sexta-feira, 26 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4587: Vindimas e Vindimados (José Brás) (4): De bicicleta na guerra

1. Quarta história da série Vindimas e Vindimados do nosso camarada José Brás, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68, baseada no seu livro "Vindimas no Capim" (*), enviada na mensagem de 18 de Junho de 2009:

Carlos
saiu um... entrou outro
o poder é teu
Sábado lá estaremos
e mais um abraço
José Brás


DE BICICLETA NA GUERRA

- Alferes Ávila, prepare um grupo para ir ao Xitole buscar um médico, temos aí um civil acidentado, com a cara em muito mau estado, escureceu e ninguém virá por ele de Bissau senão de manhã, o Furriel enfermeiro confessa-se incapaz de fazer mais pelo homem e o diabo pode arranjar um infecção grave antes da evacuação.

Era o Capitão Loja, sempre preocupado com os habitantes da aldeia, não por qualquer relação com a lenga-lenga oficial da psico mas por genuína e pessoal humanidade.

- Capitão, sabe onde é que o meu pelotão passou a noite, não me parece que estejam descansados para fazer agora cem quilómetros, toda a noite numa estrada como esta...

- É claro. E eu deixo morrer o homem!

- Não... porra, Capitão, se for necessário até lá vou eu. Sozinho. Sozinho com um motorista.

- Deixe-se de bravatas, alferes, arranje aí uma secção reforçada e um furriel para segurar aquilo. O da ferrugem já tem uma GMC e um motorista.

Conversa entre dois ilhéus, um madeirense, outro açoriano, oficiais milicianos do exército português numa companhia em quadrícula na terra Fula de Aldeia Formosa, a África mais próxima que o império ia tocando como podia, teimando, teimando, prolongando os quinhentos anos até espremer completamente o limão, queimando os dedos de tanta e tão longa acidez.

Os dois insulares que mal vos apresentei ainda, aqui engalfinhados de palavra, cada um com suas boas razões, não estavam tão longe como o mar que lhes separa as ilhas na visão sobre aquilo, sobre a posição dos manda-chuva do regime e sobre a inutilidade da sua própria acção nas emboscadas que faziam e que sofriam, nos assaltos a aldeias de gente pobre e espantada, nas matas a norte de Nhacra, nas picadas, nas estradas de Buba, nos bairros de lata onde viviam fora da sede da companhia, Cumbijã, Chamarra, e este nem bairro de lata era mas acampamento de ciganos, coisa que fisicamente mais parecia, e que parecia o Furriel Pixa Negra, que mais pareciam os soldados da sua secção, ocupantes do lugar, chupando calores e mosquitos naquela anarquia besuntona, dormindo como os locais, em escassas casas de adobe e capim, ou ainda pior, pela precariedade da estadia.

Não generalizemos, entretanto, mais do que convém, porque importa esclarecer, tratando-se de gente, as diferenças culturais de cada um, o olhar que, coincidindo na generalidade, se separava no específico da estrutura humana, Capitão um e doutor em humanidades, alinhado já com oposições, escrevendo em jornais do contra, agarrado e ali colocado a comandar cento e tal homens contra outros homens de quem não discordava, outro, Alferes generoso e espalha-brasas, estranhando somente a necessidade de violência, recusando-a mesmo sem maiores profundezas que o desabafo.

- Tá bem, Capitão! Vou ver se engato um desses Furriéis que saem menos a ver se algum está disposto a fazer o frete!.

- Okey, concordo, mas apresse-se com o resto porque em relação a Furriel, estou a vê-lo mesmo daqui e ele está a ouvir a conversa. Já sabe o que lhe calha esta noite.

Cada um foi à sua e a sua do Capitão era eu, salvo seja, naquela emergência. No fito dele estava escolhida a vítima para a noitada.

- Ouviu a conversa, Furriel? Sabe já o que se passa com o civil. Tem alguma coisa a opor?

- Não, nada, até gosto de ir ao Xitole. Pena é que seja de noite. Dê-me licença, apenas de escolher dois ou três dos soldados que irão comigo e que obtenha acordo deles e dos seus Furriéis!

E com esta conversa entre o Loja e eu, acabam os diálogos que só entraram por melhor servirem o esclarecimento da situação, estando já, nesta altura, a impedir a circulação prática das ordens dadas e recebidas, que na tropa e na guerra nem carecem de explicações mas de cumprimento.

Tudo a andar, sete ou oito soldados, dez, se não me engano, GMC, mensagem para o Xitole a confirmar a ida, e lá partimos à aventura.

A estrada nem estava mal e fazia-se até muito bem, tirando um ou dois atravessamentos de linhas de água, sobre pontes improvisadas, um tronco de cibo para cada rodado e olhinhos do condutor, sobretudo ali no escuro da noite.
Às duas por três, a mais de meio caminho para Contabane, avaria a GMC.

- Porra! E agora?

- Bem malta vamos falar baixo estamos mais perto de Contabane e o Sambel tem uma bicicleta que nos empresta para um de nós poder voltar na gáspea à Aldeia trazer outra viatura nesta escuridão Furriel de bicicleta é quase impossível e Contabane está em auto-defesa ainda algum que lá vá leva um tiro a estrada é direita e á vista do posto de sentinela deste lado não tem árvores nem nada a Contabane vou eu com um soldado os outros vão armar emboscada fora da estrada a dez metros da viatura olhos e ouvidos abertos então e quando ouvirmos o barulho da bicicleta a noite não está escura tenham cuidado que aqui ninguém sabe imitar o pio de pássaros nem isto é um filme quem é que vai comigo vou eu e que seja o que deus quiser.

Posta aqui da maneira que lêem, esta mancha de palavras mais parece conversa de doidos ou então relato de analfabeto ainda hoje enervado com a situação de então.

