sábado, 15 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2646: A Guiné, a Guerra Colonial e o 25 de Abril. Comentários e Nota do Coronel Gertrudes da Silva (Virgínio Briote)

Apresentação do Diário da Guiné, Na Terra dos Soncó, na Sociedade de Geografia de Lisboa. Mário Beja Santos, Jorge Cabral, Henrique Matos e Joaquim Mexia Alves, Comandantes do Pel Caç Nativos 52.

Foto: © Mário Fitas (2008) . Direitos reservados.

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A nossa História recente em debate, sem outra precaução que não seja o respeito pela opinião do outro.
Destaques da responsabilidade de vb.
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A Guiné, a Guerra Colonial e o 25 de Abril de 1974

Comentários ao artigo publicado pelo Coronel D. Gertrudes da Silva

1. de Henrique Matos:

Porque será que se omite que o movimento dos capitães tem a sua génese na contestação dos oficiais do quadro permanente ao diploma - DL 353/73 - que colocava oficiais milicianos no posto de capitão sem passar pela Academia.

2. de Joaquim Mexia Alves

A visão aqui expressa da guerra do ultramar/colonial/África, é uma visão um pouco pessoal e em certos pontos não retrata a realidade. Basta dizer, por exemplo, que ao afirmar que em Angola, também pelo facto de ali lutarem contra nós e por vezes entre si três movimentos de libertação, a situação apresentava um certo equilíbrio, se está completamente fora da realidade.

Em Angola a guerra só muito esporádicamente e por conta da UNITA, tinha alguma actividade.

3. Nota do Coronel D. Gertrudes da Silva ao comentário do Henrique Matos, enviada ao co-editor:

Mando-lhe isto a si.
Faça-lhe o que entender, mas eu tinha que reagir.
Mas não estou zangado, não.

Um abraço.

O João Parreira e o Artur Conceição, do BArt 733 (Mansoa, Bissorã, Farim, Cuntima, Jumbembem, Canjambari...), em primeiro plano na cerimónia de apresentação do Diário da Guiné, do M. Beja Santos. Na 2ª fila, o Coronel D. Gertrudes da Silva (sorridente).
Foto: © Mário Fitas (2008). Direitos reservados.

A UM ANÓNIMO

Se não se apresentasse sem dizer o nome, já que mais não fosse por razões de pertença, dirigir-me-ia a si como caro ou até como amigo ou camarada (da tropa, naturalmente). Mas aí vai.

Eu não omiti nada no escrito (*) que alguém com esse direito tratou de publicar no, já agora, nosso blogue. Não me propunha aí falar propriamente do 25 de Abril, e tão só no enquadramento desse facto (marco) histórico no contexto da Guerra Colonial.
Aliás, se se desse (ou der) ao cuidado – pode não ter tempo … ou disposição – de ler o que muitos militares que participaram no 25 de Abril escreveram sobre esse incontornável evento da história contemporânea portuguesa, se tivesse esse cuidado, prazer ou maçada, veria que nunca omitem esse determinante facto dos decretos.

Só a título de exemplo, e por de memória os ter aqui mais à mão, convido-o a passar uma vista de olhos por qualquer um dos seguintes escritos publicados:

- “Origens e Evolução do Movimento dos Capitães”, de Dinis de Almeida;
- “Alvorada em Abril”, de Otelo Saraiva de Carvalho;
(Para se conhecer tem de se ler de tudo …)
- “História Contemporânea de Portugal”, (vários), Vol. II.


E, já agora, e passe a publicidade, o livrito do autor destas pouco cuidadas linhas com “Quatro Estações em Abril” de nome de baptismo.
Porque isto não é três ou quatro mânfios, desculpe-me a expressão, marcarem um encontro no café da esquina, trocarem para ali uns blá-blá e pronto, vamos fazer um 25 de Abril.


O Capitão Gertrudes da Silva, Cmdt da CÇAÇ 2781. (Guiné, 1970/72).
Foto: © Gertrudes da Silva. Direitos reservados.

É claro que a questão dos decretos é muito importante e até determinante porque, por boas ou menos boas razões, marca o arranque do “Movimento dos Capitães”, porque levou os capitães a juntarem-se e falarem, assim uma coisa, mal comparada, com o que agora leva à rua os professores.

