sábado, 29 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4880: História da CCAÇ 2679 (24): Emboscada na estrada Pirada-Bajocunda e mazelas (José Manuel M. Dinis)

1. Mensagem de José Manuel M. Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 25 de Agosto de 2009:

Carlos,
Anexo mais um pedaço da lenga-lenga que reporta algumas passagens da 2679 por terras do leste da Guiné. Já assentámos em Bajocunda, onde os dias tranquilos só esporadicamente serão interrompidos por acções do IN, na forma de flagelações aos aquartelamentos, na colocação de minas, e fazendo emboscadas. Das eventuais emboscadas só uma foi concretizada, e foi a CCA que teve o privilégio de a apanhar. Das restantes duas conhecidas, ambas dedicadas ao Foxtrot, a seu tempo darei notícia do que aconteceu.

História da CCAÇ 2679 - 24

Emboscada na estrada Pirada-Bajocunda


A Companhia de Comandos Africanos ainda permanecia em Bajocunda, dando, naturalmente, apoio operacional. Por esta altura a 2679 estava mais vocacionada para as tarefas da quadrícula e todas as noites enviava um Gr Comb para Tabassi, onde a autodefesa era uma miragem. Por outro lado, mantinha outro destacado em Copá. Os patrulhamentos e emboscadas nocturnas competiam, maioritariamente, aos Comandos. No que respeitava às deslocações em colunas, a 2679 garantia a maior parte delas.

No entanto, uma ocasião calhou a um Gr Comb da CCA fazer uma coluna a Nova Lamego. Tratava-se de uma escolta a uma coluna de reabastecimento, que também incorporava viaturas civis carregadas de mercadoria para Bajocunda, prevenindo o eventual corte da estrada por efeito do crescimento das linhas de água.

Não me recordo qual dos Gr Comb teve esse incumbência, mas lembro que o Teixeira, o sagento careca que usava uma mosca proeminente, participou na viagem.

No regresso, na zona encharcada do pequeno pontão, entre Pirada e Tabassi, onde se abrandava porque o nível da água cobria a estrada e o pontão, ocorreu uma emboscada.
Não estava lá, pelo que não sei com rigor o que aconteceu. Mas ficámos a saber que as NT reagiram pronta e eficazmente, repelindo o IN que retirou em direcção ao Senegal.

Na tropa não houve baixas a registar, mas uma viatura civil Bedford, carregada de mercadoria, deve ter sido atingida por um rocket que a afectou no rodado traseiro do lado esquerdo, destruindo-o, e impedindo a continuação da marcha. Na cabine, o condutor, um guinéu, não teve oportunidade de se proteger e morreu vítima de alguns tiros disparados para a porta, perfurando-a. Obras de alguns bons atiradores do IN, que estariam a pouca distância. Nada mais foi molestado. A mercadoria foi transferida para viaturas militares e a chagada a Bajocunda aconteceu com o cair da noite.

Não houve notícia de outras baixas e, nessa noite, foi necessário montar segurança no local para salvar o destroço, encaminhando-o no dia seguinte para o aquartelamento, onde se mantinha na data do meu regresso. No auto de abate e destruição, suponho, aquela viatura estaria carregada com muito mais mercadoria do que efectivamente transportava.


As mazelas

Referi anteriormenteque o Foxtrot andava com um deficit de pessoal, em resultado de situações de incapacidade temporária, ou, mais raramente, por gozo de férias. Na verdade foram poucos os que gozaram férias durante a comissão, porque sendo o pré uma minguada importância que se esgotava numas cervejolas, poucos podiam contar com o auxílio familiar para se deslocarem à Madeira, ao Continente, ou mesmo na Guiné. Abdicando do direito às férias, o seu contributo à Pátria era maior do que seria exigido, aumentando o castigo dos mais desfavorecidos.

Entretanto, a doença alastrava. O paludismo, frequentemente, atacava um ou outro. Em Piche tive essa experiência, com febres altas e o corpo quebrado, incapaz e apático para o que fosse. Mas as injecções de Resochina (pronuncia-se resoquina) que o Vitor ministrava, retornava-nos à vida em 4/5 dias. Reincidirei em Bajocunda com novo paludismo, apesar da grande redução de mosquitos relativamente à região do Corubal, e à maior exposição consequente.

Ainda em Piche, uma ocasião, seriam 15h00, tinha regressado de uma coluna ao Gabú e estava a comer uma sopa liofilizada e restos que sobraram na messe, quando me chamaram ao Major de Operações, que tinha notícia de movimentos do IN próximo do Corubal, a SW, e era imperativo que arrancasse nessa direcção.

Foi um frete e uma correria, parecia que aumentava o peso das armas, caregadores e cantis, toc-toc, cantis que se esgotaram de água num esfregar de olho. Na passagem pela bolanha, corria o suor em bica e ressentiam-se as pernas, cavei com as mãos até encontrar lama, de que enchi o cantil e chupei através do lenço, em função de filtro, para, a seguir, voltar a enchê-lo numa água parada, sem quaisquer condições, e saciar-me da sede a que sucumbia. Estas atitudes aconteciam com a consequente ingestão de micro-organismos que nos devassavam por dentro, com o mesmo ímpeto com que os turras queriam limpar-nos o sarampo do corpinho.

