sábado, 1 de agosto de 2009

Guiné 63/74 - P4763: Histórias do Jero (José Eduardo Oliveira) (3): O fado do 49! O Serafim, da CCAÇ 675, Binta 1964/66


1. O nosso Camarada José Eduardo Reis de Oliveira foi Fur Mil da CCAÇ 675 (Binta, 1964/65), é jornalista profissional, conhecido no seu meio por “JERO”, e enviou-nos uma mensagem, com data de 30JUL2009, e o título:


O Fado do 49!

Camaradas,

Se as conversas são como as cerejas … as estórias da tropa são com as cerejeiras! Não sei se já alguém escreveu isto alguma vez mas julgamos que nos fazemos entender…

Lembrei-me do 49 quando há dias arrumava uns papéis velhos em casa.

Hesitei se devia ocultar o nome verdadeiro do protagonista desta estória real. Achei que não o devia fazer. O “49” era um homem a sério e nada do que vou contar é ofensivo da sua memória.

Num papel velho que encontrei um “apontamento” dizia respeito às punições da CCaç 675 no ano de 1964,na Guiné:
“Serafim Silva Santos, 1º Cabo Condutor Auto Rádio Telegrafista nº. 2949/64, punido com 5 (cinco) dias de detenção porque no dia 28DEZ64, quando conduzia uma viatura não ter tomado as devidas precauções e cuidados, provocando com o seu desleixo o queimar-se a junta da cabeça do motor, por falta de água no radiador. Não é mais severamente punido atendendo ao seu bom comportamento anterior. Infringiu os deveres 5º. e 9º. do Artº. 4º. do R.D.M.”.

Acabámos a comissão na Guiné em Maio de 1966 e, depois de fazer o espólio no Quartel em Évora, fomos para a vida civil. Os anos passaram e nas reuniões anuais dos ex-combatentes o Serafim nunca mais deu sinais da vida.

Em 1997 – 31 anos depois de termos regressado da Guiné - realizou-se mais um encontro dos antigos combatentes da Companhia de Caçadores 675. Desta vez o encontro foi na zona de Pombal para comodidade dos “velhotes” residentes no Norte do País.

Repetiram-se os abraços e velhas piadas dos anos anteriores e de repente aparece uma “cara nova”.


- Oh Moreira, quem é este senhor. Era da Companhia?

- Oh Oliveira, estás a ficar velho! Este gajo é o Serafim, o Radiotelegrafista!

- G’anda Serafim não te via há mais de 30 anos. Desculpa lá mas nem te conhecia. Então o que é tens feito? Tens que cantar o “fado dos cagatórios”.

Ainda me lembra de um bocado da letra: “Sentadinho a ganhar massa nos cagatórios da praça”!

Seguiu-se a confusão habitual na arrumação da “malta” para o almoço da praxe e o Serafim ficou numa mesa perto da minha.

Fiquei de frente para ele e não era capaz de o deixar de fixar.

Trinta anos é de facto muito tempo e ali estava ele: magro, envelhecido, de cabelo branco e bigode “à Prince”, desdentado e com o rosto sulcado de rugas.

Do rapaz que eu tinha conhecido na Guiné já quase nada restava. Talvez só os olhos – intranquilos - e o ar de “reguila”, que era a sua imagem de marca na Companhia nos longínquos anos de 1964-66.

O 49, como era tratado ao tempo, chegou à Companhia uns meses depois de estarmos instalados no Norte da Guiné. Era um rapaz metido consigo mas tinha uma “pinta” que não enganava. A vida já tinha passado por ele com dureza e deixara marcas que eram visíveis no “reguila” que se adivinhava em todos os seus gestos.

Jogava bem a bola, cantava o fado e fazia o que lhe competia sem margem para reparos. A excepção foi aquele azar na cabeça do motor…

Mas ele era “grande” era quando cantava o fado!

Quando a malta se juntava à noite e o 49 arrancava o seu fado, com sotaque do Porto, era sempre um êxito: “Sentadinho a ganhar massa nos cagatórios da praça”.

