sábado, 12 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5453: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917. Dez 69/Mai 71) (5): O grande Rio Geba





Guiné > Zona Leste > Sector L1 > 1969 > O sortilégio e a beleza do Rio Geba, entre o Xime e e Bambadinca, o chamado Geba Estreito, numa das fotos aéreas magníficas do Humberto Reis, ex- Fur Mil Op Esp, CCA 12 (Contuboel e Bambadinca, 1969/71). nosso querido amigo e camarada Humberto que é também aniversariante este mês. (LG)


Fotos: © Humberto Reis (2005). Direitos reservados




Guiné-Bissau > Zona Leste > Xime > 2001 > Rio Geba. O famoso macaréu. No Rio Amazonas é conhecido por pororoca. Em termos simples, o macaréu é uma onda de arrebentação que, nas proximidades da foz pouco profunda de certos rios e por ocasião da maré cheia, irrompe de súbito em sentido oposto ao do fluxo da água. Seguida de ondas menores, a onda de rebentação sobe rio acima, com forte ruído e devastação das margens. Pode atingir vários metros de altura, mas tende a diminuir a sua força e envergadura à medida que avança (LG)


Foto: © David Guimarães (2005). Direitos reservados





Guiné > Zona Leste > Bafatá > Geba Estreito > O pescador e a sua canoa. Magnífica foto do nosso amigo e camarada Fernando Gouveia, do Porto,  ex-Alf Mil Rec Inf, Bafatá, 1968/70. (LG)


Foto:  © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados.

1. Mensagem do Arsénio Puim ,

Luis Graça

Mando mais um «recordando», desta vez, o Geba, nosso vizinho em Bambadinca.

O nosso blogue está continuamente a enriquecer-se, com trabalhos muito válidos e com alguma variedade, que constituirão importante documento histórico.

Como velho capelão, cuja missão é defender sempre a paz justa, não gosto de algumas pequenas quezílias e ataques que surgem, aqui ou acolá, entre os camaradas da Guiné. Acho que há lugar para todos no blogue, com as suas experiências, ideias e diferenças. É neste presuposto que eu também colaboro.

Saudações à Alice.
Um abraço
Arsénio Puim



2. RECORDANDO... V >  O GRANDE RIO GEBA
opor Arsénio Puim

Considero a Guiné uma terra bonita, pela beleza simples da sua paisagem e as suas singularidades muito próprias, pelo seu complexo faunológico, bastante rico e interessante, nomeadamente no domínio das aves, pela sua flora, com variadas espécies arbóreas, onde sobressaem as palmeiras esguias e esbeltas, disseminadas por toda a selva, emprestando-lhe um tom de exotismo tropical. Mas um dos aspectos mais bonitos, para mim, do território da Guiné são os seus rios, com a sua rede extensa de afluentes e pequenos cursos, principalmente na época das chuvas, que deslizam em admiráveis serpenteados entre a selva luxuriante e as bolanhas que alagam e fertilizam.

São disso um exemplo os dois grandes rios que passam na zona interior: o Corubal e o Geba. O primeiro, que nasce na Guiné Conacri e vai desembocar no Geba, a sul do Xime, é navegável até à região do Xitole. A partir daqui, surgem alguns rápidos: primeiro, em Cusselinta – bonita estância onde um longo braço do rio forma uma piscina natural com condições privilegiadas – e, depois, já de proporcões maiores, na pitoreca zona do Saltinho.

O Geba, que vem lá dos lados do Senegal, demarca o norte e o sul da Guiné, visitando-nos em Bambadinca, e vai-se encontrar com o Atlântico num estuário de grande extensão e largura, que se prolonga num longo Canal, muito para além de Bissau. Largo e comportando a navegação de barcos de significativas dimensões até ao Xime, como as LDG de transporte das tropas, apresenta ainda condições de navegabilidade, para embarcações pequenas, até Bambadinca e Bafatá. E estas não são só as pirogas nativas, longas e esguias – cheguei a ver uma, capturada aos «turras» no Xime, que media mais de 30 metros - engenhosamente feitas num único tronco de árvore e movidas com uma pá ou um remo de esparrela manobrados por um homem, sentado à ré.

