domingo, 15 de fevereiro de 2009

Guiné 63/74 - P3898: A história dos Tigres de Cumbijã, contada pelo ex-Cap Mil Vasco da Gama (8): Maio de 1973 na vida da CCAV 8351 - (Parte I)

1. Em mensagem com data de 13 de Fevereiro de 2009, Vasco da Gama, ex-Cap Mil da CCAV 8351, Cumbijã, 1972/74, enviou-nos para publicação a primeira de três partes de "Maio de 1973 na vida da CCAV 8351" - Os Tigres do Cumbijã.





MAIO DE 1973 NA VIDA DA CCAV 8351 - OS TIGRES DO CUMBIJÃ

Em memória dos meus queridos camaradas, mortos em combate neste mês de Maio:

ANTÓNIO BENTO BÔA , soldado n.º 06261872, morto a 12 de Maio de 1973

VICTOR MANUEL SILVA COELHO, soldado n.º 06472772, morto a 18 de Maio 1973

A vida tem destas coisas. Maio tinha tudo para ser um lindo mês, já que e em definitivo a Companhia tinha juntado os seus quatro GCOMB, as obras de construção continuavam a um ritmo muito grande, o pessoal andava contente pois as casernas começavam a tomar forma e consequentemente as condições de vida melhorariam a muito curto prazo e íamos receber logo na primeira semana um Pelotão de Artilharia, que nos dava uma outra alma.

Como sabem, a resposta, em termos de artilharia aos ataques que o meu aquartelamento sofria, era dada pelos nossos camaradas de Mampatá. Era impressionante para nós, pois para além das canhoadas e das morteiradas do I.N., passavam por cima das nossas cabeças em direcção às prováveis bases de onde os turras nos atacavam, as ameixas com que os nossos camaradas tugas de Mampatá os presenteavam.

Maio começou com uma flagelação, pois logo no dia três sofremos um ataque de duração curta, cerca de dez minutos, de morteiro 82. No relatório dessa flagelação assinalámos que o In havia sofrido duas baixas confirmadas. Recordo-me de no dia seguinte termos saído com três Pelotões e descoberto o local de onde nos haviam flagelado e verificado sinais de corpos arrastados. Deixámos as nossas assinaturas; restos de ração de combate, pontas de cigarro, latas de conserva e de leite com chocolate e os que sofriam de maior aperto intestinal, aproveitavam também para diversificar os vestígios.

No dia 8 de Maio chega até nós o tão ansiosamente esperado Pelotão de Artilharia. Em tempo recorde se construíram os espaldares e se elaboraram as cartas de tiro. Durante três dias andámos numa azáfama enorme, mas a confiança enchia-nos o peito, pois com a presença da Artilharia iríamos impor com ainda mais força a nossa presença. Enfim ilusões de sonhadores.

No dia 11 de Maio fui a Aldeia Formosa tratar da parte burocrática da minha Companhia, já que a Secretaria, o Cripto e os encarregados dos géneros ainda estavam na Sede do Batalhão. Reuni-me com o 1.º Sargento António Joaquim Redondeiro, grande homem, que já nos deixou. Faleceu em Portugal, mas só tive conhecimento do sucedido muitos anos após ter partido. Paz à sua alma! Ajudou-me muito na burocracia que também era imposta às Companhias que davam o corpo ao manifesto no meio do mato, aconselhou-me bastas vezes e sofria, lá em Aldeia, com os ataques de que o Cumbijã era alvo. (Abraçou-me a chorar depois do assalto a Nhacobá). A reunião ia longa e o tempo começou a ficar muito feio, com as rajadas de vento a aumentarem de grande intensidade de forma que combinámos que ele, no dia seguinte, iria integrado na coluna da Engenharia ao Cumbijã onde prosseguiríamos a reunião.

Regressei com a minha malta ao Cumbijã debaixo de um temporal imenso e fiquei desolado com o espectáculo que se me deparou: um tornado violento havia passado no quartel e arrancado dois telhados das instalações em fase de construção mais adiantada. É daqueles momentos em que nos dá vontade de desistir de tudo, mas não o podia demonstrar. Exteriorizei para os meus camaradas que quanto maiores fossem os obstáculos maior teria de ser a nossa firmeza e a nossa determinação e que no dia seguinte teríamos de trabalhar a dobrar.
Mas o tornado era um aviso e o dealbar do período negro.

