domingo, 2 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4767: Blogoterapia (121): Os Fulas, o PAIGC e... os tugas (Cherno Baldé / Luís Graça)

1. Mensagem do Cherno Baldé, com data de 31 de Julho de 2009:


Amigo Luís e toda a equipa de editores da Tabanca Grande,

Como poderão notar no conteúdo das últimas estórias, embora tenha mantido a linha cronológica, estou a encurtar e a correr mais rápido do que previa, porque notei pelas reacções que o período pós-independência suscita maior curiosidade/interesse aos visitantes do blogue.

Acontece que falar desse período não é só doloroso como problemático [vd. ponto 2], pois é uma faca de dois gumes em relação ao qual, quer queiramos quer não, na minha opinião, a MAIOR responsabilidade cabe a Portugal e aos portugueses mesmo se não o quiserem assumir. Já estão a ver onde quero chegar?

Os acontecimentos que se seguiram ao 25 de Abril, não podem desculpar o abandono dos aliados nas mãos dos antigos inimigos. Houve acordos que foram assinados e que não acautelaram nem os interesses nem as vidas daqueles que foram utilizados como carne para canhão, e mais, constatamos mais tarde que os nossos pais, tios e irmãos, à semelhança dos nossos avós no passado (Sec XIX / XX) que defenderam a bandeira portuguesa sem condições e sem contrapartidas, na condição de aliados e milícias de autodefesa, não pertenciam ao corpo do exército português e como tal nem merecem constar na lista daqueles que morreram na guerra.

Quando foi publicada aquela lista dos que tombaram no Jornal Expresso, em 1994, estava eu em Lisboa na altura e tinha constatado, não sem uma grande mágoa e decepção, que os nossos familiares, como o Capitão de milícias Guela Baldé e o Alferes Abdulai Balde, para so citar estes, heroicamente mortos em combate na secção de Cambaju, nem constavam da lista.

Na medida do possível, tentarei dar minha contribuição, sempre no mesmo estilo mais ou menos neutral e equidistante, sem pretender ser o dono da verdade absoluta. Não penso que tenha havido uma conspiração, na minha opinião, foi tudo muito claro desde o princípio. O objectivo principal era neutralizar as possibilidades de qualquer revolta ou tentativa de organizar uma resistência entre os fulas, ingénuos aliados das forças da ocupação. E nisso foram eficientes.

Os portugueses, muito mesquinhos (a expressão não é minha mas do historiador René Pélissier), sempre a poupar e a poupar-se, enfrentavam as situações de guerra na lógica da razoabilidade, da racionalidade e de algum humanismo, tentanto conquistar as pessoas para a sua causa (eu assisti a uma cena com um prisioneiro cubano, negro e uns 2 metros de altura, que se dizia ter-se entregue, a comer na messe/mesa dos oficiais em Fajonquito).

Para atingir esse mesmo objectivo político de dominação e de sujeição, o PAIGC utilizou as armas que melhor sabia utilizar: As prisões na calada da noite, os fuzilamentos públicos e o terror colectivo. Dito isso, põe-se a questão de saber: Seria diferente se os vencedores fossem os fulas e os seus aliados ?...

De notar, todavia, que essas represálias não atingiram as crianças e os mais jovens entre os fulas que foram mobilizados e encorporados no ensino público gratuito. Essas boas intenções, que duraram muito pouco tempo como todas as boas intenções do mundo, foi o maior, se não o único feito digno de menção do PAIGC e do período pós-independência.

Graças a essa euforia política colectiva e mobilização de jovens, hoje o pais possui mais de um milhar de jovens quadros de diferentes grupos étnicos, mesmo se a sua utilização e enquadramento não foram equacionados devidamente e os resultados não são tão visíveis no desempenho económico e político do país. Por isso, na minha opinião, não se pode afirmar que houve uma conspiração contra os fulas.

O balanco é + negativo ou + positivo? O PAIGC devia e podia fazer melhor?... Sem dúvida que sim. E os portugueses dentro de tudo isso?... A históoria se encarregará de responder, um dia. Eu não quero incriminar ninguém mas darei o meu testemunho, sem partidos.

