segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4775: Notas de Leitura (14): Mariazinha em África (Mário Beja Santos)

1. Mensagem de Mário Beja Santos (*), ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70, com data de 31 de Julho de 2009:

Querido amigo,
Valeu a pena reler esta jóia de Fernanda de Castro e atrevi-me a sugerir a sua leitura aos nossos confrades.

Parto amanhã para a minha casa de pedra dentro de uma floresta silenciosa, algures no concelho de Pedrógão Grande.
Ando a redescobrir a vida depois de uma catástrofe inusitada.

Um abraço do Mário


Mariazinha em África:

O despontar da literatura colonial guineense

Beja Santos

Foi o estudioso Leopoldo Amado quem, no seu ensaio A Literatura Colonial Guineense (várias vezes aqui referido no blogue), chamou a atenção para as obras de Fernanda de Castro (1900 – 1994), uma escritora que viveu na sua adolescência em Bolama e que teve um indesmentível papel pioneiro na literatura colonial da Guiné. O destaque deve ser posto em Mariazinha em África, um best-seller da literatura infantil cuja primeira edição surgiu em 1926 e que neste momento está ainda disponível na edição das obras completas de Fernanda de Castro no Círculo de Leitores.

No critério de Leopoldo Amado prevalece o facto de Fernanda de Castro evidenciar no seu trabalho as atitudes do Estado Novo perante as colónias. Ele escreve: “Não é apenas o exotismo, o paternalismo e o desconhecimento do Outro civilizacional que da produção literária–colonial de Fernanda de Castro numa peça chave para compreender as metamorfoses da política oficial. É, por assim dizer, a idiossincrasia com que encarou a sua produção literária-colonial, o que a forçou nas edições seguintes a alterações conteudísticas de forma a se equidistar da política oficial do Estado Novo que, paradoxalmente, apregoava a multiracialidade. O racismo colonial, hábil, tinha também uma actuação e respectiva teorização correspondente. Ao longo das diferentes edições de Mariazinha em África, Fernanda de Castro procedeu a uma suavização da visão colonialista do negro. Mariazinha em África está entre os livros mais vendidos em Portugal”.

Esta obra original de literatura infantil, uma pequena gema do modernismo literário, é de facto um livro muito bem estruturado e que vai espelhar a manifestação do que se pensava, designadamente nos anos 20 e 30, do negro e do espírito de missão do branco. Mariazinha tem o pai a viver em Bolama, dirige os serviços da capitania de Bolama e era o chefe dos serviços marítimos da Guiné. Viaja com a sua mãe e o seu irmão Afonso de Lisboa para Bissau, integra-se nas lides marítimas, aprende o que são as toninhas e os peixes voadores e um dia chega-se ao calor africano, o vapor vai ancorar no porto de Bissau onde o pai de Mariazinha abraça a mulher e os filhos. Descobre que os tubarões não devoram os negrinhos que mergulham para apanhar as moedas lançadas à água pelos passageiros. Mariazinha deslumbra-se com a viagem para Bolama: “Palmeira e coqueiros, de grandes leques de folhas, vinham até à praia, nasciam quase dentro de água e pareciam as sentinelas vigilantes daquela região misteriosa.

De vez em quando, um pássaro de cores vivas voava sobre o barco. Macacos, aos guinchos, saltavam de ramo em ramo. E o calor, sufocante, tornava-lhes a respiração pesada e difícil”. Sempre curiosa, faz perguntas e aprende o que são papaias, assiste a uma festa dos Mancanhas, constata que os pretos falam “uma língua de trapos”, experimenta as inclemências de um tornado, assiste a uma caçada no Oio, delicia-se com a água do coco, é pedida em casamento por um poderoso chefe tribal depois de uma recepção em Buba, deslumbra-se com os cavaleiros cujos animais vinham ricamente ajaezados com arreios de couro lavrado, vai constituindo um pequeno jardim zoológico e um belo dia regressam todos, trazem o Vicente, um menino da região e vão viver para a outra banda. Certamente acicatada pelo sucesso deste livro, Fernanda de Castro irá publicar em 1935 Novas Aventuras de Mariazinha, a acção decorre na Quinta da Amoreira e reaparece Vicente que se impõe pelo seu afecto, pela sua delicadeza, mas também pela sua “língua de trapos”, exprimindo-se, aqui e acolá, em crioulo (Manga di arroz! Arroz bom di mais!). Vicente é o expoente do exotismo em terra de brancos: “Os meninos que vinham visitá-los – Mariazinha e os irmãos tinham muitos primos e muitos amigos – andavam à roda de Vicente como borboletas tontas em volta da luz. Riam dos seus menores gestos, da sua estranha e divertida linguagem, e Vicente, encantado com tão inesperado êxito, andava cada vez mais feliz e mais brincalhão”. Vicente sofre um processo de civilização, é muito bem tratado, mais não é par dos meninos brancos a não ser para as brincadeiras: come na cozinha com os criados e vive noutro espaço, cada um no seu lugar. Este segundo livro de Fernanda de Castro, no entanto, incorpora outra dimensão da moral do Estado Novo, investindo em histórias exemplares que têm a ver com os valores do trabalho, a solidariedade filial, as diversões construtivas, a aprendizagem da modéstia e da humildade, o papel da religião. Não terá sido por acaso que o livro terminava com as crianças a rezar o Pai-nosso na Quinta da Amoreira e Vicente rezava assim: “Santificada seja o vossi nomi”. A integração na civilização superior passava pela cristianização. Décadas depois a mentalidade mudou e o Estado Novo passou a conviver melhor com o islamismo, aceitando na Guiné limites para o fervor missionário.

Recomenda-se a todos os tertulianos que ainda não conheçam estes livros de Fernanda de Castro que os adquiram e os comentem depois aos seus netos. Foi com Fernanda de Castro que se abriu um ciclo literário que também será preenchido por importante literatura nativa, como será o caso de Juvenal Cabral, pai de Amílcar Cabral.
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Notas de CV:

(*) Vd. poste de 29 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4756: Historiografia da presença portuguesa (20): 1º Cruzeiro de férias às colónias de C. Verde, Guiné, S. Tomé... (Beja Santos)

Vd. último poste da série de 2 de Agosto de 2009 > Guiné 63/74 - P4766: Notas de leitura (13): "Os Anos da Guerra Colonial" e as suas incorrecções (António Dâmaso)

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