No dia 12 de Maio, já da parte da tarde um grupo de combate desfalcado foi a Aldeia levar o Sargento Redondeiro. No regresso e na zona de Colibuia, portanto já pertinho de casa, sofrem uma emboscada de um pequeno grupo avançado do IN, que tinha vindo com o objectivo de dar protecção aos indivíduos que minavam os pontões, pois na frente de trabalhos não andavam tão à vontade dada a presença quase diária de um GCOMB que os esperava quase até ao anoitecer.
No Cumbijã toda a gente adivinhou o que se estava a passar. Via rádio soube de imediato que o Bôa tinha morrido instantaneamente. Eu estava em tronco nu, calções de banho e sapatilhas. Gritei para que preparassem de imediato duas Berlietts para irmos atrás dos gajos. No espaço de minutos estávamos a arrancar, enquanto os obuses disparavam para a orla da mata. Chegámos ao local e para além do BÔA tínhamos mais dois feridos com escoriações provocadas pela queda ao atirarem-se da viatura para o solo. Alguém de Mampatá ou Aldeia veio buscar as nossas baixas, as Berlietts regressaram ao quartel e eu e os meus voluntários embrenhámo-nos na mata e todas as dúvidas foram dissipadas: vinham mesmo minar os pontões! A assinatura do Pata Grande ou Patudo estava bem expressa, pois o sujeito tinha um pé tão grande que o distinguia de qualquer outro. A malta de Mampatá também o conhecia bem. Não consegui nada e a noite a cair levou-nos de volta ao Cumbijã.

Tinha no entanto aprendido uma lição: por muita racionalidade e serenidade que se peça ou que se exija a quem comande, permitira que o meu espírito fosse invadido pela dor, pelo sofrimento, pela angústia e pela raiva. Pela primeira vez havia sentido ódio. Ao olhar para esse dia e ao rever o que se passou, basta-me fechar os olhos, julgo que hoje teria feito o mesmo e teria actuado de imediato. O In tinha feito o seu papel e nós não poderíamos responder com indiferença ao sucedido, mesmo sabendo que já não havia nada a fazer; mostrar resignação ou indiferença era o pior que me poderia ter acontecido a mim e aos meus.

O traje com que saí para o mato rotulou imediatamente o meu estado de espírito. Amigo meu em Bissau ouviu dizer que o cacimbo me tinha atingido e que já saía nu para o mato. Enfim, os exageros que depois se transformam em mentiras, mas que por vezes também constroem heróis. Quem andou na luta e ouve este ou aquele dizer que reagiu assim ou assado que matou frito e cozido, topa logo que o gajo está a mentir ou fez a comissão perto de Bissau.

Também em princípios de Maio fui avisado de que em tal dia, a tal hora um grupo de Comandos Africanos passaria pelo Cumbijã, vindo de uma operação, e seria depois levado para Aldeia. Assim, seco sem mais informação nenhuma. Em conversa nos dias de hoje com os meus camaradas as opiniões divergem: uns dizem que o grupo era comandado pelo mais famoso guerrilheiro da Guiné, outros afirmam que eram elementos de uma Companhia de Comandos heli transportados.

Tenho de ser cuidadoso, tanto mais que esses elementos vindos da zona de Nhacobá, não haviam vislumbrado quaisquer vestígios do que quer que fosse, ou teriam e não fizeram nada ou não era tarefa para eles, ou apenas teriam ordens para reconhecer o terreno… não sei o que vos diga.

Este vosso amigo nasceu a 16 de Maio e tinha pensado arranjar uma vaca em Aldeia para fazermos um petisco diferente e pagar uns copos à malta. Está bem, abelha! Dia 15 à noite recebo ordens para me apresentar em Aldeia Formosa pela manhã do dia seguinte, o mais cedo possível. Como era o que estava mais longe, embora cedo, fui o último a chegar. Estava toda a malta calada, expectante, com ar de caso. Só saí da reunião pelas 16 horas, pois estivemos a preparar a operação “BALANÇO FINAL”, que se resumia apenas e só no assalto a Nhacobá, pois parece que por aí passavam as colunas de reabastecimento vindas pelo corredor de Guileje acima. A Companhia de Cavalaria 8351 seguiria em primeiro escalão, reforçada com um GCOMB da 3398, e na referida operação participariam uma outra Companhia do Batalhão dos velhinhos (a 99), mais a CCaç 18 mais a Cart 6250 de Mampatá reforçada com dois GCOMBs do Batalhão de periquitos (4513), mais a 3.ª Companhia do 4513 mais os Pelotões dos Sapadores dos dois Batalhões, mais dois Pelotões de Artilharia etc.

Estou com todos estes pormenores, pois no meu próximo texto vou necessitar da ajuda da malta de Guileje, para compararmos no tempo o decurso das diferentes actividades das nossas Companhias pois, ou muito me engano, ou estava em curso algo de muito importante na cabeça dos comandantes da guerra que embora nunca me tenham referido coisa nenhuma, à boa maneira militar, me levavam a desconfiar de algo. A ver vamos se o meu raciocínio terá ou não alguma lógica.

Embora nem todas as forças estivessem no terreno ao mesmo tempo, constatem que estavam disponíveis nesta operação malta que dava para fazer sete Companhias completas mais os Sapadores e Artilharia.

Cheguei triste ao Cumbijã! Tinha passado um rico dia de aniversário e a operação tinha início na manhã do dia seguinte. Tiraram-me uma fotografia na chegada ao aquartelamento que junto.