Que raio de letra! Passados aqueles anos todos nunca mais me esqueci do fado, do 49 e da sua maneira pungente de cantar aquela letra. Parecia que aquilo lhe vinha das entranhas. Da alma. Parecia quase pessoal e nos arquivos da minha memória aquele fado tinha ficado mesmo gravado.

E trinta anos depois ali estava ele: magro, envelhecido, de cabelo branco e bigode “à Prince”, desdentado e com o rosto sulcado de rugas.

O Moreira, um dos meus amigos dilectos da Companhia, estava por perto e perguntei-lhe:

- Eh pá, onde foste descobrir este tipo?

- O gajo mora em Gaia e trabalha numa fábrica de molduras. Ganha mal, coitado, e ainda trabalha aos fins-de-semana como pedreiro para ganhar mais algum. E nesta “fase do campeonato” mete-se um bocado nos copos…para esquecer as agruras da vida!

Mais malta cumprimentava o Serafim e incitava-o a cantar o fado dos cagatórios”! Afinal não era só eu que recordava o “tal fado “ da Guiné de 1964!

Na minha mesa estava o ex-Alferes Mendonça com quem eu ia trocando impressões de quem parecia bem e mal na vida, tendo em atenção o aspecto exterior.

Chegou a vez de falar no 49, o Serafim, que depois do regresso em 1966 tinha vindo pela primeira vez a um almoço da Companhia.

- Oh Mendonça, aquele rapaz tem mesmo cara de passar uma vida difícil!

- Oh Oliveira, você não sabe a vida daquele tipo?!

- Eh pá, não sei nada. Nunca mais o vi em trinta anos.

E o ex-Alferes Mendonça, que era Comandante de Companhia nas ausências do Capitão Tomé Pinto, contou-me que, por ter acesso à “papelada” de todos os elementos da Companhia, sabia alguma coisa da vida do Serafim. O 49 tinha passado a sua infância em casas de correcção e estava detido na prisão-escola de Leiria quando foi chamado para a inspecção.

- Oh Oliveira, ele praticamente veio da prisão para a Companhia. Está claro que, por recomendação do Capitão, este facto foi ocultado e, embora fosse alvo de discreta vigilância, nunca causou problemas. E sabe o que é que o pai dele fazia? Era guarda das “sentinas” de um dos mais velhos cafés da “Baixa” do Porto!

Parei de comer a minha sobremesa e recuando no tempo descobri finalmente “as raízes” do fado do 49: Sentadinho a ganhar massa nos cagatórios…Nessa tarde de confraternização estive várias vezes junto do 49 mas já não lhe voltei a pedir para cantar o seu fado…

No ano seguinte voltou a aparecer na festa da Companhia. Desta vez foi no Porto Alto, junto a Vila Franca de Xira.


Estava ainda mais magro e mais envelhecido Mas de bigode “à Prince”, e com o seu “ar reguila” de sempre. Já não se dava ao trabalho de esconder a sua dependência ”pelos copos”. Já poucas coisas o agarravam à vida.


Foi a última festa da Companhia a que o 49 veio. Morreu poucos meses depois.

Ao longo de uma existência complicada como teve o Serafim, os “5 dias de detenção “ por ter deixado queimar a junta da cabeça do motor em 1964” devem-lhe cá ter dado “um abalo ao pífaro” (1)!

A “malta” da minha Companhia da Guiné não mais esquecerá o Serafim e o seu fado: “Sentadinho a ganhar massa…”!

É verdade que é “um património em circuito fechado” mas tem “apenas”o valor da vida autêntica, que nos marca enquanto por cá andamos.

Felizmente que na vida a sério há “patrimónios” bem mais importantes dos que os dos “realities shows” da televisão dos nossos dias!


Digo eu!

Abraço,
JERO
Fur Mil da CCAÇ 675


Legenda:


(1) - Esta expressão era muito usada no calão militar e o seu significado é bem explícito…


Fotos: José Eduardo Oliveira (2009). Direitos reservados.
____________
Nota de M.R.:

Vd. último poste da série em:

1 comentário:

MANUEL MAIA disse...

