quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4963: Pensar em voz alta (Torcato Mendonça) (19): Em noite e dia de "cerrar dente"

1. Mensagem de Torcato Mendonça, ex-Alf Mil da CART 2339, Mansambo, 1968/69, com data de 9 de Setembro de 2009:

Caro Carlos
Parece que continuas de serviço. Certamente apanhaste alguma porrada e nós não sabemos.

Há muito, muito tempo que não escrevia nada e não escrevi. Acontece que arrumei escritos e eteceteras para facilitar formatações e novo alinhamento na informática.

Estou, pensou eu, novamente de saída. Como bom Mouro vou até terras de moirama. Apalpo a areia, ponho o velho lenço avermelhado, mais grenad, com as luas, em quarto crescente ou minguante, as estrelas e outros simbolos do Islão e, quando o Sol aquece muito derramo água pelo lenço turbante - há dias atrás postaste uma foto minha com um lenço, esse era o azul da Cart, na cabeça - Gostos. Refresca...

Isto tudo para te dizer que devo voltar a sair; que falam nos médicos, e bem, mas há um, infelizmente desaparecido, que eu recordo com saudade: - o David Payne. Ia para as Companhias no mato. A prova está numa foto dele a fazer pequena cirurgia, quase á luz da vela na minha Cart. Foi médico do Bat 2852 em Bambadinca 68/69. Padrinho do Mário Beja Santos, creio eu, quando estava já em Bissau.

E,nas arrumações, encontrei esse escrito de Fev/09. Teria sido enviado? Perguntei-lhe mas ou por indisposição ou mau feitio nada disse. Sacana. Anexo o dito.

Um abraço forte, não tamanho de nada, só forte e fraterno. Estendo outros aos restantes Editores e a todos os Camaradas desta Tertúlia enorme.

Um abraço Carlos Vinhal do Torcato



Pensando em voz alta em noite e dia de “cerrar dente”!

1 – Pergunto, não ao vento, mas às horas que passam, na noite calma, no silêncio, quase em misantropia, respostas para interrogações e dúvidas minhas advindas de transformações, divergências, nas diversas maneiras de relatar o facto ou o acontecimento vivido.

Não podemos ter a pretensão da igualdade do relato, individual, se foi vivido colectivamente. O relato posterior diverge sempre. Parece-me natural e até desejável que assim seja. As contradições, se analisadas calmamente e em busca de consenso, a maioria, são, desde logo superadas. Outras, fruto de orgulhos ou outros sentimentos menores, tornam os relatos irredutíveis no consenso. Dispensáveis e, salvo se houver a pretensão de tornar a discussão absurda, nunca se encontra a verdade. Subsiste ainda o esquecimento fruto do passar dos anos, décadas no caso vertente, e à consequente evolução do nosso próprio pensamento. Ou seja: o relato, dos factos há décadas passados terá que ser forçosamente relatado, não só em apelo à memória mas à maneira ou à forma do pensar de outrora. Difícil? Evidente. Mas assim aproximamo-nos mais da realidade passada, vivida e, se relatada, mais próxima do acontecido.

Em fundo tenho música tirada do Korá mandinga de Braima Galissá.

Estou louco? Não. Se assim pensas é porque não viveste o que eu vivi. Vidas!

Mas no futuro, que se quer breve pois há muito tempo perdido, têm que se discutir com frontalidade e objectividade certos temas.

Porque não já hoje?

Não particularizo qualquer caso. Todos nós pensamos, de imediato, num ou noutro. O blogue, este sítio é certamente o lugar para se contarem estórias, analisarem acontecimentos controversos e, por isso mesmo, serem contributos válidos para a história da guerra da Guiné. Não só da guerra mas de vários assuntos que necessitam ser tratados. Não posso dissociar a guerra da Guiné da guerra colonial noutras frentes. Só que aqui é, quanto a mim, preferível ser tratada, por quem viveu lá os acontecimentos e faz o seu relato.

Outro ponto é este tratamento ser feito por militares não profissionais. Nada tenho contra a Instituição Militar ou os profissionais. Vinquei em mim certa maneira de pensar, certo tipo de comportamento que se deve a esse tempo e, ainda hoje, se mantém. Pode e deve ser discutido também por profissionais. A guerra não era feita por eles? Evidentemente que os profissionais eram minoria e faziam comissão atrás de comissão. Aliás muitos profissionais dão aqui o seu contributo e, muitas vezes a eles se recorre no tirar de certas dúvidas.