Mas o que é que vocês querem? Eu não tinha já avisado que não continuaríamos pôr aqui a dialogar os protagonistas da crónica, Capitão isto, Alferes aquilo, Furriel isto e aquilo, como se estivessem em palco de teatro, deixando as falas na cadência ensaiada e nos lugares marcados para parecer real, o que real era já de si próprio?
Disse ou não disse?
Agora, desunhem-se, separem vocês as falas, este disse isto e ou outro coisa diferente, e tal.

O trabalho da construção das imagens que devem saltar de um texto, seja ele história, estória, poema, ficção narrativa ou mesmo relatório, não deve ser apenas do emissor. Quem lê, sobretudo vocês que chuparam com muitos trambolhões parecidos, conhecem o chão e o ar quente que ali se respira, o RDM, os salamaleques de militares ainda que mais aligeirados ali no mato do Sul da Guiné, deve também fazer o seu esforço no recordar da vida ali, no momento e na situação e... imaginar o resto.

Separem vocês as falas, repito, sabendo que umas são minhas e são outras dos camaradas que haviam embarcado no chaveco em Aldeia Formosa com rumo a Xitole e a missão de trazer médico, acredita-se, mais apto que enfermeiro, ainda que este o fosse e dos bons.

O certo é que nos fomos, eu na frente, olhos e ouvidos alerta, tentando agarrar os sons da mata e prevenir surpresas, o soldado caminhando atrás, rezando, creio, forma talvez mais eficaz de nos salvar de maus encontros, se calha ter deus andado por ali naquela noite.

Fizemos dois ou três quilómetros à pata. Na recta que antecede a tosca entrada na aldeia, parece que estou agora a ver o chão arenoso e solto do caminho, o soldado quase implorava para pararmos na crença que do outro lado atirariam assim que se apercebessem de presença humana e caminhante. Havíamos combinado que ao primeiro ruído de metal metendo bala na câmara, o nosso destino imediato, ainda antes do tiro, seria o chão. Outro remédio não teríamos senão gritar quem éramos e esperar que de lá entendessem e acreditassem.

Andando, andando cautelosamente e com os sentidos todos à flor-da-pele, entrámos na aldeia como quem não quer a coisa e sem oposição de sentinela, pedidos de BI ou outro elemento identificador, e nem o ladrar da canzoada trouxe gente alarmada ao nosso encontro.

Buscámos a casa de Sambel, exaltámos quatro mulheres, e outras que se foram chegando ao grupo, explicámos ao que vínhamos e o soldado lá se foi no escuro da noite, agora fazendo o caminho ao inverso e só.

O Sambel destacou dois milícias dos dele para que eu não andasse abandonado por aqueles ermos e ganhei de novo a GMC e o pessoal que lá havia ficado.
Tudo corria sobre rodas, quer dizer, se despachava como esperado.

Mais de duas horas depois vislumbrámos as luzes da outra viatura que vinha substituir a avariada e que trazia outro Furriel e mais dois soldados para continuarem a viagem interrompida, devendo eu retornar à Aldeia.

Aceitei os soldados e recusei a substituição. Já agora queria ir até ao fim.

Passámos de novo Contabane, agora a cavalo, como se diz aqui no Alentejo, mesmo quando o cavalo não passa de tratori, chegámos ao Xitole noite alta, voltámos com o médico para Aldeia Formosa e nem eu já sei se o civil se salvou ou não e como evoluiu a coisa com ele, evacuado de manhã de heli para Bissau.

Por volta da hora do almoço, já retemperado, procurei o soldado da bicicleta e encontrei-o bem abatido do medo do que fizera durante a noite, pensei eu.
Pensei mal. Ou por outra, medo o homem deve ter tido toda a viagem, pedalando e vendo fantasmas em cada sobra de árvore.
E isso nem é de admirar se pensarem bem, se se pensarem vocês no lugar do soldado, alta noite na pasteleira, naquele lugar da Guiné, desejando ardentemente o fim da estrada.
Mas agora o problema do soldado era outro.

- Óh meu Furriel! Agora quem é que paga a bicicleta ao Sambel?

- Como assim? Pagar a bicicleta porquê?

- É que aí a uns dois quilómetros da aldeia, de repente, no escuro atravessou-se-me um bicho grande na frente, bati contra barriga do gajo, caí e ele fugiu

Eu já não aguentava o riso na imagem ali criada com a maior das simplicidades e o soldado olhava-me atrapalhado com o desrespeito.

- Diga-me, quem é que paga? - repetiu.

- Já falaste ao Furriel da tua secção?

Abanou a cabeça na negativa e esperou que lhe desse uma solução para o problema bicudo.

- Óh pá! Pensando bem, o melhor a fazer, é ir à procura do bicho. Talvez que ele acabe por pagar o prejuízo e é bem feito para não andar aí a atravessar a estrada a horas que são de estar na cama. Assim, na próxima, pelo menos, olha antes de atravessar, não vá aparecer outro branco maluco montado em bicicleta de Régulo.

José Brás
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Vd. último poste da série de 18 de Junho de 2009 > Guiné 63/74 - P4551: Vindimas e Vindimados (José Brás) (3): O Santinhos da Artilharia

1 comentário:

Hélder Valério disse...

Zé Brás
Aquela parte do texto seguido, sem pontuação, é sem dúvida um belo teste à nossa capacidade de improvisar, imaginar as falas, os autores, até, se quisermos, podemos dar o "tom" que acharmos mais convenientes. Bem pensado!
Mas, aqui p'ra nós, não há por aí uma "inspiraçãozinha saramagiana"?
Fico a aguardar o próximo.
Um abraço
Hélder S.