segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5462: Não-estórias de guerra (4): O Parto, essa grande (a)ventura (Manuel Amaro)

1. Mensagem de Manuel Amaro (ex-Fur Mil Enf da CCAÇ 2615/BCAÇ 2892, Nhacra, Aldeia Formosa e Nhala, 1969 a 1971), com data de 11 de Dezembro de 2009:

Caros Editores,
Antes de entrar no período de férias natalícias, resolvi enviar mais uma não-estória.
Comecei a escrever sobre Guiledje. Mas quando vi que estava a escrever sobre a guerra, desisti.
Depois comecei a escrever sobre o branqueamento daquilo, mas falta-me informação. Não dá.
Acabei por escrever o texto que anexo.

Um Abraço
Manuel Amaro


Não-estórias de guerra IV

O Parto


Creio que quase todos os médicos que estiveram no interior da Guiné (dito mato), tiveram a experiência do parto. Alguns Enfermeiros também.

Quando cheguei a Buba em Junho de 1970, falhei por pouco. O Dr. Sérgio Ribeiro tinha-me deixado uma lista de acções imediatas, entre as quais o apoio específico a um par de gémeos com dois dias de vida. Cheguei atrasado, mas ainda colaborei na recuperação daquela feliz, mas muito debilitada mãe e no desenvolvimento dos dois rebentos.

No final da guerra, em 1974 já estavam com quase quatro anos. Alguém se deve recordar deles.

Em Junho de 1971, em Nhala, quase a chegar ao fim da comissão, faltava-me essa grande aventura. O parto. Assistir? Colaborar? Efectuar? O que fosse, seria!...

Mas em Nhala as mulheres grandes tratavam do assunto, no maior dos silêncios, sem qualquer problema.

Até que um dia… (em tudo há sempre um dia diferente dos outros). Chegou a hora do parto da Binta, mulher do António Baldé.

A mulher do António não era de Nhala. Tinha vindo de Bolama com o António, quando ele lá esteve a fazer a recruta.

O António não era milícia, era mesmo militar. E era ajudante dos enfermeiros.

E essas condições fizeram com que a Binta tivesse sido muito acompanhada por nós durante a gravidez, que era a primeira. Mas sempre pensei que no momento do parto, as mulheres grandes resolvessem a situação.

Qual quê!?

Uma noite (estas coisas acontecem sempre de noite), estava eu na messe, com mais uns camaradas, tentando esvaziar o frigorífico do Ferreira, chega o António, esbaforido, estanca na porta e chama... furriel… furriel…

Levanto-me, saio e ele com dificuldade desabafa…

- Minino não quer sair… vem comigo.

Arrancámos os dois em passo acelerado e pelo caminho fui perguntando pelas mulheres grandes. O que estavam fazendo. O que tinham dito…
O António, não raciocinava… Só dizia que eu tinha que ajudar…

Entrei na morança e lá estava a Binta, na posição de cócoras ou de quatro, sobre uma esteira, gemendo e tremendo, rodeada por três mulheres grandes, as parteiras de Nhala. Creio que estaria despida, porque ainda vi colocarem-lhe um pano por cima, enquanto eu entrava na morança.

As mulheres grandes ficaram sossegadas, não reagiram à minha presença, o que me levou a concluir que podia trabalhar sem empecilhos.

Assim que ouviu a minha voz, a Binta parou de tremer e passou a gemer menos vezes e mais baixinho.

O bebé (não gosto de dizer ou escrever, o feto), estava vivo e cheio de genica.
Os suores não eram frios.

Não houve reacção à mudança da Binta, da posição original para a tradicional posição de parto. Deitada, de costas, com os joelhos levantados…

Até convenci duas mulheres grandes a sentarem-se, uma de cada lado da Binta e darem-lhe as mãos, para ela ter algum apoio onde se agarrar e fazer força.

O toque das minhas mãos na cabeça, na face e na barriga da parturiente, funcionavam como um tranquilizante…
Passada a fase de reinstalação, com alguma acalmia, voltaram as dores intensas.

Mas agora, a Binta, comodamente (?) instalada, agarrada às duas mulheres, com os joelhos apoiados nos meus braços, podia fazer força à vontade e assim, mais facilmente colocar no mundo, aquele matulão, ensanguentado e chorão.

E cumpriu a missão.
Foi uma festa.

O António Baldé, pai do rebento, que não tinha sido autorizado a entrar durante o parto, aguardava cá fora.
Abraçámo-nos, gritou, chorou de alegria e fez-me soltar uma lágrima.