Em Bambadinca podíamos observar, com muito agrado, um interessante serviço particular de canoa para transporte das pessoas para a outra banda do rio, onde muitas vezes vivem familiares, há negócios a tratar ou trabalhos a realizar nas bolanhas. Os passageiros, formando autênticas «bichas» vistosas e coloridas, perfeitamente respeitadores das precedências, acondicionam-se em grande número acocorados no fundo da canoa, todos em fila e num equilíbrio perfeito, enquanto o timoneiro, de acordo com cálculos relativos à direcção e sentido da corrente, faz um desvio, paralelo à margem, antes de aproar ao outro lado, para ir atracar no sítio preciso com uma perícia de mestre.

Mas as embarcações que circulavam no Geba Estreito são também barcos a motor, para transporte de pessoas e de carga, que faziam viagens regulares e prestavam um importante serviço entre a capital do território e Bafatá.

Vim, uma vez, num destes barcos da carreira civil desde Bambadinca até Bissau, numa longa e pitoresca viagem que hoje ainda recordo.

Alguns militares usavam, uma vez ou outra, este meio de transporte para se deslocarem à capital. Penso que o grande Machadinho, e meu grande amigo, também ia nesta viagem, mas não tenho a certeza.

No «Bubaque», apinhado de pessoas – muitos africanos e africanas e alguns soldados portugueses –, galinhas, porcos, cabras, (tudo em muita paz), navegámos ao longo do Geba Estreito, ladeado de mato denso e misterioso e cheio de curvas muito apertadas que obrigavam o barco a manobrar bastante próximo das margens. Depois entrámos no Geba largo, cada vez mais espaçoso e aberto aos nossos olhos curiosos, de margens arborizadas e baixas, ponteado com os seus quarteis militares estrategicamente disseminados dum lado e outro do território.

Sete horas depois, agradavelmente vividas em conversação amena e, sobretudo, a olhar, profundamente, a terra da Guiné e desfrutar da sua natureza, o «Bubaque» havia passado a grande ria do Geba e entrava no porto de Bissau, quando eram cinco horas da tarde do dia 8 de Março de 1971.

Fácil se tornou para nós pensar que, não obstante serem alvo de um ou outro ataque esporádico, não seria possível estes pequenos barcos civis, indefesos e para mais trasportando elementos do exército português, circularem regularmente numa tão extensa e recôndita área fluvial se não existisse um acordo secreto entre a empresa e a guerrilha, como aliás era voz corrente.

Mas além deste possível e mais ou menos controlado obstáculo humano, todo o movimento de barcos no Geba é condicionado por um interessante fenómeno natural que dá pelo nome de macaréu.

É, em linguagem simples, uma onda, provocada pelo choque da maré com a corrente fluvial, que avança rio acima, impetuosa e com grande ruído, operando à sua passagem a transição brusca e imediata da baixamar para a preiamar, numa amplitude que pode atingir dois metros ou mais.

Neste interior da Guiné, a mais de 100 quilómetros de Bissau, várias vezes me detive junto do grande Geba para ver passar o macaréu, poderoso e cheio de mistério, admirável e sempre benvindo.

____________

Nota de L.G.:

(*) Vd. último poste da série:  25 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5338: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917, Dez 69/Mai 71) (4): O pacto de Deus... com os 'turras'



(...) Ao capelão militar é atribuída uma função específica, que é prestar assistência religiosa aos militares do Batalhão e testemunhar, na medida do possível, os valores do Evangelho, e ele não é, compreensivelmente, um combatente da guerra, independentemente da justeza ou não desta, posição que eu assumi e demarquei logo de início, renunciando à posse de arma de combate, que me era proposta. Nem, de resto, a preparação elementar ministrada no Curso de Capelães Militares durante um mês e meio, na Academia Militar da Rua Gomes Freire, me habilitava para esse desempenho


Vivi, no entanto, durante um ano, dia a dia, no teatro de acção do Batalhão 2917, deslocando-me assiduamente a todas as Companhias e permanecendo nestas por vários dias e, às vezes, algumas semanas - visitei 6 vezes a Companhia de Mansambo [CART 2714], 5 vezes a do Xime [ CART 2715] e 4 vezes a do Xitole [CART 2716], que ficava a 40 quilómetros - para além das minhas idas a todos os Destacamentos, mais abreviadas mas com permanência em alguns, como o Enxalé (3 vezes), Missirá (1 vez), e a Ponte dos Fulas (1 vez). (...)

