domingo, 16 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4827: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (2): A jibóia

1. Segunda história da série "Gavetas da Memória" de Carlos Geraldes, ex-Alf Mil da CART 676, Bissau, Pirada, Bajocunda e Paúnca, 1964/66



Gavetas da Memória

A Jibóia


Ainda não há muito tempo, principalmente em dias de feira, era frequente aparecerem, pela cidade, vendedores ambulantes da famosa banha da cobra.

Munidos de uma modestíssima mala de cartão que arrumavam num canto do pequeno recinto que escolhiam para palco da sua actuação, aqueles verdadeiros mestres da arte da oratória, iniciavam quase sempre o discurso, por uma alusão a um qualquer acontecimento trivial, uma pequena observação, uma pilhéria ou até um simples piropo, algo que num repente prendesse a atenção dos passantes.

Então o nosso homem, quando se sentia observado, começava a palestra científica sobre as virtudes de um remédio milagroso de que só ele era portador e que, num gesto de pura abnegação e amor ao próximo, sentia ser sua a missão de não deixar de o proporcionar àqueles que o quisessem conhecer, desvendando um antigo segredo esquecido pela ciência moderna, mas que nas profundezas mais longínquas das matas mais obscuras da selva africana, a sua gordura era, desde os tempos mais remotos, aproveitada para a confecção de um extraordinário medicamento que tinha o maior poder curativo de que há memória em todo o mundo: a famosa banha da cobra ou mais precisamente: da jibóia, esse animal que por alguma razão era tão falado na Bíblia, simbolizando a ciência do Universo.

Ali mesmo, naquela maleta, dizia ele em tom dramático, tinha uma, bem grande, para mostrar ao excelentíssimo público, para que todos a pudessem ver e certificarem-se como era um animal manso, inofensivo, infelizmente alvo de tantas superstições e perseguições, mas que a mais moderna investigação científica provara ser uma fonte inesgotável de benefícios para o homem.

Entretanto, quando estava mesmo na eminência de abrir a dita mala, lembrava-se de qualquer outra coisa importante de que se tinha esquecido, ou fingia distrair-se com um aparte do público ou com a chegada de mais um transeunte, que não tinha obviamente ouvido a sua demonstração, e recomeçava novamente o discurso desde o início, adiando sempre Sine Die o momento da dita revelação, em que finalmente veríamos o tão impressionante e famoso bicho. Deixando a mala sempre por abrir, aumentava assim, muito habilmente, a tensão que se criava entre os já inúmeros espectadores ansiosos por verem a famosa jibóia e engrossando também o número de possíveis compradores, claro está.

Escusado será dizer que em nenhuma ocasião cheguei a ver a tal jibóia, se é que ela alguma vez existiu de facto. Apenas me foi dado vislumbrar as latinhas do maravilhoso unguento que ele rapidamente fazia correr de mão em mão pela assistência, acabando sempre por haver bastantes compradores, proporcionando-lhe um bom negócio mais uma vez. Era uma simples pomada à base de vaselina e menta, que refrescava a pele e deva uma sensação de alívio em quase todas as situações. Idêntica à que hoje se pode encontrar nas lojas dos chineses, com o pomposo título de pomada feita de pó de dente ou garra, sei lá, de tigre.

Dantes, era tudo tão fácil, tão simples e tão ingénuo… tal como ainda agora, não será?

Mesquita de Paúnca

Foto: © Carlos Geraldes (2009). Direitos reservados


Mas foi em África, numa manhã de sol intenso, em plena estação seca, que finalmente vi uma verdadeira jibóia. Felizmente já estava morta, ali esticada a meus pés, onde um grupo de destemidos rapazes da aldeia a tinha colocado como se de uma oferenda para a minha pessoa se tratasse.

Surpreso sem saber o que responder naquela situação, tentei perceber o que se tinha passado. Conforme relataram, naquela manhã, quando desbastavam o capim que invadia os campos perto das palhotas, notaram uma agitação estranha nuns cabritos presos ali perto. Deram logo o alarme, pois a experiência dizia-lhes que certamente andava ali cobra por perto. Batendo o capinzal ficaram espavoridos com o tamanho da bicha. Tinha quase três metros de comprimento.