Diga-se ainda que o protesto dos capitães (do quadro) não era contra os capitães milicianos, mas tão só contra o Governo que pretendia resolver os engulhos em que se metera com a teimosia da Guerra Colonial, a tal “Magna Questão”, à custa dos capitães.
E também lhe posso dizer que para além do grosso das tropas, que era constituído por praças, das centenas de cabos, furriéis, sargentos, aspirantes e subalternos milicianos, também os tais capitães (milicianos) acabaram por tomar parte no Movimento Militar do 25 de Abril.


A mim, por exemplo, competia-me comandar o Agrupamento November que integrava tropas de Viseu, Guarda, Aveiro, Figueira da Foz e um grupo de capitães de Águeda. Pois, olhe, depois de abordarmos o Forte-Prisão de Peniche e continuarmos, não em direcção de Fulacunda mas de Lisboa, ficou a tomar conta daquela fortaleza uma Companhia de Atiradores reforçada com peças de artilharia comandada por um desses capitães milicianos.
Não, não é gente chegar aqui e vamos fazer um 25 de Abril, não.
Quando o capitão Vasco Lourenço e mais alguns camaradas andavam por aí a recolher as assinaturas para o telegrama a enviar ao Congresso dos Combatentes, ainda não se tratava de decretos e não tinha de certeza em mente o 25 de Abril.
Quando uns meses mais tarde, em 09Set73 cerca de centena e meia de capitães se juntaram num monte alentejano nas proximidades de Évora para discutirem as formas de atalharem às consequências dos ditos decretos, o que dali saiu foi um requerimento por todos assinado, em que veementemente protestavam junto do Governo da Nação.

Ainda muita coisa se viria a passar, muita reunião, até à que foi realizada em S. João do Estoril, em 24Nov73, em que por impulso do Sr. Ten. Coronel Ataíde Banazol, que estava para embarcar com um Batalhão (e embarcou), o Movimento resolveu avançar para o projecto de derrubar o Regime através de uma acção militar.

Por fim, que se diga aqui também que não foi por medo que estes capitães enveredaram por este radical caminho.
Ninguém poderá negar – discordar, sim – que os que naquela noite saíram das suas casas corriam grandes perigos. Medo, nos lugares, nos momentos e em tempo de medos, todos nós tínhamos. O que era decisivo, disso todos nós sabemos, não era a questão de ter ou não ter medo, mas de se ser ou não capaz de o superar.

Depois do 25 de Abril, os capitães a quem competia por escala continuaram a ser mobilizados, alguns deles para viverem bem piores momentos do que os que já antes tinham suportado em plena Guerra Colonial.

E não me levem a mal por vir para aqui defender com alguma paixão a minha dama.
Viseu,14 de Março de 2008
Gertrudes da Silva
Cor.Ref.


(*) Texto para intervenção no encontro do Blog “Luís Graça & Camaradas da Guiné”, que teve lugar em Lisboa, em 06Mar2008.
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Nota de vb: ver artigo de

13 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2632: Coronel Gertrudes da Silva: A Guiné, a guerra colonial e o 25 de Abril (Virgínio Briote)

Guiné 63/74 - P2645: Fórum Guileje (6): Antes que se esgote... Gandembel (Jorge Félix, ex-Alf Mil Pil Av Al III, BA12, Bissalanca, 1968/70)



Cópia de duas páginas da caderneta de voo do Alf Mil Piloto Aviador de Helicóptero Alouette III, Jorge Félix (Guiné, BA12, 1968/70).

1. Duas mensagens do Jorge Félix (1), com data de ontem:


(i) Caro Luís, o nosso Blogue entranha-se. Já é um vício com muitas horas de leitura.

Antes que se esgote Gandembel (2), gostaria de entrar em contacto com o Idálio Reis, morador em Gandembel numa altura em que lá fui.

Vou juntar umas fotos da minha caderneta de voo onde se podem ver as duas evacuações [ TEvs] que fiz, nos dias 20 de Outubro de 68 e 29 de Outubro 68. No dia 10 fui duas vezes a Gand [embel] e no dia 19 de Outubro voltei a fazer TGer [Transporte Geral].

Gostaria de com ele trocar umas falas sobre estas datas para ver se se recorda de alguma coisa, antes que Gandembel acabe.

