sexta-feira, 3 de abril de 2009

Guiné 63/74 - P4138: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (20): Vultos na noite

1. Mensagem de Alberto Branquinho, ex-Alf Mil da CArt 1689, Guiné 1967/69, com data de 24 de Fevereiro de 2009:

Caros Editores

Agora que o Carnaval está quase passado e ninguém (?) teria levado a mal a sua publicação, venho dizer-vos que retiro o anterior texto que enviei para o UMBIGO 20 ("A QUESTÃO EM JOGO") como anexo ao mail de 10 de Fevereiro.
Em sua substituição vai, em anexo a este, o seu substituto e, por essa razão, terá o nº. 20 ("VULTOS na NOITE).

Três abraços
Alberto Branquinho


NÃO VENHO FALAR DE MIM… NEM DO MEU UMBIGO (20)

VULTOS NA NOITE


Era a segunda ou a terceira noite seguidas passadas na mata, retomando a caminhada ao amanhecer.

Instalaram-se, como habitualmente, dois a dois, deitados atrás das árvores de troncos mais grossos ou de uma ou outra baga-baga, Em quadrado não muito perfeito, cada lado feito com cada um dos quatro pelotões.

A lua estava em quarto crescente ou quarto minguante, do tamanho de uma unha, entrevista no meio da folhagem. A bicharada estava já queda e calada, o que era bom sinal.

Ao longe, muito ao longe, tinham-se ouvido sons de tiro a tiro, intercalados com rajadas curtas.

Passaram duas ou três horas. O pessoal começou a acomodar-se, aproveitando o macio dos tufos de ervas, a vegetação rasteira e os requebros do terreno. Não demorou muito tempo para se começar a ouvir ressonar a solo e, logo a seguir, em dueto, próximo e do lado direito do furriel Nero. O furriel fez uma bola de terra e arremessou-a na direcção dos executantes. Acordaram em espanto e susto, atordoados, fazendo “hum...hu…hu…” Soergueram-se e colocaram-se de ombros encostados à árvore.

O furriel, que se levantara, voltou para o seu lugar, junto do cabo enfermeiro. Pouco depois, estavam já os mesmos a ressonar – primeiro um (que, entretanto, parou) e, depois, ambos, executando, de novo, a peça em dueto, alternadamente. Estava a preparar a segunda bola de terra, quando detectou sobre a sua esquerda, mas um pouco mais longe, outro dueto ou, talvez, um grupo coral, emitindo idênticos sons guturais.

Deixou em paz os do lado direito e, agachado, dirigiu-se para o lado esquerdo da instalação. Acordou-os com pontapés nas pernas.

- Que merda é esta? – sussurrou. – Valia mais termos trazido o clarim.

Em pé e apurando o ouvido, do lado do outro pelotão, instalado sobre a esquerda, também havia outro coro. Voltou ao seu lugar, mas, antes, foi acordar, de novo, os primeiros executantes.

Deitou-se preocupado, olhando fixamente em frente, com a G-3 colocada paralelamente ao corpo, do lado direito.

Ciciou para o enfermeiro: - Estes gajos são inconscientes. Parece que estão na caserna.

- O nosso capitão, que está lá no meio, não ouvirá esta merda?
- Sei lá.
- Se calhar também está a dormir.
- Pode estar, mas um a dormir e outro alerta.
- Pois.
- Vê lá se queres dormir. Depois chamo-te.

O enfermeiro acomodou-se, usando a mala como almofada.

Tenso e preocupado com a “sinfonia”, o furriel Nero continuou olhando em frente, procurando detectar qualquer ruído ou movimento. Olhava de cabeça junto ao chão, oscilando-a contínua e suavemente para a esquerda e para a direita, aproveitando a pouca luminosidade do céu estrelado e da lua, já mais alta, por entre as árvores. Assim esteve por longo tempo.

Num repente teve um sobressalto. Pareceu-lhe entrever um vulto agachado. Depois dois ou três, que se movimentavam lentamente, com um leve restolhar. Começava a ter medo. A sua própria respiração ofegante não lhe permitia confirmar os ruídos. Já “via” uma avantesma negra, caminhando lenta e pesadamente para ele. Esfregou os olhos. Voltou a olhar e lá estavam os vultos agachados, a movimentarem-se lentamente, muito lentamente. Acordou o enfermeiro: - Eh pá, estou a ver ali uns gajos agachados e a mexerem-se. – segredou-lhe ao ouvido.

- Onde? Não estou a ver nada.
- Ali, caralho! – agarrou-lhe na cabeça e pôs-lhe um dedo indicador à frente do nariz.
- São dois… três… gajos. – gaguejou o enfermeiro.
- Ai porra! Se vêm para o corpo a corpo estamos fodidos, com estes gajos todos a dormir.

Retirou uma granada ofensiva do cinto, tirou a cavilha, soergueu-se e BBUUUUUM!!!

Imediatamente rebentou um fogachal doido. Logo a seguir saíram duas bazucadas quase ao mesmo tempo.

O furriel Nero apercebeu-se que não havia fogo inimigo e começou a andar em volta e berrando:

- Pára!!! Pára fogo!!!

Os tiros foram diminuindo gradualmente até cessarem. Ouvia-se o capitão a berrar no meio da instalação:

- Os nossos alferes!! Os nossos alferes venham aqui!

Então o furriel Nero disse para o enfermeiro:

- Agora vamos nós dormir…

Ao amanhecer, quando retomaram a marcha, viram dois porcos-de-mato mortos.

Alberto Branquinho
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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 5 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3845: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (19): O aniversário do Cabo Tomé

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