domingo, 8 de novembro de 2009

Guiné 63/74 - P5236: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (23): Um Aspirante Xico-esperto e um grande berro

1. Mensagem de Luís Faria ex-Fur Mil Inf MA da CCAÇ 2791, Bula e Teixeira Pinto, 1970/72, com data de 5 de Novembro de 2009:

Caro Vinhal
Mais um bocadito de “Viagem…”
Se achares que deves abreviar ou modificar alguma coisita… força.

Tudo de bom para todos
Luís Faria


Teixeira Pinto – Um grande berro

5 Junho 1971 - Véspera de entrar em férias e apanhar o TAP para Lisboa


A festa está no adro. Daí a nada o silvo dos foguetes na sua fuga para os céus será audível e lá chegados, vai transformar-se num estralejar com lágrimas cintilantes e coloridas de felicidade, esparramadas por toda a envolvência. É, em pensamento (virtual como agora se diz), a festa pela minha chegada à aldeia.

Com o Fontinha sou chamado ao Capitão: a missão é destruir material explosivo velho despejado para o efeito numa cratera lá para as bandas da bolanha.

Os festejos, ainda que virtuais… esfumam-se com o ribombar da bomba, antes mesmo de se ver e ouvir as lágrimas estralejantes.

Fur Mil Jorge Fontinha (Inchalazinho)

A festa verdadeira vai ser agora, com outro tipo de foguetes que se espera não rebentem em berros e lágrimas de dor e sofrimento!

Cá está a cratera! No fundo, espalhados sem nexo e à mistura com terra quase cor de sangue, uma boa dezena de quilos de granadas várias e minas, com e sem espoletas que é preciso meter na ordem com todo o respeito. Dava a ideia que de longe as tinham atirado para lá, o que de todo não teria acontecido com certeza.

Depois de se ter olhado apreensiva mas atentamente para aquela bagunçada, a estratégia foi delineada: a primeira acção a executar era descer ao buraco e com toda a cautela pôr uma ordem no caos.

Para isso, descemos sorrateiramente para o fundo do buraco, fazendo tudo para não acordar nenhuma das frágeis e possíveis berradoras!

O tempo parou… todos os sentidos estavam concentrados no manuseamento daquelas putas falsas, de modo a que não acordassem do seu sono e berrassem em uníssono!!! Tudo correu bem, sem gritaria!

Concluída esta fase, saímos do covão. Um olhar atento ao trabalho feito… afastamo-nos… uma cigarrada para descomprimir… uma folga para ganhar novo alento e continuar trabalho!

Para escaparmos a um encore indesejado, era preciso distribuir correctamente uns petardos de trotil e cordão detonante de modo a garantir que não teríamos de regressar a este palco de tragédia expectante!

Estávamos neste compasso de descanso quando, vindo do lado do rio, aparece o Aspirante Comando de sua graça Domingos (creio) - já o conhecia de Lamego onde à altura era Furriel, se não estou em erro – que nos interpela do que estamos a fazer. Esclarecido e sem mais delongas, dizendo que resolve o problema… saca de duas granadas e atira-as para o buraco sem dar tempo a qualquer contraposição argumentativa da nossa parte. Obviamente afastamo-nos rápido!!

Fiquei expectante e… lixado!! Podia ser que resultasse, quem sabe?

Bum?!... porra… só foi bum! foda-se… ao menos podia ter sido BUUUMMMMMMM!!!! o que quereria dizer que aquela porra toda tinha ido c'o caralho… assim, só um bum… era porque tínhamos ficado mais fodidos do que antes!

Tempo de segurança dado e aproximamo-nos. O Domingos olhou e… retomou o seu caminho. Cobras, lagartos e faíscas à mistura com palavras feias, saíram em janela dos meus olhos na sua direcção! A intenção dele foi boa mas… precipitada e impensada!

Na cratera… tudo revolvido e espalhado à balda, com algumas granadas encobertas pela terra…! Só uma das granadas lançadas deflagrou, ficando a outra descavilhada e bem visível pelo meio daquela merdice toda! Enfim, um cu de boi para resolver!! Todo o trabalho anterior se tinha perdido. Puta de sorte!