Mas decididos a acabar com tamanha ameaça, munidos de paus e pedras, rodearam-na por rodos os lados e acabaram por matá-la. Depois como não sabiam o que fazer, resolveram que o melhor seria levá-la ao “alfero” para ele a esfolar e ficar com a pele.

- Esfolá-la, eu?

- Sim, sim! - diziam eles todos orgulhosos da façanha.

- O nosso alfero é que sabe! O nosso alfero tem manga de ronco! O nosso alfero tem faca di mato! - diziam apontando repetidamente para uma pequena faca de escuteiro comprada na Metrópole e que, estupidamente, ainda trazia à cinta, enfiada numa bainha de couro. Não me servia para nada, nem para descascar uma manga, pois nunca a tinha afiado como devia ser. Apenas a usava para me ornamentar, para ter ronco, à laia de um qualquer Tarzan de pacotilha, mas que pelos vistos impressionava verdadeiramente os meus súbditos, naquele aldeamento perdido no meio de uma África, longe de figurar nos meus mais adolescentes sonhos de aventuras.

- Bem, pensei eu, que hei-de fazer? - e olhava para todos os lados à espera de encontrar uma solução que me libertasse daquele embaraço. Mas os soldados e os furriéis que já se tinham juntado à nossa volta curiosos com a novidade, sorriam de malandros na expectativa de verem como eu me iria desenrascar daquela situação inesperada e encolhiam os ombros como se não houvesse mais nada a fazer senão satisfazer aquela pretensão dos valentes nativos que além de uma boa recompensa esperavam também ver o que alfero iria fazer com a oferta deles.

- Não posso dar parte de fraco, tenho que fazer das tripas coração… - pensava eu angustiado.

E pela primeira vez, vencendo uma repulsa congénita e o natural receio que todos nós herdámos dos nossos ancestrais antepassados, desde que fomos expulsos do Paraíso, pus a mão numa cobra, numa verdadeira jibóia, animal de dimensões monstruosas, capaz talvez de engolir um boi.

Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66), Os Lassas > "Foto que me foi concedida pelo Manuel Brita, condutor das Fox, e que esteve em Cufar no tempo do António Graça de Abreu" [1973/74].

Foto (e legenda): © Mário Fitas (2008). Direitos reservados.


Enquanto os mais valentes lhe seguravam na cabeça, comecei então o trabalho de tentar remover a pele ao animal. Foi uma trabalheira danada. O que me valeu é que pelos vistos ali ninguém entendia muito do assunto e a minha notória inexperiência nem foi assim muito evidente.

Até os próprios negros, sempre ingenuamente impressionáveis, comentaram a coragem do nosso alfero que, de faca de mato na mão, enfrentou o inimigo sem qualquer hesitação!

Ao fim de um bom par de horas, lá conseguimos tirar a pele ao bicho, mas de modo tão tosco que, mesmo tendo ficado em salmoura uns poucos de meses, acabou por se estragar e não serviu para nada. Nem para um par de sapatos deu.

E ainda bem, pois dizem que a pele de cobra dá azar.

Só Deus sabe o nojo provocado pelo cheiro que aquela carnificina me deixou nas mãos que, mesmo depois de as esfregar bem esfregadas com sabonete Lifebuoy de alcatrão, ainda assim mantiveram aquele fedor por longo tempo. Felizmente as jibóias não apareceram mais por aquele lugarejo, onde definitivamente não eram bem-vindas, livrando-me também do repugnante cargo de esfolador que, certamente, me estaria destinado dali para a frente.

Mas porque é que me foram escolher a mim? Não haveria na aldeia nenhum nativo que soubesse fazer tal coisa com muito melhor destreza?

Não, o que certamente se passou foi que, simplesmente quiseram honrar-me com o privilégio de ser eu a despojar o bicho da sua pele, um bem de certo modo precioso, como sinónimo de poder, de autoridade. Era importante para eles que eu desse valor à sua oferta e eu mesmo tratasse de preparar o arranque da pele, o que eu, mesmo muito atabalhoadamente consegui fazer, sem dar a entender que tal coisa me repugnava e me era completamente estranha. Fiquei com a impressão que deve ter sido também a primeira vez que lhes foi dado contemplar um branco, um chefe da tropa, a fazer tal trabalho.
__________

Nota de CV:

Vd. primeiro poste da série de 9 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4804: Gavetas da Memória (Carlos Adrião Geraldes) (1): "Os Elefantes"

Sem comentários: