sábado, 12 de dezembro de 2009

Guiné 63/74 - P5455: Memória dos lugares (60): O Rio Geba e o navio Bubaque, do meu pai (Manuel Amante da Rosa)



Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1970 > Vista (parcial) da tabanca de Bambadinca, com o Rio Geba ao fundo e o cais fluvial. Foto tirada do quartel de Bambadinca.

Foto: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados



1. Comentário de Manuel Amante da Rosa, cidadão cabo-verdiano, embaixador, ex-militar dos serviços de intendência (Bissau, 1973/74), membro da nossa Tabanca Grande desde Maio de 2007 (*) (Infelizmente desencontrámo-nos por ocasião do IV Encontro Nacional do Nosso Blogue, em Junho passado. Temos, pelo menos, dois amigos comuns do mundo lusófono: Pepito, em Bissau; Isabel Brigham Gomes, na Cidade da Praia. Saudações lusófonas, pelo seu reaparecimento. L.G.)



Caro Arsénio Puim (**), alegrou-me muito saber que fez uma viagem no Bubaque,  de Bambadinca para Bissau. Muito provavelmente, se a sua jornada foi num fim-de-semana eu deveria estar a bordo. Se assim foi, deveremos ter saído do sempre atulhado e improvisado cais de Bambadinca às 11 da manhã. Uma a duas horas antes da vazante. Factor regular (horário das marés) que muito nos preocupava para não ficarmos em seco no meio do Mato Cão. 


O Bubaque era do meu Pai que o adquirira à Marinha Portuguesa e o transformara em barco de passageiro com capacidade para 140 ou 180 passageiros, após ter sido abatido à carga. Teria sido antes uma traineira algarvia que foi transformada ainda em Portugal em Lancha Patrulha (o LP4) com uma pesada casamata blindada, em ferro, a meia nau e enviada para a Guiné em princípios de 1960. Muito patrulhou os rios da Guiné tendo inclusivamente participado na batalha do Como. 


Com a chegada regular das LDM e LDP as 4 LP tornaram-se absoletas e foram abatidas por Decreto do Ministro da Marinha. Eram robustas, aguentavam bem o mar e todas possuiam bons motores. O Bubaque era muito conhecido na região do Leste. Era a carreira mais regular entre Bissau e Bambadinca e exclusivamente destinada ao transporte de passageiros e suas cargas. 


Era também conhecido por Djanta Kú cia pela sua rapidez na jornada. Significava que se podia almoçar em casa e chegar ao seu destino ainda a tempo de jantar. Fiz muitas e muitas viagens nesse navio, mais de dia que de noite, algumas com acidentes e avarias graves no percurso mas, estando a bordo, nunca fomos vítimas de ataque. Meu Pai,  sim, numa madrugada em pleno Mato Cão, por erro de identificação. 


Não me parece que tivesse havido alguma vez um acordo ou pagamento de passagem. Era sabido que só transportavámos passageiros e muitos deles seriam familiares próximos de quem estava na luta,  quando não fossem mesmo guerrilheiros ou mensageiros a caminho de Bissau e vice-versa. Transportei muitas vezes militares que demandavam e/ou outro porto.  Sentiam-se seguros no Bubaque. A viagem directa Bambadinca-Bissau demorava em média de 5 a 6 horas, duas das quais na auto-estrada do Mato Cão a parte que mais encanto me dava. A subir era sempre menos.

No Geba largo, no tempo das chuvas e tornados, a preocupação era evidente devido às vagas curtas, sempre de través e instabilidade da massa humana a fugir da chuva ou a agachar-se do vento a sotavento dele. Nessas ocasiões aproximavamo-nos da margem oposta passando por Jabadá e Enxudé até cortar directo para oeste de Cumeré, passar entre a ponte cais e o ilhéu do Rei e atracar no Pidjiguiti. No outro dia, a favor da maré, lá se iniciava uma outra jornada. Tenho ainda vivas as mesmas imagens que tão bem descreveu das margens do Geba apertado.


