quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Guiné 63/74 - P4961: Histórias de Juvenal Candeias (4): Há periquitos no Quitáfine


1. O nosso Camarada de Juvenal Candeias, ex-Alf Mil da CCAÇ 3520 - Cameconde, 1971/74 – enviou-nos mais uma história das suas memórias da guerra:

Camaradas,

Para rentrée, aqui vai mais um retalho das minhas recordações de Cacine!

Seria interessante se conseguísseis juntar uma carta da região que é mencionada - Cacine, Cameconde e Cassacá.

Os especialistas sois vós, eu não sei fazer isso.

Fico-vos a dever uma cervejinha ou mesmo uma bazuca!

Anexo também duas fotos do "Desembarque da LDG “Montante” em Cacine" para acompanhar esta história:

Fotos do desembarque da LDG "Montante" em Cacine

Anexo também duas fotos do "Desembarque da LDG “Montante” em Cacine" para acompanhar esta história:

HÁ PERIQUITOS (*) NO QUITÁFINE

A região do Quitáfine, a Sul de Cacine, era considerada o santuário do PAIGC, que aí estava fortemente instalado e provido de dispositivos de segurança, que tornavam os nossos movimentos impossíveis, salvo com utilização de meios excepcionais.

Trilhos minados e sentinelas avançadas, permitiam-lhes uma tranquilidade apenas quebrada pelos obuses de 14 cm, disparados do nosso destacamento de Cameconde!

Os efectivos de que dispunham com um grupo especial de 20 lança-granadas, responsável pelas constantes flagelações a Cameconde, apoiado por um bigrupo disperso pela zona de Cassacá e Banir (onde se supunha estar o comando), eram reforçados por uma vasta população armada em auto-defesa, distribuída, entre outras, pelas tabancas de Ponta Nova, Bijine, Dameol, Cassacá, Banir, Campo, Cassebexe e Caboxanque.

O PAIGC furtava-se sistematicamente ao contacto, optando por uma estratégia defensiva de protecção às populações que controlava, privilegiando as flagelações e a colocação de engenhos explosivos!

Quem circulava a Sul de Cambaque (que distava cerca de 3 Km de Cameconde) tinha como certo algumas surpresas no trilho! Provavelmente um campo de minas e a seguir (algum humor-negro), munições de Kalash espetadas no chão formando a palavra PAIGC!

O Quitáfine permitia ainda ao PAIGC, um reabastecimento regular e seguro, processado a partir da República da Guiné, através de vários rios, em especial o Caraxe e o Camexibó!

Ao dispositivo militar juntava-se uma mata densa intransponível!

Os pára-quedistas, após uma operação no Quitáfine, só à noite conseguiram chegar a Cameconde, com grande dificuldade e orientados pelo clarão da queima de cargas de obus, em cima dos abrigos!

O grupo de Marcelino da Mata, largado de helicóptero, fez um golpe de mão a Cabonepo, a base do PAIGC mais a Norte do Quitáfine, onde estaria instalado um posto transmissor. Quando chegou, após lenta progressão através da mata… não havia lá nada… a base tinha sido abandonada momentos antes!

O Quitáfine era, efectivamente, o santuário do PAIGC, desde o início da guerra! Foi ali que se realizou, na tabanca de Cassacá – a 15 Km de Cacine e a 8 Km de Cameconde -, em meados de Fevereiro de 1964, o 1º Congresso do PAIGC, com a presença de Amílcar Cabral, Luís Cabral, Aristides Pereira e outras individualidades do Partido!

ACÇÃO PERIQUITO

A CCaç 3520 tinha chegado ao porto de Cacine, a bordo da LDG Montante, em 24 de Janeiro de 1972, para render a CCaç 2726 – companhia açoriana comandada pelo Capitão Magalhães -, o homem que retorcia as pontas do bigode com cera e a quem o tabaco nunca faltava! Dizia-se mesmo, à boca pequena, que, quando o tabaco acabava em Cacine, o PAIGC deixava, no mato, uns macitos para o Capitão! Rumor ou realidade… ninguém sabe! Ficou por provar!

