quarta-feira, 11 de março de 2009

Guiné 63/74 - P4011: Poemário do José Manuel (27): Um ruído vem do céu / e há cabeças no ar, / hoje é dia de correio...

Guiné > Região de Tombali > Mampatá > CART 6250 , Os Unidos de Mampatá (1972/74) > Pós-25 de Abril de 1974 > Um guerrilheiro do PAIGC e o Fur Mil José Manuel Lopes, dando o abraço da paz e da reconciliação..."Antes um inimigo, que só podia ser visto pela mira da nossa arma, depois um abraço, um sorriso e porque não um amigo" (JML) ...

O José Manuel voltou à Guiné, voltou a Mampatá, 35 anos depois!... Com os amigos e camaradas da CART 6250, o Carvalho (Fur Enf), o Nina (Fur Mec Auto), o Leça (Sold Cond Auto)... Foi surpreendido pelos trágicos acontecimentos de Bissau, do início da semana passada, em que morreram Tagmé Na Waie e Nino Vieira. Já estavam em Buba, quando souberam da notícia, recebida com calma entre a população fula...

Em Mampatá ficaram 4 dias. Conheceram momentos de alegria e de tristeza. Visitaram as escolas locais (duas, uma pública e uma privada)... Deixaram material aos miúdos. Aperceberam-se da dura realidade da Guiné, em que a administração pública mal existe: duas escolas, uma pública, com 400 e tal miúdos; outra privada, com duas dezenas de alunos... Quem era o professor desta ? O José Manuel reconhceu o antigo professor do PAIGC... As famílias, com algumas posses, pagam ao professor, em géneros... O Estado está meses e meses sem pagar um tusto aos seus funcionários...

Visitaram a campa de um dos seus amigos, milícia, que foi fuzilado, a seguir à independência, na praça pública ("Morreu com uma enorme dignidade, de cara levantada, perante o pelotão de fuzilamento; podia ter fugido, avisaram-no, não o fez"...).

Ofereceram-lhes um cabrito... Gente boa, simples, hospitaleira, que continua a imaginar Portugal como um eldorado: o sonho de uma família fula de Mampatá, é ter um filho a trabalhar cá... A remessa de 50 euros, que seja, é uma benção... Até apareceu um filho de um tuga, a chamar pai a um dos nossos camaradas... Enfim, todos os pretetextos são bons para se chegar a Portugal...

Reconheceram (e foram reconhecidos por) velhos amigos da população (fula) e camaradas de armas... Fizeram a estrada que ajudaram a construir, hoje totalmente degradada, irreconhecível: Nhacobá... Salancaur... Estiveram no corredor de Guileje, mas não foram a Guileje, por dificuldades de ligação.

Enfim, lá tiveram de voltar a casa, por que a vida continua: o Carvalho é presidente de uma Junta de Freguesia, em Gondomar; o Nino tem, na Covilhã, uma empresa de comércio automóvel, com bastantes colaboradores; o Zé Manel tem a sua Quinta da Graça, no Alto Douro, onde é vitivinicultor (e tinha a sua Luísa a chorar de saudades); o Leça (que levou a esposa) é uma antigo emigrante em França... Gente extraordinária, que merece as nossas palmas! Ah!, com eles também viajou o Silvério Lobo, que esteve em Aldeia Formosa, e que é mecânico de profissão...

Chegaram ontem ao fim da tarde, cansados... Fizeram a viagem em contra-relógio. Já em Marrocos encontraram também o resto da malta da Tabanca de Matosinhos: o Xico Allen, o Pimentel, o João Rocha... Ainda lá ficaram, na Guiné, o Moreira e a malta de Coimbra, bem como a malta de Lisboa (Carlos Fortunato, Carlos Silva e outros, da Ajuda Amiga...)... Do Camilo e da malta do Algarve não me soube dizer nada.

Falei ao telefone com o Zé Manel ontem à noite... (Estava a ver a bola, a desgraça do Sporting; ele é benquista, mas patriota... Já o meu amigo Pepito é sportinguista e merece um grande abraço de consolo...).

O Zé Manel disse-me que nem tudo correu pelo melhor, na viagem para lá e para cá (em que perdeu o telemóvel)... Na Mauritânia, o Zé Manel esteve detido 4 horas numa esquadra de polícia, por tirar fotografias... A polícia da Mauritânia faz intimação e chantagem aos turistas... Mas isso são outros contos... para outras alturas. O Zé Manel vai fazer um festinha, um dia destes, num fim de semana (talvez a 21), para partilhar connosco as emoções da viagem... O Paulo Santiago já disse que levava o leitão de Aguada de Cima (que é o melhor do mundo)...

Para celebrar o regresso do Zé Manel e demais amigos e na sequência também do poste, bem humorado, do nosso camarada da Força Aérea António Martins de Matos ("Correio com antenas") (*), fui repescar um dos poemas do Josema (**), poesia singela de um tuga, que era (é) um homem sensível e de coração grande, e que retrata aqui, melhor do que ninguém, em traços breves e leves de aguarela, o nosso quotidiano de guerra...

Foto e poema © José Manuel (2008). Direitos reservados.


Um ruído vem do céu
e há cabeças no ar,
hoje é dia de correio,
há novas para chegar,
faz-se a distribuição
com chamada frente ao bar.

Para o Santos nada veio
será que vai desmaiar?
P'ró Zé Manel veio a Bola
com as novas do Benfica,
p’ró Pinheiro uma encomenda
e alguém lhe manda uma dica,
fazendo-se para a merenda.

Sim, de correio foi o dia,
não pode haver melhor prenda,
é altura de alegria,
retiram-se os felizardos,
relêem a mesma carta
até afogar a saudade.

Mampatá 1972
josema

[Revisão/fixação do texto: L.G.]

__________

Notas de L.G.:

(*) Vd. poste de 11 de Março de 2009 >Guiné 63/74 - P4010: FAP (15): Correio com antenas... (António Martins de Matos, ex-Ten Pilav, BA12, Bissalanca, 1972/74)

(**) Vd. postes de

13 de Fevereiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3884: Poemário do José Manuel (26): O regresso a Mampatá, 35 anos depois...

28 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2694: Poemário do José Manuel (5): Não é o Douro, nem o Tejo, é o Corubal... Nem tudo é mau afinal.... Há o Carvalho, há o Rosa...(...)

27 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2585: Blogpoesia (8): Viagem sem regresso (José Manuel, Fur Mil Op Esp, CART 6250, Mampatá, 1972/74)

2 comentários:

Luís Graça disse...

AH!, a saudade, essa coisa tão nossa, tão portuguesa... que tem de ser afogada, matada...

Gosto particularmente dos últimos três versos:

(...)

retiram-se os felizardos,
relêem a mesma carta
até afogar a saudade.

Anónimo disse...

Aqui na Régua, é sempre bom reler-te.
Como diz o Luis, a saudade não morre, a saudade vive-se.Foram duros mas foram bons velhos tempos.
Até já tenho saudade das ostras da Bolanha e não só das ostras...

Um abraço.
JORGE FONTINHA