Também por isto, viria a passar uma temporada no Hospital, vitima de uma amibíase, cujas amibas me beberam os glóbulos vermelhos.

Por influência de uma qualquer bactéria, apareceram alguns casos de testículos inchados, imponentes, que não só constituíam grande sucesso fotográfico, como presenteavam as vítimas com a necessária deslocação à consulta externa.

A par destas maleitas, também abundava a micose, doença típica da nossa inadaptação ao território e ao clima. As micoses são provocadas por fungos, e era nas virilhas que mais se revelavam. De facto, os nativos usavam o chamado saco de merda, que consistia nuns calções largos, fechados na cintura e nas pernas, provocando uma caixa de ar envolvente às partes genitais que garantiam alguma frescura e ligeireza. Ao contrário, nós, produtos da civilização, usávamos cuecas apertadas, que roçavam e danificavam as transpiradas virilhas, abrindo caminho aos fungos inimigos e à micose, com o prurido castigador. Disso fui grande vítima sem ganhar juízo. Nem pomadas, nem o iodo, nada me valia, só o clima seco da Europa veio tranquilizar-me.

Inesperada foi a morte do soldado Aguiar, um madeirense atinado, que teve o azar de, no remoto quartel de Bajocunda, sem médico nem meios de diagnóstico, ter sido medicamentado para paludismo, face à elevada febre e à falta de forças que apresentava, de que levou dois tratamentos sem os resultados pretendidos. Evacuado de urgência, entrou no avião combalido. Terá saído em Bissau vítima de meningite.

Esta narrativa não esgota o rol de mazelas que afectavam a tropa. As do foro psicológico também eram frequantes, com manifestações inopinadas, mas, felizmente, no Foxtrot não ocorreram para além das divertidas maluqueiras do quotidiano.

Por fim, não se tem falado muito nisso, mas alguns militares deram tratamentos desajustados às figadeiras, alguns, provavelmente, com reflexos na vida futura.
__________

Nota de CV:

Vd. último poste da série de 7 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4793: História da CCAÇ 2679 (23): Questão bicéfala (José Manuel M. Dinis)

6 comentários:

Anónimo disse...

José Dinis,
Linda estória, com alguns inconvenientes.
Gostei.
Filomena

MANUEL MAIA disse...

CARO ZÉ DINIS,

ESTE TUA EVOCAÇÃO SOBRE AS DOENÇAS TROPICAIS EM QUE A INVESTIGAÇÃO MÉDICA PORTUGUESA DEU CARTAS A NÍVEL MUNDIAL,ATRAVÉS DUM ALTAMENTE CONCEITUADO INSTITUTO, INFELIZMENTE DESAPARECIDO AQUANDO DA INDEPENDÊNCIA DE MOÇAMBIQUE,FEZ-ME RECUAR NO TEMPO E RELEMBRAR QUE TAMBÉM EU E TANTOS DE NÓS,BEBEMOS
DESSA ÁGUA CASTANHA(QUAL POÇO DE DOENÇAS...)

QUANTOS DE NÓS FICARAM COM PROBLEMAS DE SAÚDE E ATÉ JÁ TERÃO PARTIDO FRUTO DESSA ÁGUA "INQUINADA" QUE ÉRAMOS OBRIGADOS A CONSUMIR?

QUANTOS DOS MILHARES QUE VIVEM NAS RUAS,CARENTES DE TUDO,FORAM VÍTIMAS DA INGESTÃO DESSA ÁGUA DA BOLANHA?

QUE LHES DEU EM TROCA O PAÍS?
NADA,RIGOROSAMENTE NADA,PARA ALÉM DO VERGONHOSO ESQUECIMENTO A QUE OS VOTOU.

NÃO NOS PEÇAM PARA CALARMOS POR MAIS TEMPO ESTA REVOLTA.

NÃO NOS PEÇAM PARA FINGIRMOS QUE NÃO ASSISTIMOS A ESTA IGNOMÍNIA.

TEMOS DE APROVEITAR TODAS AS OPORTUNIDADES( COMO EU FIZ AGORA...) PARA CONDENARMOS OS POLÍTICOS E OS MILITARES ENVOLVIDOS NESTE MONSTRUOSO CRIME.

QUANTO AO QUE ESCREVES,COMO DE COSTUME,É BEM FEITO.

UM ABRAÇO
MANUEL MAIA

JD disse...