As palmas que já bati no passado para os soldados portugueses nas suas paradas de ronco e para o PAIGC durante os seus infindáveis discursos e meetings já chegam, agora quero pensar com a minha cabeça. Tenho mais ou menos 50 anos e nessa idade devo ter medo de quem?...

Juntamente envio mais uma parte das minhas habituais crónicas.

Um forte abraço deste irmãozinho de Fajonquito, Cherno A. Baldé

2. Mensagem anterior, de 27/7/09, do editor L.G.:

Muito, muito obrigado... Já publiquei tudo... Com mais uns textos, poderíamos publicar um livro... E até, por que não, trazer-te a Lisboa...para o lançamento... Posso fazer-te uma sugestão ? Que nos fales dos tempos, difíceis, que foram, para os fulas, o 25 de Abril de 1974, a transferência de poder, as primeiras perseguições, os primeiros julgamentos revolucionários, as execuções públicas, em 1974/75...

Eu sei que isto é muito delicado e doloroso, é preciso ainda muito tacto político... Mas um dia os teus filhos e netos vão querer saber... Achas que os guineenses ainda são todos "vítimas e cúmplices" desta "conspiração de silêncio" ?

Pensa também na tua posição profissional e social... Não queremos de modo algum que isso te venha prejudicar, a ti ou à tua família... Mas depois da morte do 'Nino', ainda há tabus na sociedade guineense, relativamente à luta de libertação e à independência ? ...

Mas também podes falar da partida dos tugas, de Fajonquito (termo que nunca usas... porquê ?). Ou da tua ida para Bissau, estudar.. Ou da tua "escolinha" em Fajonquito dos teus livros e cadernos, dos teus professores: o lias, o que sabias de Lisboa, de Portugal, dos portugueses europeus... etc.

Recebe um abraço deste irmão, amigo e admirador, Luís Graça


3. Comentário do editor L.G. ao poste P4747 (*):

Como se percebe pelas crónicas do Cherno Baldé, a sociedade fula é(era) muitíssomo mais complexa e estratificada do que os militares portugueses tendiam a imaginar...

O Cherno abre-nos a janela para dois mundos, o dos nossos quartéis, o da máquina de guerra, visto pelos olhos de uma criança, o Chico; e o próprio grupo étnico-linguístico, a comunidade a que ele pertencia, pelo nascimento, a educação, a religião, a história...

Ele é fula e acima de tudo, é um, fula-forro, não é um fula-preto... Quem de nós, na época, se preocupava com estas subtilezas sócio-antropológicas e sobretudo procurava não se comportar como um "ocupante" e sobretudo um "eurocêntrico" ?

Vejo nas memórias do Cherno Baldé também um sinal de amizade, de tentativa, intelectualmente honesta e franca, de nos dizer, quarenta anos depois, que os fulas eram fulas, africanos, leais e dedicados aos portugueses q.b...

Mas... que nunca poderiam ser inteiramente "assimilidados" e integrados na cultura portuguesa, cristão, ocidental...

Temos uma dívida de gratidão para com os fulas, 'nossos aliados' (leia-se: das autoridades portuguesas da época, políticas e militares, que eram as de um governo cuja legitimidade democrática eu pessoalmente contestava...).

Temos inclusive uma dívida de sangue para com os nossos antigos camaradas fulas (Os militares da 'minha' CCAÇ 12 eram fulas; não sou capaz de os tratar como mercenários...).

Aliás, não me interessam os fulas, como um todo, mas as pessoas, os guineenses, que têm um rosto, uma identidade, uma história, independentemente do seu 'bilhete de identidade' (biológica, étnica, geográfica, social, etc.).

De qualquer modo, o Cherno Baldé ajuda-nos a ler, de uma maneira integrada, mais subtil e mais rica, a realidade do nosso quotidiano na guerra da Guiné, incluindo as relações com a população local e nomeadamente com a população feminina... Adorei essa das lavadeiras, as "lava-tudo"...

Ajuda-nos também a não cair na tentação dos estereótipos e das generalizações abusivas...

Por isso eu pergunto: Quem aceita, aqui no nosso blogue, o desafio de falar, com a mesma maneira 'desinibida e despudorada', da sua lavadeira ou 'lava-tudo' ?

___________

Nota de L.G.

