quinta-feira, 21 de maio de 2009

Guiné 63/74 - P4395: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (4): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60 (III Parte)

1. Terceira parte da segunda história para a série "A Guerra vista de Bafatá", enviada pelo nosso camarada Fernando Gouveia, ex-Alf Mil Rec e Inf, Bafatá, 1968/70, no dia 9 de Maio de 2009:

A GUERRA VISTA DE BAFATÁ

4 - Um Alferes destacado (desterrado) em Madina Xaquili com um cano (só o cano) dum morteiro 60 - Parte 3.

Preâmbulo


Como tenho vindo a referir, na sequência do agravamento da situação no Cossé, fui destacado para Madina Xaquili, onde vivi uma experiência verdadeiramente inesquecível (*).

No meu Poste anterior – 4305, (3.º dia dessa minha experiência de contacto com a realidade da guerra) descrevi como, depois de recolher pelo caminho água que parecia cal de pintar, cheguei a Madina Xaquili onde constatei que o pelotão de Milícias, ali sediado, não dispunha de um único cartucho. Inacreditável…


Relato do 4.º dia – 15JUN69:

Havia que pôr todas as ideias em prática:

Para ultrapassar o problema da falta de contacto com a sede da Companhia, pedi ao João que mandasse um grupo à mata cortar dois paus para poder montar uma antena dipolo virada para Galomaro.

Dois homens foram desfazer, na zona desmatada, os enormes morros de baga-baga, óptimos abrigos para o IN.

Perguntei ao João se era possível arranjar alguma fruta. Ao fim da tarde já tinha uma cabaça cheia de mangos, embora ainda não fosse o tempo deles.

Com dois camaradas fui à nascente da água e sem muito esforço consegui, escavando, transformar a poça onde se abasteciam, numa pequena bica de água onde já era possível encher facilmente os garrafões.

Fonte da água já renovada e o resguardo do balneário

Junto da fonte criou-se um balneário, com folhas de palmeira, para resguardar das vistas das mulheres que lavavam roupa.

Como era costume, todas as garrafas vazias foram sendo penduradas, duas a duas, no arame farpado.

O fim do 2.º dia em Madina chegou. Antes de dormir, os meus pensamentos centravam-se na preocupação com a segurança.


Relato do 5º dia – 16JUN69:

Um grande amontoado de canas secas de milho autóctone foram espalhadas, junto ao arame, nos locais mais problemáticos. Qualquer aproximação ao arame faria um grande estardalhaço.

Os troncos dos grandes poilões da orla da mata preocupavam-me muito mas não tinha uma moto-serra… Como Maomé não podia ir à montanha…, comecei a congeminar a maneira de dar destino às granadas M/44 (tipo pinha), que trouxera.

Ainda bem que não tive qualquer ataque e não fui responsável pela morte de um qualquer IN atrás dum poilão.

Dezasseis granadas não fariam aquecer muito o nosso cano de morteiro, mas pelo sim, pelo não, fiz-lhe um chumaço com ligaduras.

Um grupo começou a escavar o novo abrigo para a população civil, bem no centro da tabanca. Alguns milícias trataram de ir à mata buscar cibes para a sua cobertura.

Também era urgente construir latrinas. Sabia que os nativos tinham junto de cada palhota o seu WC, um espaço circular com cerca de 1,5 m de diâmetro, conseguido com canas entrançadas. Era aí que faziam as suas necessidades que deixavam a céu aberto. Tal procedimento não me pareceu muito correcto, pelo que não gostaria de o reproduzir para os metropolitanos. Aconteceu que a primeira vez que eu próprio fui à mata escolhi um bom local. Precisamente por isso, usei-o no dia seguinte. Não vislumbrei qualquer vestígio da minha ida anterior. Achei estranho. Passadas uma ou duas horas, fui lá espreitar. Um monte de bichos rastejantes de toda a espécie, cobria o poio. Passado pouco tempo estava tudo novamente limpo.

As latrinas foram adiadas para mais tarde.

Uma tabanca onde se nota, junto de cada palhota, o seu quarto de banho

Entretanto, ao fim do dia, o rádiotelegrafista veio informar-me que, com a antena dipolo instalada, já tinha conseguido estabelecer contacto com Galomaro, embora só em morse.