Isso é assunto a merecer um tratamento e uma discussão própria. Parece-me, no entanto, que é assunto de consenso.

De quando em vez aparece um assunto ou um tema a suscitar maior divergência, por fugir do habitual;

De quando em vez fica o relato, a divergência a merecer um maior aprofundamento;

De quando em vez este blogue parece um bi ou tri blogue, devido a diversidade de assuntos tratados;

Não de quando em vez mas sempre, é obrigatório encontrar o consenso.

Utópico?

Não, nada disso. Entre Homens que têm um laço comum tão forte, não pode ser de outro modo.


2 – Há muito tempo que, através do Paulo Raposo, surgiram cinco questões. Não consegui reflectir e encontrar respostas do meu agrado.

Assim vou voltar a elas e responder o mais sinteticamente possível. Tentem…

i) - O heroísmo do soldado português;

R: Foi grande. Os heróis principais já não estão entre nós.

ii) - A confiança que os soldados depositavam em nós, quadros;

R: Certamente que tinham. Haveria excepções? Penso que sim mas desconheço.

iii) – A nossa passagem por África, que benefício social, económico trouxe a Portugal;

R: A certos grupos económicos certamente que muito. Foram cinco séculos de Império… ao Zé soldado… pouco ou nada. Deve ter havido excepções para validarem regras. Difícil a questão e, se respondida dava resmas de papel.

iv) – A religiosidade, de então e actual, e o porquê da diferença;

R: A de resposta mais difícil para mim. Convivi com homens de fervorosa religiosidade, homens do Norte. Outros, de outra Fé, Muçulmanos, de igual e forte religiosidade.

Mas os Deuses ou Deus, Pai de todos porque deixava os seus filhos serem tão maltratados? Isto ontem. Hoje haverá diferenças? Creio que não!

v) – As nossas famílias, que amarguras passaram por cá aquando da nossa ausência;

R: Muita creio eu. Muita mesmo. O sofrimento foi enorme.

Não quero escrever mais sobre esta questão. Arrepia-me.

A partida em sofrimento terrível (não quis a minha família presente) mas vi cenas inesquecíveis; a comissão; a alegria, quantas vezes a falsa alegria, da chegada. Depois, e mais importante: os deficientes e os que não vieram.

Muito difícil responder e não se diz nunca tudo. Bem colocadas as questões, pela abrangência e a profundidade.

Responder honesta e frontalmente eram muitas folhas. Parabéns Paulo e obrigado pelo que me fizeste reflectir, pensar e tentar, sem nunca responder. Se o não fizesse, assim tão levemente ficava mal comigo. Respondo assim e alivia muito pouco. Mexe connosco.

E tu Camarada? Respondes facilmente?

Não entro no caso do dia. Eu e os Homens que comandei, branco e negros, Homens portanto (só há uma raça a humana), combatemos com dignidade, estivemos não sei quantas horas debaixo de fogo, muitos foram feridos, alguns morreram de arma na mão, outros juntei os bocados. Quase todos voltaram connosco, pois a esta Terra pertenciam. Outros ficaram lá na sua Terra e alguns foram fuzilados. Porquê? Porque combateram comigo e com outros como eu. Fomos Camaradas, somos Camaradas e a justiça está por fazer.

Quase todos, os que voltaram foram recebidos em alegria. Muitos adaptaram-se mal à nova vida e, mesmo hoje ainda sofrem cerram o dente, muito docemente, muito passivamente choram por dentro em raiva surda. Até um dia Camarada, há sempre um dia de acertar contas, fazer justiça.

E, não erro certamente, se nos juntássemos um dia, lá, haveriam abraços com lágrimas. Porque os Homens também choram e era encontro de Irmãos.

FND, 25 de Fev 09
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Notas de CV:

Vd. último poste de "Pensar em voz alta" de 18 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3648: Blogoterapia (82): Pensar em voz alta: Guileje ainda é cedo, Saiegh 18/12/78: foi há trinta anos...(Torcato Mendonça)

Vd. último poste da série de 8 de Setembro de 2009 > Guiné 63/74 - P4922: Blogoterapia (125): No dia dos meus anos, brindei à amizade e à camaradagem forjadas em tempo de guerra (José Martins)

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Boa viagem até ao Sul, amigo Torcato!
Belo texto.
Muita reflexão. Muita ainda por fazer.
Fizeste-me lembrar que não respondi ao inquérito do Paulo, mas não sei se o irei fazer agora.
Um abraço
Hélder S.