Decorria ainda o período de sobreposição, que se prolongou até 22 de Fevereiro, quando foram recebidas instruções de Bissau, para ser preparada uma operação ao Quitáfine – Cabonepo e… Cassacá!

Seríamos, então, ainda bastante inexperientes, mas nunca aquilo a que alguém chamou um verdadeiro bando, embora a preparação que recebêramos para a guerra fosse bastante incipiente, com uma IAO feita no Cumeré, que pouco valor guerreiro nos acrescentara.

A formação garantida pelos oficiais e sargentos da companhia, essa sim permitia que o pessoal se apresentasse bastante bem preparado!

Os comentários e interrogações começaram a surgir entre as poucas pessoas que tinham conhecimento da operação!

Como vamos entrar no Quitáfine, com tudo minado e com sentinelas avançadas?

Qual será o grupo de combate eleito, quem serão os milícias que o acompanham?

Porque vamos intervir a nível de grupo de combate, quando estão estacionadas duas companhias em Cacine, enquadradas por capitães do quadro?

Será que com mais efectivos e um comando experiente e profissional, não poderíamos tentar um assalto frontal à base de Cassacá?

Parece que uns sentiam que a comissão estava terminada e o embarque estava à vista, enquanto outros, recém-chegados, temiam que a sua estreia no teatro de operações não fosse a mais auspiciosa… pelo que ninguém considerava ser o melhor momento para pôr em prática uma operação de grande envergadura!

Assim sendo, avançou um grupo de combate de periquitos, reforçado por alguns milícias, para um terreno totalmente hostil e com efectivos IN muito superiores!

Enfim, o moral das tropas era elevado e os madeirenses eram gente de muita coragem!...

Cassacá, 16 de Fevereiro de 1972

Exactamente no 8º Aniversário do 1º Congresso do PAIGC, exactamente no mesmo local! Se alguém o pensou… ninguém o confessou!

A lotaria contemplou o 1º Grupo de Combate do Alferes Alexandre Margarido (mais tarde Spínola viria a graduá-lo como Capitão), uma escolha certa, seria aquele que estaria melhor preparado, tanto pela sua formação em Operações Especiais, como pelas suas características pessoais!

O 1º Grupo de Combate seria apoiado por um grupo de milícias, formado pelos melhores elementos da respectiva companhia!

A operação foi preparada em detalhe, vindo mesmo um Major de Operações de Bissau que a comandaria o pessoal desde… Cacine! Haveria apoio aéreo de dois helicanhões! Sabia-se, então, que a abordagem ao Quitáfine se faria através do Rio Cacine primeiro, e do seu afluente Rio Poxiuco depois, dada a impossibilidade de o aceder por terra e a necessidade de não perder o factor surpresa!

Hora de partida… havia apenas dois sintex para transportar o pessoal ao longo dos rios! Nada de grave! Tudo se desenrasca! O restante pessoal será transportado em canoas gentílicas!

A viagem é lenta! Os sintex puxam as canoas para que se ganhe algum tempo! A organização é impecável e os meios fazem inveja aos exércitos melhor equipados!

A Armada Invencível chega, finalmente, ao ponto previsto para o desembarque! Os operacionais, depois de camuflarem os barcos, para reutilizarem no regresso, penetraram na mata, tentando chegar de surpresa à base do PAIGC, em Cassacá!

Andam, andam, andam… até que é avistado, já perto de uma tabanca, um solitário nativo armado! Um dos milícias, contra todas as instruções recebidas, faz fogo… o alarme estava dado!...

O cagaçal feito pela população da tabanca, incitando à descoberta e captura do grupo, é enorme!

Quebrara-se o efeito surpresa, o PAIGC poderia organizar-se e os efectivos com que contava na zona eram muito superiores e, naturalmente, melhor conhecedores da zona de acção!

A ocorrência é do conhecimento imediato do comando, em Cacine, que decide sobrevoar o local da operação numa avioneta Dornier 27, que após verificar a situação no terreno, ordena a retirada!

O pequeno grupo constata, porém, que a retirada não seria fácil!