Finalmente tinha cumprido todos os meus objectivos operacionais

No regresso à messe, onde ainda estavam os resistentes do “Dimple”, fui trauteando: - “Meia-noite é meia vida/Meia vida por viver/Guitarra triste esquecida/Que ninguém sabe entender…”, um poema de Álvaro Duarte Simões, cantado por Amália e outros intérpretes do fado.

Durante o luto que cumpri durante mais de 20 anos, depois daquela guerra, tentei esquecer tudo aquilo, mas os convívios, primeiro ao nível do BCAÇ 2892, depois no ambiente mais familiar da CCAÇ 2615 e agora no âmbito do blogue, tudo isto chega em turbilhão.

E eu funciono como um entreposto de informação. Tudo o que chega, é distribuído, partilhado com a comunidade.

Sophia de Mello Breyner, se estivesse aqui, diria que ao escrever estas não-estórias, estou a fazer a minha catarse. Talvez. Não tenho a certeza. Mas, do que é que eu tenho a certeza?

Hoje, apenas por hoje, estou certo que ao escrever as minhas não-estórias, eu estou a libertar-me. E, tal como Sophia, posso dizer que…: - “bem, eu liberto-me como posso”.

Manuel Amaro
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 26 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5346: Não-estórias de guerra (3): A minha Escola (Manuel Amaro)

5 comentários:

Jorge Narciso disse...

Amigo Manuel

Este teu post, fez-me relembrar uma também "não estória" aparentada que vivi na Guiné.

Tendo como actividade primeira a de mecanico dos helis, "tirocinei" também numa semi-especialidade (empirica pois sem qualquer preparação prévia) de auxilio à enfermagem, com o apoio necessário às enfermeiras paras, com quem realizavamos evacuações.

Pôr a soro, fazer pensos, executar e manter garrotes, massagens cardiacas, transfusões,etc. etc. foram infelizmente acções com as quais me familiarizei.

Mas partos, era coisa que para além do meu próprio (de que não me ficou nenhum registo) estava completamente fora do meu quotidiano.

Porém um certo dia é solicitada uma evacuação (sem enfermeira) para a ilha de Unhocomo (que em conjunto com a de Unocomozinho eram as mais longiquas nos Bijagós).
Usufruindo, no voo de ida, da sempre agradavel imagem daquele belo arquipelago (e do mar envolvente, onde pululavam quantidades enormes de tubarões, que bem se viam lá de cima) e finalmente aterrados numa paradisiaca ilha, quem nos surge para embarque ?
SÓ (Ai, Ai) uma GRAVIDA em fase final de parto.

Embarcada a parturiente e enquanto pensava como se iria desenrascar o, talvez, primeiro mecanico/parteiro, ponderei as envolventes:

Quase uma hora de voo até Bissau.
A parturiante não só não dava mostras de entender (ou não estava para aí virada) patavina do que lhe ia tentando dizer, nem dos gestos de consolo que ia ensaiando.
O olhar do Piloto era ainda mais estupefacto e aflitivo que o meu próprio e talvez mesmo que o da citada.

Enfim e abreviando argumentos, já que a viagem essa parecia nunca mais acabar, já sem ilhas, nem mar, nem tubarões, todos ora resumidos e concentrados naquele corpo/ventre que cada vez mais se contorcia, felizmente, mais para mim que, coitada, para ela, lá se aguentou até ao Hospital Civil de Bissau (na única vez que ali aterrei) onde finalmente presumo terá dado à luz o seu rebento.

Os restantes 5 minutos de voo no regresso a Bissalanca, foram para mim e para o Piloto, como a nossa própria "renascença".

Um Abraço
Jorge Narciso

mario gualter rodrigues pinto disse...

Amigo Manuel Amaro

Era a sina do Enfermeiro no mato da Guiné.

Era o feiticeiro das mésinhas milagrosas, que tudo fazia em prol dos seus, população e não só.

Um dia escrevi "Aqueles que tudo deram sem nada ter e os que tudo tem e nada dão", foi a minha maneira singela de vos homenagear pelo vosso reconhecido trabalho.

A Estória da Guerra do Ultramar não foi feita só pelos portadores de G3 (OPERACIONAIS), foi tambem vossa por isso AMIGO Manuel Amaro, nao tenhas receio de a contar.

Um abraço

Mário Pinto

Luís Graça disse...