CARO JOSÉ OLIVEIRA(JERO),

AO LER ESTE TEU TEXTO SOBRE O "49"
E A SUA VIDA ATRIBULADA,PENSO CADA VEZ MAIS NOS MUITOS "49" QUE TODOS NÓS UM DIA CONHECEMOS,CARREGADOS DE PROBLEMAS,COM EVIDENTES SINAIS TRAUMÁTICOS GERADOS PELA GUERRA( QUE ATÉ QUEM NÃO É DA ÁREA DA SAÚDE SE APERCEBE DELES FÁCILMENTE...) E QUE SE VÃO DESPEDINDO DA VIDA, BEM CEDO, APÓS O MERGULHO NO ALOOL COMO FORMA DE AFUGENTAR OS FANTASMAS TRAZIDOS DE ÁFRICA...

LAMENTÁVELMENTE, A INDIFERENÇA DA SOCIEDADE É NÓDOA QUE DETERGENTE NENHUM PODERÁ RETIRAR...

ESCANDALOSAMENTE,O DESPREZO EVIDENCIADO PELOS RESPONSÁVEIS MILITARES,QUE SE SERVIRAM DOS MUITOS "49" PARA "GANHAREM" AS SUAS MEDALHAS E A RÁPIDA ASCENSÃO
NA CADEIA HIERÁRQUICA,É A "PROVA PROVADA",PARA QUEM TIVESSE DÚVIDAS,
DE QUE AS FORÇAS ARMADAS NÃO SÃO NENHUMA ESCOLA DE VIRTUDES,UMA VEZ QUE PARA AS CHEFIAS ESTE TIPO DE COMPORTAMENTO ABERRANTE, DE ABANDONO DOS SEUS HOMENS, É A SUA PRÁXIS...

VERGONHOSAMENTE,O PODER POLÍTICO SAÍDO DA GOLPADA MILITAR,ESPERA PACIENTEMENTE A MORTE DO ULTIMO COMBATENTE DO ULTRAMAR,PARA DEPOIS ENSAIAR AS DEMAGÓGICAS E CARICATAS "HOMENAGENS" COM COROA DE FLORES,MISSA, E DISCURSO NOJENTO,SOBRE OS "HERÓIS"...

ESTRANHAMENTE,TEMOS VINDO A SER CÚMPLICES DO DESAFORO QUE CONSTITUI O DESRESPEITO CONTÍNUO PELA PESSOA HUMANA, COMETIDO PELAS ENTIDADES REFERIDAS ATRÁS...

É HORA DE EXIGIRMOS RESPONSABILIDADES A QUEM AS TEM!

TEMOS ESTE ESPAÇO COMUM ONDE PODEMOS FALAR SOBRE A PROBLEMÁTICA E ASSENTAR ATITUDES COLECTIVAS CONTRA OS POLÍTICOS.
AS SUGESTÕES SÃO MUITAS.
A) BOICOTE A TODAS AS ELEIÇÕES.

B)PROMOÇÃO DE CONCENTRAÇÕES REGIONAIS PARA GANHAR FORÇA E MAIS TARDE FAZÊ-LAS A NÍVEL NACIONAL(PORQUE NÃO NOS 10 DE JUNHO...) ONDE EXIGIREMOS RESPEITO,ACESSO AOS HOSPITAIS MILITARES E MEDICAÇÃO GRATUITA,PARA ALÉM DO ACESSO À REFORMA AOS SESSENTA ANOS SEM PUNIÇÕES,UMA VEZ QUE FOMOS ALTAMENTE PUNIDOS COM A GUERRA.

C)CRIAÇÃO DE UM PARTIDO POLÍTICO DOS EX-COMBATENTES PARA FAZER VALER OS NOSSOS DIREITOS.
AINDA SOMOS UNS MILHARES LARGOS E COM OS VOTOS DA FAMÍLIA DIRECTA SERÍAMOS A MAIOR FORÇA NACIONAL.
PENSEMOS NISTO! DISCUTAMOS O ASSUNTO!

UM ABRAÇO.

MANUEL MAIA