terça-feira, 14 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4183: Duas ou três palavras para Miguel Pessoa (José Brás)

1. Mensagem de José Brás, ex-Fur Mil da CCAÇ 1622, Aldeia Formosa e Mejo, 1966/68 (*), com data de 12 de Abril de 2009:

Carlos
Caríssimo amigo

Sei que estás com trabalho até aqui. Injusto, portanto, é atafulhar-te mais.

Ainda assim, ainda que passado já o aniversário de Miguel Pessoa, gostaria de lhe fazer chegar duas ou três palavras sobre o seu poste 4 meses de nada, forma pobre a minha de lhe dar os parabéns.

Parabéns, não apenas por mais este ano de vida que contou, mas por todos os outros milhões de nadas com que fez uma vida cheia e, ao que parece, solidária e ansiosa de abraço.

Por isso e porque não lhe conheço o endereço electrónico, queria pedir-te (um abuso!) a gentileza de lhe fazeres chegar o texto que enviei ao blogue no passado dia 1 de Abril e aqui junto.

As minhas desculpas, um abraço e… uma nota:

Será a minha primeira vez e a oportunidade de pessoalmente conhecer muita da gente que pensou o mesmo que eu de cada vez que fazia avançar um pé nos apertados carreiros (bem vistas as coisas, de cada vez, não, a malta habitua-se a tudo): “será agora?”. Para mim qualquer data é boa e podes, desde já, contar comigo.

Uma abraço… de novo.
José Brás


2. Texto dedicado ao aniversário de Miguel Pessoa e ao seu poste 4119 (**)

Amigo
Miguel Pessoa
“4 meses de…nada”
De nadas se faz a nossa vida.

Oitenta anos, cinquenta, vinte, três meses, o tempo de cá estar não está definido como regra geral e cada um bebe deste copo pequenos goles, pequenos nadas até ao dia que dizem ser o fim de tudo.
Às vezes é logo à nascença que se parte desta e nem ao primeiro nada se chega.
O nada!
O tempo certo de partir para o grande nada.

Aparentemente o nada é… o nada.
quer dizer não existe não tem densidade não tem massa
não tem peso nem espaço nem volume
não tem cor nem cheiro
insisto
aparentemente nada é nada.
com nada é impossível construir casas semear trigo colher
cerejas fazer um filho ir à lua
com o nada ninguém ri ninguém chora ninguém grita de
dor ou de prazer
o nada não é pão nem espada nem ternura
nada em absoluto não existe
nada é um ponto
nada é o centro imaterial arbitrariamente ocupado
pelo espaço em redor
o nada é
um território tão vasto como o infinito
um território tão vasto como o sonho
cientistas e poetas que me expliquem o nada
que me expliquem aquilo que em vão hei-de procurar
até ao último dos meus dias


Bem sei que, nascendo, é o tudo que queremos, o ideal, o belo…Deus, digamos.

Montando no cavalo do psicólogo, arrisco dizer que é disso mesmo que se faz essa tua sensação de “quatro meses de…nada”.

E ainda bem que o disseste porque, dizendo-o como o fizeste, simplesmente como num relatório, me trouxeste à memória coisas que remoía de longe em longe e sem resposta.

Vivi alguns meses no chão que se estende por debaixo do céu do teu Fiat e do teu strella.

Não posso dizer que os vivi em vão se desses meses ganhei alguma coisa do que fui depois e alguma coisa conservo ainda no que sou hoje.

Diria, sem outro fim que o de melhor se entenderem os sinais do que vou dizer, diria que daqui embarquei fardado e sem gosto. Aliás, a farda sempre me assentou mal nas Caldas, em Tavira, no BC5.

Desde os 15 anos que entendia a mais o regime que mais tarde me mandou pegar em armas.

Em Vila Franca de Xira cresci no meio de opositores organizados.