Um forte abraço
Manuel Amante da Rosa


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Notas de L.G.:


(*) Vd. poste de 27 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1787: Embaixador Manuel Amante (Cabo Verde): Por esse Rio Geba acima...


(...)Na minha infância e adolescência fiz muitas viagens pelo interior da Guiné-Bissau durante a luta de libertação. Mas o que mais me encantava (70/73), pelas paisagens e desafios, era subir o Rio Geba, nas férias ou mesmo nos fins de semana, num dos barcos de passageiros do meu Pai [o Bubaque] (...)

A jornada começava com a enchente da maré, passando por 
PortogolePonta Varela, Xime e daqui para a frente quase sempre a rasar as margens, ora de um lado ora de outro, ver passar o Mato Cão e Nhabijões até chegar ao pequeno mas movimentado porto de Bambadinca, onde sempre havia lanchas e batelões.

Não raras vezes, no regresso, saíamos de noite de Bambadinca rezando, tripulantes e passageiros, para que nada acontecesse até passarmos o Mato Cão. Salvo raras ocasiões as preces foram escutadas. O encanto era absorvente em noites de luar a descer o Geba a favor da maré, com o maquinista a ficar satisfeito, em termos de rotações do motor, só quando via faíscas e fumo espesso a sair da chaminé. Parecia que andávamos numa estrada cheia de curvas tal a velocidade com que descíamos o rio. As apreensões só desapareciam, na última curva, quando víamos as luzes do quartel do Xime. De noite 
Ponta Varela não constituía perigo. Passávamos a uma razoável distância.

Faço estas referências porque acabei por rever muitas imagens de Bambadinca e das suas gentes, onde passei férias com mais colegas estudantes e ia à caça, idas à boleia em viaturas militares ou civis, sem escoltas até ao Xime para ver o macaréu passar, 
cambanças para a outra margem do porto de Bambadinca de canoa, visita ao aquartelamento de Nhabijões que muito impressionou pela vetustez das instalações e más condições que facultava. (...)


Abraços e votos de que as memórias, por mais dolorosas que possam ter sido, não sejam apagadas mas se possam erigir numa teia que envolva ainda mais a todos os que nasceram, viveram ou tenham passado pela Guiné.


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(...)  Manuel Amante da Rosa nasceu em Bissau a 19 de Dezembro de 1952. Foi militar (1973/74), do recrutamento local, no CIM de Bolama onde fiz a recruta e especialidade antes de ser colocado no QG (Chefia dos Serviços de Intendência) em Bissau.

Graduado pela Academia Diplomática Brasileira –Instituto do Rio Branco – (1977/80), foi:



 (i) embaixador de Cabo Verde em Angola, Moçambique, S. Tomé e Príncipe, Namíbia, Zâmbia e Zimbabwe, 
(ii) observador Internacional da OUA no processo de democratização na República da África do Sul (1993-1994),
(iii) encarregado de Negócios junto do Governo da ex-URSS, 
(iv) membro da Missão Permanente de Cabo Verde junto das Nações Unidas em New York, 
(v) Delegado de Cabo Verde na Segunda Comissão da Assembleia Geral, entre muitas outras funções ou cargos...


É actualmente Secretário Geral Adjunto do Secretariado Permanente do II Fórum para a Cooperação Económica e Comercial entre a China e os Países de Língua Portuguesa.


(**)  Vd. poste de 12 de Dezembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5453: Memórias de um alferes capelão (Arsénio Puim, BART 2917. Dez 69/Mai 71) (5): O grande Rio Geba

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Caros camaradas

Também viajei no Geba, mas na 'Bor'.
A viagem, inesquecível, foi do Xime para Bissau, não fiz Bambadinca ao Xime de barco.
Ainda me lembro bem da tensão que se sentia a bordo até se atigir o Geba largo. Aí sim, com as margens a perder de vista, apareciam outras emoções. Eram realmente as vagas que batiam e molhavam todo o convés.
Como disse, inesquecível.
Um abraço
Hélder S.