sexta-feira, 19 de junho de 2009

Guiné 63/74 - P4553: Memórias do Chico, menino e moço (Cherno Baldé) (1): A primeira visão, aterradora, de um helicanhão

Publicamos hoje a primeira de cinco pequenas histórias que o Cherno Baldé, novo membro da nossa Tabanca Grande, nos enviou, com memórias da sua infância e adolescência :


1. A primeira visão de uma máquina voadora

por Cherno Baldé (**)

Foi naquela época que, na idade de 4 ou 5 anos, aconteceu a minha primeira visão de uma máquina voadora, que terá sido, provavelmente em meados de 1964, precisamente na altura em que estávamos em Samagaia, pouco tempo antes do ataque à zona que nos obrigaria a deixar a aldeia para nos refugiarmos em Cambajú, onde o meu pai já se encontrava a trabalhar alguns anos antes.

Estava com o meu irmão mais velho, Ibraima, a pastar as vacas nas imediações da aldeia, quando de repente ouvimos um ruído potente que vinha de cima. Quando nos virámos para ver, o avião já estava em cima das nossas cabeças, não dava para fugir, instintivamente, meti-me por baixo de umas raízes enormes de um poilão que estava por ali perto. Escondi-me o melhor que pude mas, foi por pouco tempo. 

Como o meu irmão estava a espreitar o avião e não lhe acontecia nada, sai também para ver. Na altura, os meus olhos viam com bastante nitidez e o avião voava a baixa altitude o que me permitiu ver, após uma breve inclinação deste, as pessoas sentadas, dois à frente e um na abertura lateral com as mãos apoiadas no que parecia ser uma metralhadora.

Esta visão ficou para sempre gravada na minha memória. Estranhamente, era também a visão da guerra que se alastrava pouco a pouco e que mudaria o cenário da vida, aparentemente pacífica, que levávamos até aí e mudaria, de forma inesperada, o caminho dos nossos destinos, criando, mais tarde, a incompatibilidade e a confusão entre o futuro que tínhamos vislumbrado na infância e ao qual queríamos dar continuidade e a nova realidade para onde nos tinha empurrado um destino diferente, passando pela escola portuguesa e enfrentando, assim, um futuro incerto e completamente desconhecido que nos levaria primeiro para Bafatá e mais tarde à capital, Bissau, onde funcionava o único liceu, na altura, e mais tarde para terras distantes e desconhecidas, no estrangeiro.

Uma vida feita de aventuras interessantes e também de sofrimentos, de conquistas e derrotas, de descobertas e imposições, de solidariedade e mercantilismo, sempre em ambientes de opressão cultural permanente e de recuo impossível, fruto da rápida transformação e globalização a que fomos sujeitos pela máquina de dominação Europeia e Ocidental.

Cherno Abdulai Baldé, Chico
Natural de Fajonquito,
Sector de Contuboel,
Região de Bafatá

__________

Notas de L.G. :

(*) Vd. poste de 18 de Junho de 2009 >Guiné 63/74 - P4550: Tabanca Grande (153): Cherno Baldé (n. 1960), rafeiro de Fajonquito, hoje quadro superior  em Bissau...

(**) Próximas histórias:

2. CAMBAJU: O primeiro contacto com o mundo exterior

3. Os homens brancos.

4. Ataque ao aquartelamento de Cambaju

5. FAJONQUITO: Terra da minha adolescência

3 comentários:

manuel maia disse...

Caro Cherno,

Deixa-me primeiro felicitar-te pela enorme força de vontade que manifestaste enfrentando todas as adversidades para conseguires singrar atingindo a meta de um curso superior.
Se aqui em Portugal se valoriza quem lá chega, essa manifestação de apreço terá que ser bem maior
para quem como tu sofreu as adversidades de uma guerra e fundamentalmente por ser nascido num local paupérrimo onde as
lacunas se sentiam, e sentem, a todos os níveis mormente as mais básicas como a saúde e alimentação.

Fala-se muito neste blog de heróis,a maior parte deles, imerecidamente.
Valorizam-se crápulas,gentalha abjecta para a qual nem adjectivação encontro de tão enojado que me sinto.

HERÓI FOSTE TU nessa panóplia de "guerras" que travaste, nessa luta pela vida encetada desde criança correndo atrás de um objectivo que felizmente conseguiste.

Folgo muito em saber que venceste os escolhos que a vida te colocou no caminho,remando mais que só,contra ventos e marés,numa demonstração de lucidez e de força de carácter só ao nível dos mais capazes.

No destacamento de Bissum,um dos vários locais por onde passei, havia gente como tu imbuida desse espirito de conquista,e que poderia ter acedido a cursos superiores tal a capacidade de inteligência que evidenciava.

A sorte não os bafejou,acabando por ser fuzilados pouco depois da independência,só porque tinham lidado de perto com brancos ,tal qual acontecera contigo na tua infância.
Recordo o Maurício, o Sileiba, e outros.

Passada que foi esta mais que merecida referência à tua capacidade de luta e resistência às adversidades, resta-me agradecer o prazer que me deste em ler-te.

Crê-me extremamente agradecido,satisfeito,e incumensuravelmente feliz por saber que para além da desgraça que as notícias da "nossa" Guiné
aportam, felizmente houve finais felizes como o teu.

um abraço

manuel maia

paulo santiago disse...

Ora aqui está uma história de um
"puto"...tantos que havia pelos
quartéis,e que escreve sem
ressentimentos e sem epopeias de ~
luta.
Estamos a ver a guerra pelos olhos
de um miúdo,que comeu restos do
rancho,e mais tarde...carne de
macaco,chegando à conclusão que o
importante era a escola,era o SABER
Paz e felicidades para ti Cherno

Carvalho disse...

Amigo Cherno: Vale bem mais um relato dos teus que mil dos nossos.Faltava-nos esse lado da história e deves imaginar como é, para nós, gratificante, saber pela tua boca o que fizemos de bem e de mal às maravilhosas crianças da Guiné.Estive em Mampatá Forreá entre 1972 e 1974. Voltei lá em Março deste ano. As crianças pareciam-me as mesmas.
Obrigado Cherno, escreve tudo o que te apetecer no nosso blog... nós precisamos de aprender muito sobre a história de uma terra que, estranhamente, é agora, depois da indepedência, mais nossa do que naqueles tempos.