A Pátria, para mim, não era essa memória mal definida (mal contada) das glórias da reconquista aos “infiéis” e dos heróis de Aljubarrota. Das Descobertas assumia já, então, muito mais o contributo dado para o desenvolvimento do mundo do que as façanhas (reais) dos navegadores.

Não tinha grandes dúvidas sobre a razão dos povos de África que se organizavam e lutavam contra a Europa, na mira da sua liberdade.

Mas aceitei a farda. Não me sentia, apesar do resto, com qualquer direito a negar o braço aos meus irmãos que partiam todos os dias a defender a outra pátria que eu negava.

Aceitei a farda, a arma e o embarque. Chegada a hora da chamada, não senti qualquer direito para me afastar do incómodo que sofriam os meus amigos na ida a África para combater em nome da Pátria que, já viste, só era minha porque deles, e eles a minha Pátria.

Aceitei disparar.

Um aviso antes de qualquer mal entendido. Não digo isto na crença de que era melhor (ou pior) que os outros. Era diferente dos que eram diferentes de mim e igual a tantos outros. Aliás, diferente de mim próprio algumas vezes e igual aos meus diferentes outras tantas.

Como sabes, na Guiné, todos os que conseguiam reunir meios para passar um mês de férias na terra, compravam o bilhete da TAP e faziam quase sempre o seu baptismo de voo.

Cheguei à minha aldeia, creio que em Julho, de mãos queimadas das canos da G3 que no escuro da noite, soldados me passavam à vez, na boca do abrigo (preferia morrer a céu aberto) e eu despejava sobre a paliçada sobre inimigos que não via mas adivinhava pelo rastro das rastejante e pelas saídas de morteiros e canhões sem recuo.

A minha mãe era um farrapo de velha com largos anos a mais do que os que lhe sabia no dia do embarque, dez meses antes.

Fim de Julho, festa de Verão na aldeia, banda de música no coreto, bailaricos, gado bravo no cercado, o forcado que era antes da partida, estás a ver a felicidade quase sólida ali nas mãos, mesmo que faltassem apenas dois dias para voltar a Mejo.

Na Segunda-Feira da festa, entre umas imperiais e uns tremoços, o carteiro entrega-me um telegrama que havia chegado da Guiné, curto, seco, violento. “ Dias morreu em Xinxi-Dari ponto outro morto e feridos de outras secções ponto Oliveira ferido grave hospital da Estrela ponto dá apoio antes voltares ponto Loja”.

Grande murro no estômago! De repente desabou tudo sobre mim. Olhava, tanto quanto me lembro e os amigos diziam depois, olhava de olhar parado a gente à volta, falavam comigo e, nada, niqueles, perdera a palavra. O meu pai tirou-me o telegrama da mão e leu. Ficou parvo também mas não perdeu nem a fala, nem a ternura. Tirou-me da cadeira já as lágrimas me corriam abundantes. O Dias era soldado da minha secção e morrera sem mim. O Oliveira era da minha secção e jorrara o seu sangue em Xinxi-Dari sem mim. E os outros de quem não constava nome no telegrama, que eram da minha companhia, haviam morrido sem mim.

Logo ali, já em casa, o meu pai garantia “agora é que vais mesmo para fora. Já não voltas a essa terra de doidos. O Salazar que se f….”.

Naquele momento nem ripostei. No dia seguinte, bem cedo, autocarro, Lisboa, voltas e mais voltas na Estrela, um mundo de mortos vivos, até que encontrei o Oliveira. Não iria morrer, pareceu-me, embora me tivesse afiançado que alguém, na mata lhe apanhara intestinos.

De mais importante para lhe dizer foi a frase que tanto te tem afligido, mas na primeira pessoa, como a disse o Pessoa, mas na segunda.

“Olha, Oliveira, daquilo estás safo!”

À noite, de novo em casa, poucas falas para trocar, o meu pai seguro de que me poria na fronteira e eu remoía ainda os pequenos nadas da tragédia.