Só por modéstia, podes chamara a esta história uma "não-estória" (embora uma "não-estória" também pode ser tomada como sinónimo de... história).

Pois, meu caro Manuel Amaro, aí tens uma bela história com final feliz...e de que te deves orgulhar!

Por razões culturais, poucos tugas terão assistido a partos de mulheres guineenses... Mesmos os médicos e os enfermeiros deviam deparar com o "preconceito" cultural que impedia um macho de assistir a um parto (um das cenas mais íntimas da vida humana e da vida da mulher)... O aforismo hipocrático "Naturalia non turpia" (o que é natural não causa vergonha) sempre esbarrou (ainda hoje...) com inúmeros preconceitos ligados ao sexo e á reprodução...

No nosso tempo, e conforme a etnia, as mulheres pariam no mato, sozinhas ou com a ajuda de alguma mulher grande... Tal como, de resto, as nossas avós e as mães de muitos nós... Ainda somos da geração do parto em casa, não medicamente assistido...

Reportando-se ao "nosso Ocidente", é de referir que até ao Séc. XVII era relativamente raro (e sobretudo perigoso) um homem assistir a um parto. O parto era assunto de mulheres e comadres, circunscrito ao gineceu...

Sempre houve homens curiosos, "voyeuristas", pioneiros, teimosos, lutando contra os preconceitos, os tabus, os interditos....Cita-se o caso de um cirurgião de Hamburgo que foi executado em 1522 por ter tido a ousadia de assistir a um parto, disfarçado de parteira.

De facto, eram frequentes os acidentes em partos difíceis, o que inquietava os médicos, já desde os tempos dos greco-romanos e, depois, dos árabes. Até então a experiência da "sage femme" (a parteira, em francês) era mais relevante do que os conhecimentos na matéria, para além dos preconceitos morais e religiosos que afastavam o homem do leito da parturiente.

Mas nos casos dos partos difíceis, distócicos, era importante a força muscular. A solução deste velho problema irá ser um trunfo para o médico e o cirurgião, independentemente do estado da arte no domínio da ginecologia e da obstetrícia.

De facto, as coisas vão começar a mudar: É por via das "reais amantes" que os antepassados os obstetras se infiltram na corte e chegam à alcova real... Aberta esta, mais fácil se torna abrir as portas da casa do burguês ou até a choupana do pobre...

A morte, de parto, da duquesa de Orleães, em 1627, irá pôr em causa a reputação das parteiras da corte e alimentar uma querela com os cirurgiões durante mais de um século e que fará correr muita tinta. Em 1633, é já um parteiro (o primeiro que se conhece em França) a assistir ao parto de um dos filhos bastardos de Luís XIV...

Tu, Manuel Amaro, foste um duplo herói nesse dia: venceste o medo (de falhar...) e o preconceito (moral, religioso, étnico...): afinal, eras estrangeiro e sobretudo homem...

Zé Teixeira disse...

Meu bom amigo. Não te perdoo se não continuares com as tuas "Não-estórias, ou lá o que lhe queiras chamar.
são estórias tão reais como as outras da G3. Todas fazem parte da guerra colonial.
Assim vamos descobrindo as razões que levam aquela dgenti receber-nos de braços abertos.
Ali bem perto, como sabes, em Mampatá, cerca de um ano antes, também vivi uma cena dessas.
Dedico-te o poema que então escrevi.

VIDA NOVA

Ventura da minha vida,
Ver uma criança parida,
No momento da chegada,
De mãe preta bem pintada.
Negro Pai, para meu espanto,
O raio do puto era branco.
Vi-te nascer.
Não sei teu nome, não importa
Foste e és esperança, um novo ser,
Nesta sociedade torta.
Lançaste um grito. Alegria.
Tua vontade de viver,
A esperança a renascer,
No meio da dor, como sempre.
Em ti, peguei com jeito,
Como um pai, que estava ausente.
Na guerra, na tua terra,
Encostei-te bem ao peito,
Teu olhar, que encanto,
Ternura, paz, bem estar.
A tua pele macia,
Tua brancura de espantar,
Nesta terra, vermelha, queimada,
De uma África em sofrimento,
Que anseia em cada momento,
Como tu,
Ser amada.
E não explorada.
Zé Teixeira

Anónimo disse...

Caro Manuel Amaro
Como vês a tua não-estória, que é bela, deu mais frutos...fez parir mais um belo poema do nosso "Fermero" "Tissera".
Poema este que tem de passar a "up stairs", não achas Luis?
Abraços
Jorge Picado