Em pouco tempo a maré baixara, a armada estava atascada na bolanha, o rio era apenas um fio de água, insuficiente para garantir o reembarque e a retirada dos candidatos "a apanhar o IN pelas costas".

Um daqueles pequenos pormenores que, a falharem na hora “h”, transformam muitas operações planeadas ao detalhe em autênticos desafios de sobrevivência e desenrascanço!

O pequeno grupo encontrava-se assim entre a espada e a parede ou… pior, entre uma armada atolada na bolanha e 10 Km de terreno hostil, ocupado por largas dezenas de guerrilheiros e centenas de habitantes armados!

Que fazer então?

O alferes conferenciou com os seus graduados e com os elementos da milícia mais experientes, excelentes caçadores e determinantes neste terreno, não apenas para evitar o contacto com o inimigo, mas também para detectar e evitar as minas e armadilhas colocadas nos trilhos!

Acabaram por decidir criar uma manobra de diversão!

Iniciaram, então a progressão, como se o objectivo fosse chegar à base de Cassacá, para evitar que o inimigo descobrisse as embarcações, entretanto guardadas por uma secção e, simultaneamente, ganhar o tempo necessário para que a maré subisse e a armada pudesse navegar!

Não foi preciso caminhar muito para se pressentir uma emboscada de um grupo numeroso, mas barulhento, o que permitiu aos periquitos mergulharem na mata!

Com os dedos nos gatilhos mergulhados em absoluto silêncio - determinado pelo medo ou pelo treino? – o pequeno grupo, assistiu ao desencadear de forte tiroteio a uns 100 metros, não traindo a sua posição, facto este que constitui condição essencial para evitar um previsível desastre!

A situação, contudo, estava a tornar-se insustentável! A pouca experiência de movimentação na mata iria, certamente, acabar por denunciar as suas posições no terreno!

Entretanto o tempo decorrido permitiu, certamente, que os sintex e as canoas pudessem flutuar, pelo que não foi necessário simular mais o falso avanço para Cassacá!

Mas como chegar às embarcações sem ser detectado, com guerrilheiros e população armada em sua perseguição?

O alferes solicitou o apoio aéreo, que com umas valentes bujardas largadas cirurgicamente pelos helicanhões, criaram uma verdadeira confusão entre os guerrilheiros, permitindo aos piras, já então detectados e perseguidos de perto, chegarem às embarcações, entretanto já a flutuar!

Uma autêntica saga!

O reembarque foi um sucesso, mas o regresso iria representar uma nova aventura!

Avariou-se o motor de um dos sintex, o que obrigou à formação de um comboio naval indescritivel! À cabeça desse "comboio" seguia o único sintex com
motor que rebocava o outro sintex e ainda meia dúzia de canoas. Esta formação arrastou-se penosamente ao longo do Rio Cacine, por longas horas, com a pequena ondulação a ameaçar permanentemente o seu afundamento.

Completamente ensopados e exaustos, os homens desta operação de periquitos, tinham, no cais de Cacine, todos os restantes elementos das duas companhias à sua espera! Com tanto rebentamento e explosão, ninguém acreditava que todos ali chegassem… sem um arranhão!

Da nossa parte acabou assim, deste modo frustrante, com um indigno fogo de artifício (de apenas um tiro), a comemoração do 8º Aniversário do 1º Congresso do PAIGC em Cassacá!

À noite, com pompa e circunstância a Maria Turra (nome por que era conhecida a locutora IN da rádio oficial do PAIGC), anunciava o aniquilamento completo do grupo que tentara o assalto a Cassacá!...

Pois é… poderia mesmo ter acontecido…

Um abraço do,
Juvenal Candeias
Alf Mil da CCAÇ 3520

Nota 1: (*) Na Guiné, os periquitos ou piras, era a designação dada aos tropas recém-chegados ao território.

Nota 2: O relato desta história teve a colaboração directa do Alexandre Margarido, que ainda hoje não sabe como saiu vivo do Quitáfine, e a quem agradeço com um grande abraço.

Fotos: © Juvenal Candeias (2009). Direitos reservados.
_____________
Notas de M.R.:

Vd. último poste da série em:

5 comentários:

Anónimo disse...