Cumbijã > Dia de aniversário do Cap Mil Vasco da Gama

Não me deitei. Falei com o pessoal, sem ter a certeza do que iria encontrar. Do objectivo apenas e só hipóteses. Conversei horas a fio com o guia que eu havia exigido: O Padé Nambatcha (refiro a fonética, não sei se a grafia é esta).

Curiosamente, a noite passou com grande rapidez. De manhã, ainda noite, a malta num silêncio sepulcral, ia-se juntando no meio do aquartelamento. Dois ou três tinham adoecido e a outros tantos haviam-se-lhes encravado as unhas.

Saímos num silêncio absoluto e à medida que íamos caminhando redobrávamos a atenção. De quando em vez o Padé mandava parar a coluna e debruçando-se sobre o chão analisava mais atentamente vestígios que só ele descortinava. Fazia-me sinal perguntando-me por gestos se eu não ouvia nada. Eu que ainda hoje tenho um ouvido de tísico dizia-lhe que não. O sorriso maroto que sempre afivelava ia-se desvanecendo e então começaram a aparecer trilhos cada vez maiores e bem calcados que pareciam autênticas picadas. Lá, muito ao longe, ouvia-se o ladrar dos cães e começámos também a divisar colunas de fumo em direcção ao céu provenientes de fogueiras. Continuámos mais duzentos, trezentos metros, abri a Companhia em linha e cerquei uma tabanca enorme, sem que ninguém tivesse dado por nós. O meu grupo de assalto de quinze ou vinte pessoas correu repentinamente seguindo o Padé e, sem termos dado um único tiro, tínhamos apanhado dezasseis elementos da população (oito homens, três mulheres e cinco crianças), que tentaram numa primeira fase a fuga, depois gritavam Comando, Comando, Comando.

Passámos revista a todas as moranças, em número muito elevado, e rapidamente nos apercebemos que Nhacobá era um importantíssimo centro de armazenamento de arroz. Palhotas cheias até ao tecto de arroz ainda com casca eram mais de uma dezena. Obviamente que esta quantidade enorme de arroz não se destinava a alimentar os dezasseis elementos da população que tínhamos capturado, antes constituía um ponto de passagem obrigatório das colunas do PAIGC que aí se abasteciam. Quantidades enormes de peixe a secar apareciam mais junto ao enorme lençol de água situado mesmo em frente a Nhacobá.

Rapidamente os elementos civis, em quem ninguém tocou, foram transportados por dois Pelotões que cobriam a nossa retaguarda, julgo que a Cart 6250, para os unimogs situados no fim da picada aberta, talvez a dois quilómetros de distância.

Por volta do meio dia, rebenta sobre nós um primeiro fogachal proveniente do flanco direito da minha Companhia, que supostamente devia estar protegida desse lado, que nos causou 3 feridos graves e seis ligeiros.

Pedi evacuação aérea para o Cumbijã onde estavam os graduados do Batalhão que me informaram não ser possível. Aí, mais uma vez, a malta de Mampatá veio em nosso apoio para transportar os feridos.

Um parêntesis para o nosso querido Josema, que vai no sentido de lhe corrigir o poste número 2757 enviado em 14 de Abril de 2008. Os soldados feridos, meus camaradas e teus camaradas, são da minha Companhia e resultaram do contacto que agora mesmo descrevi.

- O que tem o pano sobre a perna é o José Carlos Lopes, que vive para os lados de Lisboa. Está completamente careca, mas rijo. É frequentador assíduo dos nossos convívios.
- Não me recordo do nome do moço que está de barriga para o ar, mas era um dos rapazes das Transmissões.
- O da direita é o Lino Castro e Sá . Estive com ele há dois ou três meses em Coimbra e é também ferrenho dos nossos encontros.


Foto: © José Manuel (2008). Direitos reservados.

Por esta altura ainda não havia estrada até Nhacobá.

A seguir a este contacto flecti com a Companhia para a direita, pois Nhacobá tinha demasiadas árvores que atraem os RPGs e provocam chuveiradas de estilhaços e… outro contacto, este mais violento que o anterior. O In fugiu e recordo-me que, para além de material de guerra, apanhámos centenas de maços de cigarros russos, cadernos escolares, caixas de fósforos e um livro escolar do PAIGC impresso na Suécia.

Alonguei-me mais do que o previsto, continuo ainda por mais dois episódios sobre Nhacobá.

Vasco da Gama

Nhacobá > Entrada norte

Nhacobá

Nhacobá > Armazém de arroz

Nhacobá > Furriéis Azambuja Martins e Costa

Nhacobá > Fur Mil Azambuja Martins, o sorriso do dever cumprido

Foto: © Vasco da Gama (2009). Direitos reservados.

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Nota de CV:

Vd. último poste da série de 20 de Janeiro de 2009 > Guiné 63/74 - P3765: A história dos Tigres de Cumbijã, contada pelo ex-Cap Mil Vasco da Gama (7): A visita do General Spínola

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