Boa Manel;
Malha! Malha neles!
De facto todas as autoridades ficaram desautorizadas pela indiferença manifestada com as vítimas da guerra. Só de lembrar as insignificantes "pensões de sangue" a que tinham direito as viúvas ou as mães amparadas dos combatentes milicianos falecidos, deixa-me intrigado pela maneira cega (não me refiro aos oportunistas) como o Povo ainda vota em muitos políticos conhecidos e no activo. Como ainda prestam honrarias aos retirados, quando se deslocam, pavoneando-se, pelo país.
A malta gosta é de gaitadas, e a pimenta no cú do outro... para alguns é refresco.

Anónimo disse...

Caros veteranos;

Lá virá o tempo em que as rábulas acabam por ser desmascaradas, porque haverá sempre quem não se deixará levar nas "estórias" narradas por alguns que apenas buscam o rápido protagonismo sem escrúpulos pela verdade dos factos, nas suas bocas santificadas e acabam por sofrer desagradáveis surpresas.

Cumprimentos,
Constantino Costa

Hélder Valério disse...

Caro José Manuel
Como sempre, leio com interesse as tuas histórias, ou melhor, a história do tua "comissão de serviço" e esta também não deixa de interessar pois relembra aquelas "pragas" das micoses e da "fórmula 5" aplicada onde era necessário, fosse lá onde fosse.

Entretanto, na minha ingenuidade, julgava que este sítio, este blogue, serviria para permitir reconstituir o puzzle da memória da guerra, colocando neste colectivo as nossas histórias, as nossas recordações, procurando fazer e cultivar uma fraternidade de homens que tinham (têm) esse passado em comum. Ou seja, fortalecendo a unidade, embora não o unanimismo.

Por isso fico sem atinar com o objectivo dum comentário anterior.

Se ele se refere ao texto do José Manuel confesso que não atino com "a rábula que acaba desmacarada", nem com as "estórias narradas por quem busca rápido protagonismo sem escrúpulos pela verdade dos factos" nem também com as "suas bocas santificadas que acabam por sofrer desagradáveis surpresas".
Francamente, Zé Manel, fico preocupado com as eventuais deturpações que possas ter introduzido nos teus relatos e também fico desiludido porque, sendo um teu leitor atento e interessado, não te imaginava que andasses em busca de rápido protagonismo sem escrúpulos.

Mas, se o tal comentário não se refere ao texto do José Manuel então ainda fico mais preocupado.
É que não me parece que acrescente algo de positivo, apenas "bota abaixo" utilizando uma linguagem e uma terminologia agressivas e acho que isso não une, apenas cria desunião, a menos que tal seja o objectivo.

Vai escrevendo mais, mas sê verdadeiro!
Um abraço
Hélder S.

MANUEL MAIA disse...

CAMARADAS,

SOMOS MAIS DE TRÊS CENTOS, AQUELES QUE VÊM UTILIZANDO ESTE ESPAÇO EXTRAORDINÁRIO CRIADO PELO LUIS, ACOLITADO,E BEM,PELO CARLOS VINHAL,PELO VIGÍNIO BRIOTE E PELO MAGALHÃES RIBEIRO.

INFELIZMENTE,POR VEZES,POR RAZÕES QUASE DE LANA CAPRINA,ENVOLVEMO-NOS
EM QUESTIÚNCULAS QUE ACABAM POR TERMINAR MAL.
NÃO PRETENDO PASSAR A IMAGEM DE MORALISTA,ATÉ PORQUE POR VEZES TAMBÉM EXTRAVASO EM RESPOSTAS A ALGUMAS PICARDIAS,MAS O CERTO É QUE SE TENHO TIDO A HUMILDADE DE PEDIR DESCULPA QUANDO EXAGERO,ESPANTA-ME QUE OUTROS ASSIM NÃO FAÇAM.

ACABEI DE LER OS COMENTÁRIOS DO VALÉRIO E DO CONSTANTINO, E FICO TAL COMO O PRIMEIRO,PERPLEXO COM O QUE LEIO.

GOSTAVA DE LEMBRAR A TODOS OS CO-TABANQUEIROS,QUE "GRAÇAS A ESTAS SITUAÇÕES",JÁ PERDEMOS(ESPERO QUE NÃO DEFINITIVAMENTE...)DOIS CAMARADAS COMO O VASCO DA GAMA E O ANTÓNIO MATOS,DOS MELHORES ENTRE TODOS.

AS DIVERGÊNCIAS EXISTEM,DE FORMA NATURAL,E TEMOS DE SABER LIDAR COM ELAS.

O QUE O ZÉ DINIS ESCREVEU ,E FÊ-LO COM A SUA HABITUAL MANEIRA DE QUEM SABE ESCREVER BEM,APENAS FOI A VERDADE DOS FACTOS.
TANTOS DE NÓS SOFRERAM NA CARNE AQUILO QUE REFERIU,QUE ME ESPANTA
DEIXAR RESQUÍCIOS DE DÚVIDAS A ALGUÉM ...

SE SE TRATA DE REACÇÃO A POSIÇÃO ASSUMIDA PELO ZÉ,PARA ALÉM DE ERRADA,VEM A DESTEMPO.

VAMOS ACABAR COM ISTO?

UM ABRAÇO A TODA A TABANCA