2 comentários:

Anónimo disse...

Caro Arsénio Puim, alegrou-me muito saber que fez uma viagem no "Bubaque" de Bambadinca para Bissau. Muito provavelmente, se a sua jornada foi num fim-de-semana eu deveria estar a bordo. Se assim foi, deveremos ter saído do sempre atulhado e improvisado cais de Bambadinca às 11 da manhã. Uma a duas horas antes da vazante. Factor regular (horário das marés) que muito nos preocupava para não ficarmos em seco no meio do Mato Cão. O Bubaque era do meu Pai que o adquirira à Marinha Portuguesa e o transformara em barco de passageiro com capacidade para 140 ou 180 passageiros, após ter sido abatido à carga. Teria sido antes uma trainera algarvia que foi transformada ainda em Portugal em Lancha Patrulha (o LP4) com uma pesada casamata blindada, em ferro, a meia nau e enviada para a Guiné em principios de 1960. Muito patrulhou os rios da Guiné tendo inclusivamente participado na batalha do Como. Com a chegada regular das LDM e LDP as 4 LP,s tornaram absoletas e foram abatidas por Decreto do Ministro da Marinha. Eram robustas, aguentavam bem o mar e todas possuiam bons motores. O Bubaque era muito conhecido na região do Leste. Era a carreira mais regular entre Bissau e Bambadinca e exclusivamente destinada ao transporte de passageiros e suas cargas. Era também conhecido por “Djanta Kú cia” pela sua rapidez na jornada. Significava que se podia almoçar em casa e chegar ao seu destino ainda a tempo de jantar. Fiz muitas e muitas viagens nesse navio, mais de dia que de noite, algumas com acidentes e avarias graves no percurso mas, estando a bordo, nunca fomos vítimas de ataque. Meu Pai sim, numa madrugada em pleno Mato Cão, por erro de identificação. Não me parece que tivesse havido alguma vez um acordo ou pagamento de passagem. Era sabido que só transportavámos passageiros e muitos deles seriam familiares próximos de quem estava na luta quando não fossem mesmo guerrilheiros ou mensageiros a caminho de Bissau e vice-versa. Transportei muitas vezes militares que demandavam e/ou outro porto Sentiam-se seguros no Bubaque. A viagem directa Bambadinca-Bissau demorava em média de 5 a 6 horas, duas das quais na “auto-estrada” do Mato Cão a parte que mais encanto me dava. A subir era sempre menos.
No Geba largo, no tempo das chuvas e tornados, a preocupação era evidente devido às vagas curtas, sempre de través e instabilidade da massa humana a fugir da chuva ou a agachar-se do vento a sotavento dele. Nessas ocasiões aproximavamo-nos da margem oposta passando por Jabadá e Enxudé até cortar directo para oeste de Cumeré, passar entre a ponte cais e o ilhéu do Rei e atracar no Pidjiguiti. No outro dia, a favor da mare, lá se iniciava uma outra jornada. Tenho ainda vivas as mesmas imagens que tão bem descreveu das margens do Geba apertado.
Um forte abraço
Manuel Amante da Rosa
amantedarosa@hotmail.com

Luís Graça disse...

Era, de facto, uma pequena aventura a viagem Geba acima ou Geba abaixo no "Bubaque"... Também eu fiz, mais do que uma vez, esse percurso: a 1ª, em LGD, no dia 2 de Junho de 1969, de Bissau até ao Xime... Já nas idas a Bissau, ia-se de barco ou, os mais sortudos, "by air"...

Os dois pontos mais sensíveis, de maior tensão, eram de facto o Mato Cão, frente a Nhabijões, na margem direita do Geba Estreito, e depois do Xime, a Ponta Varela... Ultrapassada a foz do Corubal, entrava-se no estuário do Geba e aí respirava-se fundo...

Obrigado ao Arsénio Puim e ao Manuel Amante da Rosa, por esta delícia que foi a evocação do Rio Geba e das nossas andanças entre Bambadinca e Bissau e vice-versa, a bordo do Bubaque.