Juvenal
Gostei da narrativa.Quase que se vive.
Um abraço
Luis Faria

Juvenal Amado disse...

Caro juvenal

O Luis tirou-me as palavras da "boca", em relação à forma clara e ligeiramente irónica com que fazes o teu relato.
Quase se tem imagens do teu relato

Este teu relato tem ainda por cima uma constatação interessante.
Os relatos de grande parte de operações que foram realizadas por nós, têm um ponto comum salvo honrosas excepções que foi........ o fiasco.
Ou foi um gajo que deu um tiro.
Ou comandante operacional, que se lembrou de sobrevoar as tropas denunciando a sua posição.
Ou a artilharia não chegou lá.
Normalmente essas operações tinham companhias piras.
O meu batalhão, também participou numa operação ao Mato Cão logo chegados ao Leste. Os camuflado ainda tinham a goma já estavam a enfiar a malta naquele ninho de vespas.
O resultado foi uma carrada de evacuações por cansaço e desidratação.
Resultados práticos ?
Mesmo assim tivemos uma estrelinha que evitou, que o numero de mortes em combate não fosse muito superior.

Um abraço
Juvenal Amado

Luís Dias disse...

Caro Juvenal

Excelente narrativa. Quase nos sentimos dentro da situação.
A tua companhia veio com o meu batalhão (BCAÇ3872) no Angra do Heroísmo e regressou connosco no Niassa.
Também nós fomos enfiados numa operação idêntica, conjuntamente com o BART3873 e outras forças, na operação Trampolim Mágico (Fevereiro de 72), com um desembarque na Ponta Luís Dias (tem o meu nome mas não tem nada a ver comigo)e, como já referiu o Juvenal Amado, aqui, não obteve grandes resultados, para além da destruição de vários acampamentos IN e a recuperação de elementos pop (mulheres, velhos e crianças, porque o IN ia fugindo à nossa frente. Muitos "piras" foram evacuados por desidratação.
Um abraço do tamanho do Rio Corubalo para ti e para o Margarido.
Luís Dias
Ex-Alf da CCAÇ 3491 (Dulombi/Galomaro)

Anónimo disse...

Amigo Juvenal,
Ao ler o relato que fizeste sobre a operação ao vespeiro que era o Quitáfine, emocionei-me de tal forma que, ao revivê-la (não sei se deva dizê-lo), as lágrimas correram-me pela cara abaixo.
Como sabes, eu era Furriel do 1º Pelotão,pelo que também participei nessa operação. Passou-se como relatas e, vou só acrescentar mais um pormenor:
Cerca de 200 metros antes do local onde o nativo armado foi abatido (eu e o Sousa da minha Secção fomos até junto dele verificar os estragos in loco)e, num local onde o trilho fazia um ângulo de 90º, os milícias da "pica" detectaram (por n/sorte), uma mina anti-pessoal que todos conseguimos ladear. No caso de rebentamento, além do estrago que faria em alguns de nós, serviria também para alertar a base do PAIGC que já estava próxima. No entanto, devido ao tiro, o IN ficou logo alertado e, mais à frente, foi a chuva de fogo que descreveste.
Desde sempre me pergunto: como foi possível os "crâneos" de Bissau enviarem um pelotão de piras para uma zona vermelha, apenas de intervenção do Com Chefe, e onde as NT não iam pelo menos há mais de2 anos?
Lembro-me também do regresso e da recepção que as 2 Companhias e até grande parte da população da tabanca nos fizeram.
Vou parafrasear o A. Margarido: Não sei como saí vivo do Quitáfine.

Um grande abraço
Extensivo a todos os ex-camaradas de armas

José Pires Vermelho
Ex-Furriel Milº da CCAÇ 3520- Caine.

Manuel Reis disse...

Manuel Reis disse:

Amigo Juvenal:
Foi com alguma emoção que li a descrição da operação ao Quitáfine.
A perfeição da tua descrição é de tal ordem que nos tranporta para o cenário onde decorreu a operação e nos obriga a participar nela.
Um abraço para todos os que lá estiveram envolvidos na operação.
Para ti e para o Margarido, um abração.
Manuel Reis.