali, havia um inferno real: A guerra colonial que me impuseram.

O outro choque foi cruzarmo-nos com os velhinhos que tinham acabado a comissão e que só uma pequena divisória em vidro nos separava. Com espanto meu, vejo uma cara toda sorridente a fazer gestos e a chamar-me, era o meu companheiro de infância Carlos Boto, a regressar á Ajuda em Lisboa.

Tinha começado bem a minha comissão, que mais me esperaria? Fomos para o Cumeré onde fizemos o IAO. Lá começámos os nossos treinos já com bala real, que a princípio só os graduados usavam.

Pequenas histórias minhas do Cumeré

1. O nosso primeiro IN – As formigas

Numa bela noite, estava a companhia acampada em tendas à volta das quais tínhamos valas individuais, quando o inesperado aconteceu devido a uma brincadeira.

Eu estava no meio do acampamento deitado no chão envolto no poncho, quando três camaradas soldados passaram por mim dizendo: “Olha este tão pequenino aqui a dormir.”

Claro que não tinham reparado que eu estava acordado, então passaram por um Unimog onde o Fur Mil Almeida estava a dormir com o poncho colocado, e lembraram-se de lhe dar uma chapada escondendo-se de imediato.

A reacção imediata do Almeida, foi saltar do Unimog, tirando o poncho e começando a gritar que estávamos a ser atacados. Começaram a “chover” tiros de todos os lados e eu, que estava no meio do “fogachal”, nem sequer ousei levantar a cabeça, pois sabia o que se tinha passado e ainda era muito cedo para ser atingido. E, para mais, daquela maneira.

Entretanto o Fur Mil Toni “O Barbio” começou a gritar para não fazerem mais fogo, que, tal como tinha começado, rapidamente, também assim logo cessou.

Quando a rapaziada começou a sair das valas, começou uma grande algazarra, que raio seria aquilo?

Nem mais nem menos umas simpáticas formiguinhas que só à noite saíam, decidiram apanhar boleia na rapaziada agarrando-se a tudo o que era carne. Nesse momento não seria como dizíamos na gíria “carne para canhão”, mas sim para formigas.

Foi o primeiro ataque que tivemos. Assim começou a nossa aprendizagem. Nessa altura o Fur Mil Almeida disse que estava a sonhar, que estávamos a ser apanhados à mão, quando levou a chapada e acordou.

Só cerca de 30 anos depois é que os intervenientes nesta história souberam que eu tinha assistido a tudo.

2. O nosso segundo IN – As abelhas

Passados dias numa operação efectuada a nível de companhia, quando calmamente seguíamos pelo mato (ainda na zona próxima do Cumeré), alguns “engraçados” que iam à frente lembraram-se de hostilizar um enxame de abelhas, que, sossegadamente, estavam na sua colmeia.

Como era de esperar, seguiu-se um ataque com algumas ferroadas, que deram origem a algumas evacuações para o hospital de Bissau. Os atingidos passaram por mim a correr e eu a tentar agarrá-los e a não os deixar mexer-se Para evitar mais picadelas. Este foi o nosso segundo ensinamento.

3. Um não levantamento de rancho

Também num dia em que eu estava de sargento de dia à companhia, deram para o almoço umas sardinhas enlatadas todas feitas em papa. Os soldados reagiram e virando-se para mim perguntaram-me o que é que haviam de fazer e se fosse eu, o que faria?

Sardinhas enlatadas (in Wikipédia, enciclopédia livre)

Na minha ingenuidade militar, mas na minha condição de ser humano, respondi-lhes que não comeria aquilo, pois nem para animais era próprio. Foi o suficiente para um levantamento de rancho, e ainda estávamos no Cumeré. Momentos depois aparece o Comandante do Batalhão Tenente-coronel Eurico Simões Mateus (já falecido), agredindo um cabo com uma chapada e ameaçando de prisão quem não obedecesse. Assim se gorou um levantamento de rancho.

A 3 de Novembro, saímos do Cumeré para a nossa “nova casa” Mansoa, mas essa é outra história que mais tarde espero contar.

Oeiras, 15 Dezembro 2009,
Um abraço,
Jorge Canhão
Fur Mil At Inf da 3ª Cia do BCAÇ 4612/72

Imagens: © Wikipédia, enciclopédia livre. Direitos reservados.
Emblema de colecção: © Carlos Coutinho (2009). Direitos reservados.
__________
Nota de MR:


2 comentários:

Julio Vilar pereira Pinto disse...

Só para informar o Jorge que agora já não se usa o PDI, mas sim o DNA (data de nascimento antiga) isto é só para rir.
Um abraço com votos de Bom Natal e um Ano Novo com menos crise.

Anónimo disse...

Afinal tanto se tem dito sobre as chapadas nos militares e parece que sempre dadas pelo mesmo tipo de gente, tirando aquela dada ao furriel Almeida evidentemente.

Não era só por questões de operacionalidade, estava-lhes na massa do sangue e era outra forma de aplicação do RDM. Quem é que se virava a um...

Não pretendo fazer qualquer ataque a quem já deixou o mundo dos vivos, apenas comentar os excessos que existiram.

Já comentei que um amigo meu, PM, quando estava de cabo de dia e houve um levantamento de rancho foi castigado integrando uma companhia operacional, isto, bem ou mal pode ser entendido como RDM, mas agressões puras e simples...

Uma coisa é certa, não se podia dizer mal.

Eram tantas as diferenças...
Boas Festas
BS