quinta-feira, 23 de julho de 2009

Guiné 63/74 - P4726: In Memoriam (28): Saudades da nossa Locas (1976-2009): com a dor e o riso também se faz o luto... (Cristina Allen)

Lisboa > No eléctrico amarelo da Carris > Uma das últimas fotos da Maria da Glória Allen Revez Beja dos Santos (1976-2009), de chez les vivants... (*)

Foto: Cristina Allen (2009). Direitos reservados



1. Mensagens do nosso camarada Mário Beja Santos:

17 de Julho:

Meu caro Luís, oxalá não se tenha cometido nenhuma besteira no texto que acabamos de digitar. 2ª feira envio-te a fotografia que a Cristina sugere que acompanhe este agradecimento a todos os que nos confortaram. Não te esqueças do trabalho da Glória, de que ela andava tão orgulhosa. Recebe um abraço de profunda amizade e gratidão, Mário

20 de Julho:

Meu caro Luís, a Cristina pede-te a gentileza, quando lhe publicares a notícia que te enviei na passada 6ª feira que ponhas esta imagem que junto, era o lindo sorriso da nossa filha, foi seguramente uma das últimas fotografias. Tenho uma novidade para te dar: vou oferecer ao blogue, tão cedo quanto possível, as minhas recordações anotadas da minha missão na Guiné-Bissau, em 1990 e 1991. Não será para já, primeiro quero acabar a Mulher Grande e depois voltaremos à Guiné, onde procurei dar o meu melhor numa possível política de consumidores, tudo parecia ir arrancar bem, tudo falhou, com grande mágoa minha. Recebe um abraço do Mário



2. IN MEMORIAM (28) (**) > DE DOR, GRATIDÃO, ESTÓRIAS, RECADOS E RISOS SE FAZ LUTO
por Cristina Allen



Amigas e Amigos,

Pensara despedir-me de outra forma deste blogue (***). Há, numa gaveta, dois textos inacabados, um risonho, outro mais sério. Deixá-los estar na gaveta, até um dia.

No dia 26 de Janeiro deste ano atribulado, acordando de uma intervenção cirúrgica, escrevera, no tabuleiro do pequeno-almoço, uns modestos versinhos a Bissau, em modos de despedida. Posteriormente lhes dei alguma forma, já que os efeitos da anestesia me tinham obliterado sílabas. Bastava, pensei, Adeus Bissau!

Mas fui-vos acompanhado no blogue e a súbita, escancarada morte de Nino Vieira me aguçou a curiosidade. Que diriam vocês?

Eram longos – e muitos – os vossos comentários. Perdoai a minha crítica mas, se foi grande e justo o vosso louvor das capacidades de estratégia militar do Presidente assassinado, alguns de vós reflectiram uma quase irmandade de guerreiros adversos afundados no choro, o que me deixou perplexa.

É que vira na televisão a imagem de um preto gordo (assim ficara ele?!), com um anel imenso, um desmesurado “N”, em relevo, desafiando, desatento, a desgraça do seu povo, tirano e corrupto (dizem), o seu ego avassalador a trair, por longos anos, o ideário de Amílcar Cabral, que deveria ter cumprido. Não só ele o fez, mas ele mais que outros.

Conheço, no mínimo, duas vítimas suas e de muitas outras sei. “Paz à sua alma”, pensei. Quem era eu para o julgar? Também meu ego não é dos mais pequenos e sou a mulher dos 24 anéis, alguns bem desmesurados.

Pensei em enviar-vos o seco comentário de Mário Soares, de quem discordo tantas vezes: “Viveu na violência, morreu na violência”. Mas dei de ombros, não fosse despertar animosidades ideológicas, e rumei aos escritos aparentemente leves do Jorge Cabral, já que a seriedade não precisa de ser carrancuda... Adiante!

Na missa do 7º dia do passamento da minha filha e do vosso camarada Beja Santos, foi um consolo receber, cá fora, tantos abraços e gente cuja escrita conhecia, mas não rosto. A solidariedade e compaixão são, no meu sentir, das mais belas virtudes que, por dentro, nos aquecem.

Ao ver-vos ali, um pensamento súbito me acudiu – estes regressaram vivos; outros não. E um lamento de Adriano: “(...) nunca mais acenderei no meu o teu cigarro (...)”.

É que assistira, há 40 anos e alguns escassos meses, à missa de corpo ausente do melhor amigo do Mário, que cuidou de mim até partir para Moçambique, como alferes miliciano, [o Carlos Sampaio, na foto à esquerda].

Fora-se, com a estranha convicção de que lá morreria, e, terrível augúrio, a ideia de que nunca mais nos veríamos.

Tudo isso aconteceu. Uma mina (ter-se-ia ele adiantado ao picador?) desmantelou o seu delgado corpo, instante de beleza masculina, fez esvoaçar, nos ares de Cabo Delgado, os sonhos da poesia, da filosofia, de uma renovada livraria. Parou para sempre a sua mão que, à espátula, pintava texturas e tonalidades de azul. Acabou-se, para sempre, a voz irreverente do seu fado vadio. Veio de férias, ainda, e de tantos encontros combinados ao telefone, nenhum aconteceu. Soube que destruíra toda a sua pintura, restando apenas uma tela que eu guardava no meu quarto.