(*) Vd. último poste da série > 27 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4746: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (8): Misérias e grandezas de Fajonquito, 1970/75

7 comentários:

Anónimo disse...

"Os portugueses muito mesquinhos", refere um tal Pélissier, mas tu Tcherno Baldé, não te deves coibir de mencionar todos os nomes, quer em crioulo ou português, com que os tugas são (foram) batizados, em Bissau, após aquele final em 1974.

Não apenas os nomes oficiais usados pelo partido, mas tambem os nomes usados pelo povo.

Antº Rosinha

Anónimo disse...

Olá Cherno uma boa tarde neste mês de férias cá pelo meu País.
Não vou comentar, nada disso. Vou só mandar um abraço e pedir para continuares como o Luis Graça te pede. Estive cerca de um mês fora e fui lendo, sem regularidade,o blogue em "vicihóbi" como disse aos Editores num e-mail a eles enviado. Curiosamente falava dos teus textos, de África e de alguns africanos com quem falei. O que os teus escritos nos dizem têm, quanto a mim, um grande interesse para quem quer compreender a tua terra, o teu País e o teu Continente; Subjectivo claro. Por isso prefiro escrever-te um dia, enviando aos Editores e eles te enviarão. O colonialismo português e a apressada descolonização é tema complexo- demasiado complexo e controverso. Não tenho paciência para controvérsias. Respeito a opinião de todos e concordo ou discordo. Por isso,se escrever vai via Editores. As noticias sobre África não são boas e, as Nações Unidas vão aprovar,pela primeira vez, um relatório a parar as culpas ao colonialismo- os males de África devem ser assumidos, depois de duas gerações a terem a responsabilidade governativa no continente, pelos africanos- Artigo no Expresso de ontem-01 Ag09: cito de cor. Ora isto dava pano para mangas. Por isso a necessidade dos teus trabalhos. Não estou a culpabilizar ou a desculpabilizar ninguém. Estou a falar, escrevendo a ti e a quem queira ler sem se sentir agredido.
Meu Caro amigo um abraço do Torcato

Anónimo disse...

Penso que o Cherno Baldé, que eu admiro pela clarividência e frontalidade, vai ‘mexer no vespeiro’. Ainda estão vivas e bem instaladas as personalidades que conduziram a ‘descolonização exemplar’. Muitos arquivos continuam inacessíveis para que se possa fazer história com rigor. Pode ser que entretanto apareçam mais livros como o de Piotr Evsiukov, primeiro embaixador da União Soviética em Moçambique.
Henrique Matos

MANUEL MAIA disse...

CARO CHERNO,

É ALTURA DE CONTARES MAIS ALGUMA COISA DO QUE SABES,QUE É MUITO NECESSARIAMENTE...

É ALTURA DE DENUNCIARES ESTA CORJA
POLÍTICA E MILITAR PORTUGUESA QUE DEIXOU ASSASSINAR OS SEUS ALIADOS GUINÉUS,MILITARES E MILÍCIAS,INCLUINDO ATÉ FAXINAS...)

"CASCA-LHES","BATE" NESTA MISERÁVEL GENTE QUE PATROCINOU COM A SUA IRRESPONSABILIDADE E ALHEAMENTO, OS FUZILAMENTOS DE TANTOS GUINEUS.
EST GENTALHA QUE FOI CÚMPLICE NO ASSASSÍNIO DE CRIANÇAS...

DÁ-LHES "SEM DÓ NEM PIEDADE"POIS AO FAZÊ-LO ESTARÁS TAMBÉM A VINGAR AQUELAS MORTES E ENVERGONHAR OS PORTUGUESES QUE POR VARIADÍSSIMAS RAZÕES SE TÊM REMETIDO AO SILÊNCIO.

TAMBÉM NÓS,SIMPLES EX-MILITARES,À ALTURA NOS DEIXAMOS SILENCIAR QUANDO TINHAMOS FORÇA PARA DERRUBAR GOVERNOS...

REPARA QUE AINDA NÃO NOS CONSEGUIMOS ORGANIZAR PARA REIVINDICAR OS NOSSOS MAIS ELEMENTARES DIREITOS...

ACESSO A TRATAMENTO NOS HOSPITAIS MILITARES.