Mais uns tempos de concentração, de estudo e cigarros e… nova estratégia.

Desta vez, pelo risco acrescido, só um de nós desceria. O outro ficava em segurança relativa, de prevenção, socorro e apoio aos trabalhos.

Novamente a descida sorrateira, o manuseamento individual, pensado e cauteloso mas firme das malditas granadas, voltando a pôr ordem no caos. Tudo a correr lindamente!
De seguida e com todo o respeito, foram colocados os cubos de trotil, os detonadores e o cordão detonante de modo a que não houvesse novo encore.
Feito isto e como não tínhamos dispositivo de disparo eléctrico, era a hora de ligar tudo aquilo a cordão lento (rastilho). Ok, tudo a correr sobre granadas.

Só me faltava sair da cova e estendermos o rastilho até uma distância que nos permitisse abrigo minimamente seguro de modo a não apanharmos com o entulho nos cornos após o arrebentamento. A uns bons metros lá estava o bagabaga (?) previamente escolhido.

O rastilho foi aceso e iniciou a sua marcha ardente… começamos a contar o tempo… esgotou-se… aninhámos com as mãos na cabeça… BUUUUUUMMMMMMMM…

De olhos em nesga vi o entulho começar a cair como chuva granizada pesada… o chão tremeu como se de um terramoto se tratasse… com aquele BERRO não ia ser preciso novo encore! Graças a Deus.

Um Jeepe aproxima-se rápido. No quartel tudo tinha abanado e o Comando quis saber o que acontecera!

O que acontecera já era passado e tínhamos ganho o 1.º prémio.
No dia seguinte eu ia de férias para o Puto.
Isso era o futuro radioso e promissor do cumprimento de tantos sonhos adiados.

A todos o meu abraço
Luís Faria
__________

Nota de CV:

Vd. poste de 1 de Novembro de 2009 > Guiné 63/74 - P5191: Viagem à volta das minhas memórias (Luís Faria) (22): Teixeira Pinto, férias à vista

6 comentários:

Jorge Fontinha disse...

Ainda hoje me arrepio, só de me lembrar desse momento.Ambos conheciamos o Domingos, dos tempos de Lamego.Mais tu, que com ele privaste nos Comandos, comandados pelo então Capitão Jaime Neves.Já na altua ele havia grangeano fama de maluco e algo irresponsável e essa fama chegava aos nossos ouvidos, nos Ranger's em Penude!O certo é que depois de ter feito o que fez, nos deixou entregues ao nosso petisco, não querendo e não lhe apetecendo participar dele.
Já agora, já me não lembrava dessa fotografia.
Não lembraria ao Diabo, o que nos fizeram passar.Bém nos quizeram enterrar.Ficamos sempre com a cabeça de fora!...Vai relembrando mais episódios.Eu sou mais esquecido!

Aquele abraço.

Jorge Fontinha

MANUEL MAIA disse...

CARO LUIS,

PENA FOI QUE O XICO-ESPERTO NÃO FOSSE OBRIGADO A TOMAR CONTA DOS ACONTECIMENTOS E DAR SAÍDA AO PROBLEMA...
AINDA HOJE SURGEM UNS QUANTOS DESSA ESPÉCIE,A ARMAR AO FINÓRIO...

É A VIDA COMO DIRIA O TONY GUTERRES...

UM ABRAÇO
MANUEL MAIA

Anónimo disse...

Caro Luís Faria
Nesse sábado, sim porque 5JUN71 calhou nesse dia da semana, o "marado" do xico-esperto ia-vos mandando para outras paragens, com as suas fanfarronices.
Deve ter sido um ronco com manga de barulheira, mas eu não dei por nada...porque andei nesse dia em visita turística por BASSAREL e CALEQUISSE.
Quem sabe o José Câmara não me tivesse feito companhia nesse dia? Estarias por esses lados camarada Câmara?
Abraços e cá fico esperando por mais lembranças tuas desse Chão Manjaco.
Jorge Picado

paulo santiago disse...