Antes da cama tudo ficou claro entre nós. Mejo iria continuar a ser a minha Pátria por mais alguns meses. A mala já estava feita. O meu pai ainda iniciou a argumentação mas calou-se com as lágrimas que me haviam rebentado de novo.

E nem precisei de dizer-lhe que me sentia miserável por ter deixado morrer aqueles amigos sem a minha presença de arma na mão.

Um abraço
José Brás
__________

Notas de CV:

(*) Vd. poste de 30 de Março de 2009 Guiné 63/74 - P4107: Blogpoesia (35): Tinhas no olhar / sinais seguros de esperança... (José Brás)

(**) Vd. postes de 9 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4160: Parabéns a você (4): No dia 9 de Abril de 2009, ao camarada Miguel Pessoa, Cor Pilav Ref (Editores)
e
1 de Abril de 2009 > Guiné 63/74 - P4119: FAP (21): Os meus sentimentos contraditórios no 'verão quente' de 1973 ... (Miguel Pessoa)

3 comentários:

Anónimo disse...

José Brás

"...trouxeste à memória coisas que remoía de longe em longe e sem resposta."


Pelo que leio ,parece-me que, também tu ainda hoje te reclamas de “culpado” (?), por não estares presente no último alento de Amigos e Camaradas, pensando que eventualmente podias ter ajudado ou até evitado essas situações.

Quantos não viverão com essa dúvida?!

Na minha maneira de ver, férias eram necessárias para renovar o espírito e a esperança, ganhando de novo forças e quantas vezes lucidez, para melhor contribuirmos na segurança dos homens que conduzíamos, ou não será assim?

Bem pior seria se, por via de não as gozarmos e como tal não descansados psicologicamente, cometêssemos erros fatais!

Um abraço e desculpa o modo como penso

Luis Faria

Antonio Graça de Abreu disse...

Meu caro Zé Brás
Há a guerra que vivemos, a guerra dos que morreram ao nosso lado, a guerra dos que ficaram no tarrafo ou na bolanha quando nós não estávamos lá, mas eram como nossos irmãos.
Há a guerra que sempre nos circula no sangue, capaz de abalar os
corações.
Vê, vejam o filme do Clint Eastwood, o "Gran Torino", onde faz de Walt, um veterano de guerra, como nós. A guerra dele foi a da Coreia, 1952/53, mas o homem é como nós, acho que melhor do que quase todos nós.Vejam o filme, perceberão porquê.
Participou numa guerra injusta (mas há guerras justas?) no entanto não deixa de ter a bandeira da sua estuporada e grande pátria, os Estados Unidos da América, sempre à porta de casa.
Um abraço,
António Graça de Abreu

Anónimo disse...

Reproduzo aqui o e-mail que tive a oportunidade de enviar ao nosso camarada José Brás:
Amigo José Brás
Agradeço reconhecido o texto que agora me enviou. A verdade é que eu já tinha anteriormente conhecimento dele, pois já estava incluído nos comentários ao meu texto publicado no blog, "Quatro meses de... nada", guardados no meu arquivo pessoal. No entanto, vendo os comentários no post respectivo, este texto não está lá.
Só posso acreditar que o seu texto me tenha sido enviado pessoalmente, pelo Luís Graça ou pelo Carlos Vinhal. No entanto, já não me recordo como ele me chegou às mãos.
Mas isso agora não é o mais importante. Interessa é que eu tenha tido a oportunidade de conhecer este texto, bem como outros escritos seus publicados anteriormente no blog, e que muito tenho apreciado. Considero-me um narrador razoável, mas o amigo José é um poeta que faz um uso perfeito das palavras para transmitir aquilo que sente - e isso é um dom que só alguns têm.
Obrigado pela prenda de aniversário!
Esperando um dia ter a oportunidade de o conhecer pessoalmente,
Com um abraço amigo do Miguel Pessoa