Um abraço
Jorge Félix




(ii) Luís, não fui ao Guileje, mas mato saudades de outro modo. Moro em Gaia onde há uma Rua da Guiné. Gosto daquela Rua. Segue testemunho.

Jorge Félix

Fotos: © Jorge Félix (2008). Direitos reservados.

2. Comentário de L.G.:

O Idálio Reis vai adorar falar contigo. Ele vive em Cantanhede. Não pôde ir connosco ao Simpósio Internacional de Guiledje por razões de saúde. Manda-lhe um email, a pedir mais detalhes sobre essas datas em que foste lá... Sei que os páras (o Bação Lemos, o Avelar de Sousa, o Almeida Martins, o Terras Marques e outros....) andaram por lá, em Agosto / Setembro de 1968, e houve porrada da grossa... É que Gandembel / Balana ficava mesmo em pleno corredor do povo (ou da morte, como dizíamos nós), o que não dava muito jeito ao PAIGC... Não sei se em Outubro os páras ainda lá estavam.

O Idálio e os seus Dragões Dourados (a CCAÇ 2317) estiveram menos de nove meses em Gandembel e no destacamento da Ponte Balana, de Abril de 1968 a Janeiro de 1969, como tu sabes. Não tenho tido notícias dele. De qualquer modo, ficamos todos muito sensibilizados com a informação que nos mandas e que publicamos de imediato. Gandembel, seguramente, que não se vai esgotar tão cedo... E a propósito, já ouviste o Hino de Gandembel ? Um dia destes tens que conhecer a Casa Teresa, em Matosinhos, junto ao Porto de Leixões, que tem funcionado como sede da minitertúlia do Norte...

Um Alfa Bravo. Luís

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Notas de L.G.:

(1) Vd. postes anteriores:

28 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2592: Voando sob os céus de Bambadinca, na Op Lança Afiada, em Março de 1969 (Jorge Félix, ex-Alf Pil Av Al III)

12 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2627: Vídeos da Guerra (8): Nha Bolanha (Jorge Félix, ex-Alf Mil Piloto Aviador, 1968/70)

(2) Vd. poste de 14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2640: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (5): Um momento de grande emoção em Gandembel

Guiné 63/74 - P2644: Economia colonial: O preço da mancarra no meu tempo (Mário Dias, empregado da NOSOCO, em 1955/59)

Guiné > Bissalanca > s/d > Fotografia tirada na despedida do gerente da NOSOCO, Monsieur Boris, que nesse dia regressava a Paris (está ao centro de fato e gravata). O João Rosa, o guarda-livros, [e que foi um dos fundadores do MLG - Movimento de Libertação da Guiné e um dos primeiros contactos políticos de Amílcar Cabral, tendo feito reuniões clandestinas, na sua casa, com o próprio Amílcar Cabral e outros nacionalistas guineenses, segundo informação do Leopoldo Amado (1)], está na segunda fila à direita; à sua frente, o 2º da direita é o Toi Cabral. Os restantes elementos da foto são alguns (quase todos) dos empregados do escritório da NOSOCO em Bissau (MD)

Foto: © Mário Dias (2006) . Direitos reservados

Guiné-Bissau > Bissau > Fortaleza da Amura (ou de São José da Amura> Talhões dos Heróis da Pátria, ao lado do Mausoléu de Amílcar Cabral > Túmulo do Domingos Ramos (1935-1966) que fez a recruta, em 1959, com o Mário Dias, tendo os dois frequentado, juntos, com aproveitamento, o 1º CMS - Curso de Sargentos Milicianos, organizado na Guiné. Promovidos a 1ºs cabos milicianos, separaram-se em Novembro de 1959: o Domingos foi para Bolama dar uma recruta, o Mário ficou em Bissau (2).

O Mário Dias, sargento dos comandos do Exército Português, sempre o considerou como amigo. Encontraram-se pela última vez, em 1965, nas matas do Xitole. Reconheceram-se, cumprimentaram-se por sinais, e afastaram-se, com os seus homens, sem uma única troca de tiros... Uma das histórias mais bonitas da amizade em tempo de guerra, entre dois homens que as circunstâncias separaram e colocaram em campos opostos, como amigos inimigos... Foi na região do Xitole, na zona
entre Amedalai e os rápidos de Cussilinta, perto da estrada Xitole-Aldeia Formosa-Mampatá... Vale a pena reler o segredo que o Mário guardou estes todos e revelou, em primeira mão, aos seus amigos e camaradas de tertúlia. Foi um dos momentos altos do nosso blogue (2).