Camarada Luís
Conheci bem o Alferes Domingos( há
uma confusão com o posto,quando o
conheceste em Lamego,era Aspirante,
tinha sido FurMil na 4ªCcomandos em
Moçambique)Em Jun/71,julgo que ainda estava na 26ª,mais tarde teve
problemas com o comand.de companhia
e foi afastado.
Maluco,era concerteza,irresponsável
tenho dúvidas,com essa característica as consequências
operacionais seriam graves.Lembro
que em 6/01/72,fazia 24 anos,cheguei ao fim da tarde a Bissau num heli que me trouxe do
Saltinho.Já vinha com os copos e o
único conhecido que encontrei para
o jantar foi o Domingos.Fomos ao
Solar dos Dez, onde numa das paredes existia um buraco resultante de um tiro dado com um
revolver que o Domingos normalmente
transportava.Acabou por ser mais
uma noite louca,tendo-se juntado a
nós o Major Gaspar,talvez ainda mais doido que o Domingos.Este era natural
de Castro Laboreiro,contrabandista
na adolescência,habituado a escapar
à GF e Guardia Civil.Outras noites
acabavam em problemas com PM,etc.
Já em tempos contei no blogue,a
última noite que ele passou em Bissau,quando eu e outros camaradas
o fomos encontrar,de braço engessado,no Pilão,rodeado por uma
multidão enfurecida...
Continuou com pancada.Tinha uma filha,única pessoa que o dominava,
infelizmente,quando ía num passeio
lá em Melgaço veio um carro e
matou-a, e ele ficou destroçado...
Há meia dúzia de anos que não sei
mais nada do Domingos.
Abraço
P.Santiago

Anónimo disse...

Olá amigos,
O Xico-Esperto, neste caso o alferes em questão, pertencia à Companhia de Comandos #26. Essa companhia, tal como a do Luís Faria, ajudava na proteção à estrada Teixeira Pinto/Cacheu.
Eramos jovens naquela altura e, por vezes, a irreverência próprias da idade levava a situações como esta.
Foi bom não ter havido consequências nefastas de um acto que, tenho a certeza, foi mais que irreflectido.
A Companhia de Comandos #26 tinha nas suas fileiras um alferes miliciano, natural da ilha de São Jorge,e do qual esqueci o nome. Não era muito normal haver grauduados açorianos nas companhias de comandos.
O nosso muito estimado camarada Jorge Picado faz referência ao facto de a 5 de Junho de 1971 ter estado em Bassarel e Calequisse, lugares por onde eu passei, e que guardo no coração.
Naquela data eu ainda estava a gozar as delícias da estância da Mata dos Madeiros. A última vez que pisei a Mata dos Madeiros foi a 28 de Junho de 1971.
Um abraço,
José Câmara

António Matos disse...

Grande Luís, cada vez que se fala de minas, de armadilhas, de bombas, de paiois e afins, vêem-me à memória diversas situações que, ora pela iminência do perigo, ora pelos gags provocados pelo grande stress, não nos deixam passar em claro esses marcos incontornáveis marcados no cérebro como se fosse com um ferro em brasa à semelhança da marcação do gado.
Daí que recorde desde um contacto que tive a meia dúzia de metros do célebre campo de minas que instalámos, à mina que ambos ( eu e tu ) desmontámos e a vaca ( para não lhe chamar outro nome ) tendo sido armada não explodiu e ainda atitudes avulsas de um soldado que não se apercebendo do perigo duma detonação por simpatia, arremessou de maneira displiscente e infantilmente despreocupada, uma caixa inteira de minas aos nossos pés, da altura do unimog, lembras-te ?
Era, de facto, como diz o José Câmara, a irreverência da juventude a falar mais alto mas juntava-se-lhe uma dose de estupidez que ultrapassava os limites do aceitável quando os acidentes eram já por demais conhecidos.
Costuma dizer-se que entre mortos e feridos alguém há-de escapar e nós fomos bafejados pela sorte de pertencer ao número daqueles que deram credibilidade ao ditado e ainda bem !
Fica a recordação.
António Matos