ACESSO A MEDICAÇÃO GRATUITA PARA CURAR AS MAZELAS "GANHAS" NA GUINÉ...

ACESSO À REFORMA SEM PUNIÇÕES A PARTIR DOS SESSENTA ANOS.
( JÁ FOMOS SUFICIENTEMENTE PUNIDOS COM A GUERRA...)

SERIA FÁCIL CRIARMOS UM PARTIDO DOS EX-COMBATENTES QUE SÓ COM OS VOTOS DOS FAMILIARES PRÓXIMOS ATINGIRIA NUMEROS SUPERIORES AOS DO MAIOR PARTIDO EXISTENTE...

MAS CONTINUAMOS ANESTESIADOS PELA CORJA ARRANGISTA QUE SE INSTALOU NO PODER HÁ DÉCADAS...

POR ISSO,AO "PUNIRES" A CORJA QUE EM PORTUGAL COMETEU A VILEZA DA CUMPLICIDADE NOS FUZILAMENTOS,ESTARÁS TAMBÉM A ATIRAR-NOS À CARA A VERGONHA DA NOSSA INACÇÃO.
FÁ-LO,FÁ-LO QUE ALGUNS DE NÓS TE AGRADECERÃO.

DIZ-NOS COMO FOI PARA QUE NUNCA O ESQUEÇAMOS.
FAZ-NOS CORAR DE VERGONHA...
ESTE NOSSO SILÊNCIO TERÁ DE ACABAR UM DIA...

UM ABRAÇO

MANUEL MAIA

Luís Graça disse...

Na qualidade de fundador, administrador e editor deste blogue, tenho que (re)lembrar algumas coisas a nosso respeito...


Por exemplo;

... Somos independentes do Estado, dos partidos políticos e das associações da sociedade civil que de uma maneira ou de outra possam representar e defender os direitos e os interesses dos ex-combatentes portugueses (ou guineenses).

... Somos sensíveis aos problemas (de saúde, de reparação legal, de reconhecimento público, de dignidade, etc.) dos nossos camaradas e amigos, incluindo os guineenses que combateram, de um lado e de outro. Mas enquanto comunidade (virtual) não temos nenhum compromisso para com esta ou aquela causa por muita justa ou legítima que ela seja (...).

Um abraço ao Cherno e aos seus comentaristas. Luís Graça (de férias...).

Anónimo disse...

CHERNO

É isso - a curiosidade...
Mas não terão sido só fulas, concerteza.
Conta-nos factos, situações concretas, que é dessa matéria que se tiram as conclusões. E se evita fazer generalizações.
Por aqui abundam: "parece que", "disseram-me", "ouvi dizer"...

Um abraço
Alberto Branquinho

JD disse...

Camaradas,
Os acordos estabelecidos entre o governo português e o PAIGC, aquando da retirada de Portugal do território da Guné-Bissau, para ter efectivo controle no que à protecção dos guineos que combateram por Portugal, só teria sido possível se tivesse acontecido a permanência de tropa portuguesa, ou tropa sob a égide a da ONU. No primeiro caso, não me parece que tivesse sido possível qualquer acordo. No segundo caso não me parece que tenha hgavido vontade.
A verdade, é que tomada a decisão de retirar, naquele tempo, com a catadupa de acontecimentos em Portugal, quem quereria ali permanecer? E como se comportaria a comunidade internacional perante essa ideia?
Mas factos, são factos. Assim, não me parece razoável atribuir as maiores culpas aos portugueses pelos julgamentos e castigos aplicados. Foi como uma guerra civil.
Ao Cherno peço que neste género de considerações, apresente uma argumentação cuidada. Por exemplo, reconhecer que os movimentos emancipalistas ainda não estavam preparados para alcançar a independência e governar com mais sucesso do que anteriormente, e em ambiente isento de racismos. Apontar as medidas necessárias a Portugal para ter evitado os acontecimentos posteriores.
Pessoalmente, acho que a retirada para o puto com toda a pressa, foi má para as sociedades emergentes.
Mas os movimentos, e há inúmeros testemunhos jornalísticos, estavam cheios de pressa para atingir o poder. E não faz sentido (nesta matéria) pensar em acordos diferentes para cada nova nacionalidade.
Abraços fraternos
J.Dinis