Debaixo do mangueiro, e antes de ir dormir houve mais uma conversa com o João para fazer o ponto da situação.


Relato do 6º dia – 17JUN69:

O abrigo para a população ganhava forma e já dispúnhamos de alguns cibes

Com um pedaço de ferro velho improvisei um alarme. Quando percutido toda a gente se deveria dirigir aos abrigos. Fiz um ensaio e correu tudo bem.

Em relação à segurança, tudo o que estava feito me parecia pouco. Tomei então uma decisão controversa. De acordo com o João, uns milícias foram escalados de modo a haver sempre um sentinela durante todo o dia, até ao anoitecer, na zona problemática da mata, num raio de 500/700 metros. Como a mata era bastante aberta a visibilidade era grande.

Ao princípio da noite, como de costume, conversei com o João e alguns milícias a fim de me inteirar das suas preocupações. Lamentavelmente havia a barreira da língua mas mesmo assim aprendi muito e comecei a compreender os problemas daquelas pessoas naquele cu de Judas, isoladas durante os piores meses da época das chuvas.

O João aproveitou para me apresentar as suas duas mulheres (tinha mais duas noutras tabancas) e o seu filho Bonco.

A Primeira mulher do João e o filho Bonco

Fotos e legendas: © Fernando Gouveia (2009). Direitos reservados


A terminar o dia e graças à antena dipolo, recebeu-se a primeira mensagem cifrada. Com a ajuda do livrinho de cifras descodifiquei a ordem para ir à tabanca de Cantacunda municiar os africanos armados (talvez uns 10) com Mauser e dar-lhes instrução de tiro com G3.

Nos três dias a seguir os acontecimentos vão precipitar-se. Irei a Cantacunda e no retorno a Madina irei ter uma boa surpresa. Na mesma tarde ouve-se o primeiro tiro em Madina Xaquili. Nos dias a seguir, como previa, vai aparecer um héli e vou fazer de consultor sentimental, mas tudo isso será tema para o próximo Poste.

Até para a semana camaradas.
Fernando Gouveia
__________

Nota de CV:

(*) Vd. postes de:

28 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4256: A guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia (2): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60 (I Parte)
e
8 de Maio de 2009 > Guiné 63/74 - P4305: A Guerra vista de Bafatá (Fernando Gouveia) (3): Um alferes desterrado em Madina Xaquili, com um cano de morteiro 60 (II Parte)

2 comentários:

Anónimo disse...

Fernando Gouveia
Mas que rica estância campestre descobriram para te oferecerem umas
agradáveis férias no campo, pois só agora consegui descobrir no Mapa esse lugar paradisíaco nos confins do mato...por isso como "Chefe do Teu Bando" divertiste-te à grande e à francesa, hem?
É por isso que o tal de AB ou "aponta B" morrendo de inveja, por não lhe oferecerem férias dessas à conta do Estado, obrigando-o pelo contrário a penar e a sofrer o desconforto dum local despresível e perigosíssimo apodado de Bissau, decidiu que, quando pudesse haveria de se vingar de pessoas como tu e outros que usufruiram dessas mesmas regalias, apodando-os de Bandos... bandoleiros...salteadores dos cofres públicos, talvez quisesse chegar aí...
Abraço
Jorge Picado

Hélder Valério disse...

Caro Fernando Gouveia
Tenho acompanhado com interesse os teus relatos, que considero interessantes e didácticos.
Estão colocados de uma forma sequencial e podemos acompanhar todo o teu percurso de aprendizagem e conhecimento daquela guerra e daqueles locais.
Dei por mim a pensar como está a fazer falta a uma boa parte de nossa juventude uma boa dose de conhecimentos práticos para poderem resolver os problemas que o seu tempo lhes está a colocar e suspeito que não estão tão bem preparados para isso como tu revelas, mostrando a tua capacidade para enfrentar um a um os diferentes obstáculos que foram surgindo e encontrando (e improvisando) as soluções possíveis mas necessárias.
Não é à toa que um site americano colocou uma palavra portuguesa à cabeça duma lista de palavras estrangeiras que considera em falta no léxico anglo-saxónico. Organizaram essa lista (da qual só vi as 5 primeiras) e lá está em primeiro lugar a palavra portuguesa "desenrancanço", com as devidas explicações e interpretações.
Um abraço
Hélder S.