Outra citação poética me acode: ”(...) jaz morto e arrefece / o menino de sua mãe (...)” [, do poeta Fernando Pessoa].

Jazeu morto e não tiveram sua mãe, e irmãs, aquela necessária e crua certeza dolorosa de afagar, beijar a sua gélida face, de enovelar nos dedos os seus belíssimos de ouro quente.

Nós, pais e irmã, mais venturosos fomos no cumprimento inexorável fio de dor, caminho aberto ao luto que a benigna natureza manda. Não afagámos, na imaginação e nas memórias, a dureza da notícia, mas um corpo, carne da nossa carne, sangue do nosso sangue, num frio e sempre eterno sono, rasando o infinito.

Falo-vos dessa missa terrível do corpo ausente, porque ela ocorreu na véspera da celebração do contrato civil, por procuração, das minhas núpcias com o pai das minhas filhas. A minha mãe convidara para o almoço escassos parentes e amigos. Veio o notário.

Mas arrastara-me penosamente da cama e penosamente me cuidara, tremendo de frio e em lágrimas banhada. E, em lágrimas, fiz o necessário. Naquele mudo pranto, já nem sequer as limpava, estranha noiva!

O Mário tinha telefonado, contente, e eu só lhe perguntava, ansiosa, se recebera a minha carta. Receava estragar-lhe a festa que, em Bambadinca, se fazia. Não sei se disse ou não, mas ele sabe. Sei apenas que a carta cautelosa chegou num outro dia.

Fui ao blogue, no passado fim-de-semana.

As condolências, a vossa poesia, o belíssimo comentário da liturgia desta outra missa, a vossa capacidade de estar perto e reconfortar foram um benfazejo lenitivo. Ser gregário compensa e salva-nos, por vezes, do mais aterrador solipsismo em que a alma se estilhaça.


E, inesperada e súbita, estala no blogue uma violenta briga de homens que a tecnologia temperou. Mas a ira estava lá, senti-a. E também eu fui contagiada. Mas passou.

A mente vagueou, rápida. Quem seria o “Pirata Vermelho” que teria escrito, a ponto de ser censurado? Conjecturas...Talvez tivesse achado excessivo tantos escritos, por causa de uma rapariga morta. Quiçá antigos diferendos, ideológicos ou pessoais, alguma rejeição das emoções à solta. E lá descobri, por fim, um nome: Salvador. Nome belíssimo.

É chegado o momento dos recados.

É exactamente para o Salvador que ora escrevo:

“Sabe que também a minha filha gerava a controvérsia? Em tempos em que era muito esbelta e estranhamente bela, por causa da sua exuberância e pressa de viver, andaram à briga forte e feia (Ria-se, ando agora a tentar ajudar no concerto de corações partidos...). O Salvador contribuiu para evocar, em mim, um quase divertido, mas arriscado cenário, que faz pano de fundo às suas estranhas “epifanias”.

Por isso, do coração lhe perdoo esta “pedrada no charco” por dentro do meu luto. Faltava neste doloroso puzzle uma peça solta. E o Salvador colocou-a ou fê-la surgir na mansidão latente. Não fez de “Pirata”, fez de Peter Pan!

Aceite, por favor, um conselho de uma mulher pouco sábia e, também ela, controversa – não se esconda nunca, pois não é preciso. E, com esse belo nome que lhe deram, salve-se, por si próprio, de si próprio. Corre o risco de ser menos amado, ou não ser tão generosamente reconfortado em suas penas, se e quando as tiver, pois jamais se sabe quando elas chegam.

Outro recado para o Luís Graça, desta vez.

Sabe que, na minha família há uma tradição em pompas fúnebres e momentos lutuosos, de gafes, informações corrigidas, risadas abafadas? Por algumas respondo eu, atrapalhada. Por outras, não. Carinhosamente, aqui vão os meus reparos e informes.

- A minha filha chamava-se Maria da Glória Allen Revez Beja dos Santos (deve estar a rir-se desta troca de apelidos!).

- A senhora que leu aquela curta e comovente passagem e não vos desejou, por ora, dar o texto, é alentejana, de Grândola, a meio caminho entre esta sua amiga e o Torcato. Faz voluntariado nos hospitais e até em favelas brasileiras. Tem uma voz lindíssima, foi – e talvez ainda seja – solista no coro da Igreja do Campo Grande. Chama-se Maria da Graça Espada Gersão Lapa.

- O Abudu Soncó não é neto do régulo Malã mas o seu filho “mais menino”. A poligamia é uma coisa complicada, quando se trata de genealogias. Era professor, sonhou dar melhor futuro aos filhos, trabalhou duro na construção civil, já sofreu dois enfartes. Mas continua a sonhar, o filho mais velho vai estudar em Argel, em breve.

- Por favor, não se arme em casamenteiro! A Sofia Arede, realizadora da SIC, na “Grande Reportagem” e jornalista, e o Pedro Calhau, igualmente jornalista, não são casados. Talvez um deles quisesse, mas o outro não (Risadas dos amigos e também minhas! Quem sabe se a picaresca Glória, amiga de ambos, não estará, também, a rir-se!).

A todas e a todos deixo um abraço de agradecimento e uma charada em italiano medieval, mesmo para os não crentes:

“(...) Laudato si, mi Signore, per sora nostra
Morte corporale, da la quale nullo ome vivente
po´ scampare. Guai (1) a quelli che morranero
ne le peccata mortali! Beati quelli che troverà
ne le tue sanctissime voluntati,
ca la morte seconda no li farrá male.”



S. Francisco de Assis, “Cantico delle Creature”
Versão original (*****)


Até breve! Cristina Allen

(1) ”Guai” – guiai. S. Francisco não foi Doutor da Igreja. Não havia nele qualquer traço de maniqueísmo teológico da negra Idade Média. Como conversará ele, um dia, com Herr Ratzinger?


2. Comentário de L.G.:

Obrigado, Cristina, pelo teu soberbo texto, pela ternura contida com que falas de nós, pela grande dor que mal consegues conter ao evocar a tua Locas, pela altiva nobreza com que desancas o ex-Pirata Vermelho que seguramente nunca foi camarada da Guiné nem sabe o que é a compaixão, enfim, pela fina ironia com que elencas (e brincas com) as nossas gafes, a começar pela troca de apelidos da tua Locas... Já fiz as correcções que a leitura do teu texto me sugeriu... As nossas desculpas... Espero que a nossa blogoterapia te ajude, de algum modo, a superar este tremendo vazio que te deixou, a ti, ao Mário, à Joana, aos demais familiares e amiogos, a perda da Locas. Um chicoração do Luís Graça.


____________

Notas de L.G.:

(*) Vd. postes anteriores:

6 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4644: In Memoriam (24): Maria da Glória Allen Revez Beja dos Santos: "Morte, onde está a tua vitória ?" (Mário Beja Santos / Luís Graça)


6 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4645: In Memoriam (25): Maria da Glória Allen Revez Beja dos Santos (1976-2009): Missa do 7º dia, 4ª feira, 19h, Igreja do Campo Grande

9 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4660: In Memoriam (26): Fazendo o luto pela Maria da Glória e agradecendo a todos a solidariedade (Mário Beja Santos)

10 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4664: Blogoterapia (116): Os filhos dos nossos camaradas, nossos filhos são (José Martins)

(**) 14 de Julho de 2009 > Guiné 63/74 - P4685: In Memoriam (27): Recordando o Major Raul Passos Ramos (José Borrego)

(***) Postes da Cristina Allen, que é membro da nossa Tabanca Grande, publicados no nosso blogue:

9 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3713: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (1): Just married...

8 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3850: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (2): Quarto, precisa-se, por favor!

19 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3913: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (3): Quanta chuva, Mário ?

24 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3933: Os meus 53 dias de brasa em Bissau (Cristina Allen) (4): Cenas, pouco edificantes, de caserna, que não contarei...

24 de Dezembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3667: As Nossas Mulheres (2): De Bissau a Lisboa, com amor (Cristina Allen)

(****) Citação, julgo eu, retirada de:

Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar (1903-1987), romance publicado pela primeira vez em França em 1951.

(*****) Tentativa de tradução:

Louvado sejas, meu Senhor, por nossa irmã,
a morte terrena [corporal], da qual nenhum homem vivo
pode escapar. Guiai [ou ai d'] aqueles que morrerem
em pecado mortal! Bem-aventurados aqueles
que seguirem as tuas santíssimas vontades
pois a segunda morte não lhes fará mal
[ou não morrerão uma segunda vez].


Francisco de Assis (c.1181-1226), Cântico das Criaturas

2 comentários:

António Matos disse...

Exmª Senhora D.Cristina Allen
Permita-me minha Senhora, dirigir-lhe a palavra quando não nos une outro laço que não seja aquele que nos põe combalidos perante a enormidade das tragédias e que dá pelo nome de solidariedade.
Não é minha intenção dificultar a cicatrização da ferida que se lhe abriu no coração e na alma com a partida da sua Locas mas antes apelar a que ouça as minhas palavras como tentativa modestíssima da sua sublimação.
Ao ler o seu texto não fiquei imune à profundidade das suas palavras.
Eu que fui dos que regressei vivo, dos que não dirigi palavras suaves ao Nino dos que gero controvérsias.
Mas permita-me, exmª Senhora, que não consiga, ainda, aceitar um qualquer pirata que se acoite atrás do anonimato para, à semelhança da guerra, emboscar o inimigo sem ser visto e tentar fugir sem deixar rasto.
Aprecio a sua grandeza e generosidade.
Com os meus respeitos,
António Matos

Anónimo disse...

D. Cristina,
Que a cada dia da sua vida, seja capaz de ultrapassar com coragem a enorme dor que é sentir a saudade de alguém agora ausente mas sempre presente no nosso ser.
Cordiais saudações
Filomena