Foto e legenda: © Luís Graça (2008). Direitos reservados



Guiné-Bissau > Bissau > Fortaleza da Amura > Homagem dos participantes do Simpósio Internacional de Guiledje a Amílcar Cabral e a outros heróis da luta de libertação nacional > 7 de Março de 2008

O Domingos Ramos morreu prematuramente em combate, em 10 de Novembro de 1966, em Madina do Boé, ao lado do cubano Ulisses Estrada (aqui presente, nesta cerimónia), tendo-se tornado num dos heróis da luta de libertação nacional. Sepultado no Boé, os seus restos mortais foram depois traslados para a Amura, o Panteão Nacional guineense. O Mário Dias sempre teve palavras de grande apreço e admiração pelo Domingos Ramos. Escreveu ele :"Se um dia tiver a oportunidade de regressar à Guiné, é meu firme propósito ir visitar a sua campa e prestar-lhe merecida homenagem. Não é pelo facto de termos combatido em campos opostos que deixei de ser seu amigo e de o admirar".

No dia 7 de Março de 2008, eu estive, juntamente com os demais participantes do Simpósio Internacional de Guiledje, junto aos túmulos dos heróis da luta de libertação nacional, entre eles, o Domingos Ramos. Tive um breve momento de recolhimento, em homenagem à sua memória, e não deixei de pensar nesse grande homem e grande português que é o nosso amigo e camarada Mário Dias, que viveu a sua adolescência e juventude em Bissau. Saiu da Guiné em 1966, como sargento comando (3).

Foto e legenda: © Luís Graça (2008). Direitos reservados

1. Mensagem do sargento dos comandos, na situação de reforma, Mário Dias, com data de 13 de Março de 2008. Era civil, em Bissau, quando em 1959 foi cumprir o seu serviço militar, juntamente com futuros dirigentes do PAIGC. Foi nomeadamente amigo de Domingos Ramos que desertou para o PAIGC (em Novembro de 1960).


Caro Luís e caros co-editores.

Depois de muito pensar e de muitas hesitações sempre me resolvi a "soltar este desabafo" que segue em anexo. Não é importante mas tive que fazê-lo para bem do meu equilíbrio emocional.

Um grande abraço para todos.

Mário Dias

Mário Dias


2. DESABAFO, por Mário Dias... [Ou o preço da mancarra no final dos anos 50]


Não tenho por hábito vir a terreiro debater afirmações produzidas na nossa Tabanca Grande. Acontece, porém, que um dilema se apoderou de mim pela dúvida que me tem assaltado em relação a dever, ou não, esclarecer afirmações que um tal Raul Fodé, de Empada, fez ao nosso prezado Zé Teixeira e que este reproduz num recente post (4).

Ao ler o referido post – e abro aqui um parêntese para dizer o agrado com que leio todas as intervenções do Zé Teixeira - fiquei perplexo com as afirmações do Raul Fodé no que se refere ao preço da mancarra dizendo que por um saco o comerciante de Empada lhe pagava “um peso”. Zé Teixeira, foste aldrabado. A não ser que os sacos fossem de meio quilo. Passo a explicar:

Nos meus tempos de empregado na NOSOCO, entre 1955 e 1959 ano em que fui para o serviço militar, comprei directamente aos indígenas muita mancarra, várias toneladas, sobretudo em Farim donde era escoada para os nossos armazéns em Binta e aí embarcada. Também em Bafatá exerci igual mister. Quando li que o tal comerciante de Empada pagava um peso por saco (um saco tem entre 15 a 20 quilos) fiquei, como se costuma dizer, “com a pulga na orelha”, pois me recordava perfeitamente que o preço praticado era à volta de dois pesos por quilo e era fixado anualmente por portaria do governo e publicado no Boletim Oficial.

Mas, como não gosto de fazer afirmações sem delas ter a certeza absoluta, pesquisei como pude na esperança de encontrar um Boletim Oficial da Província da Guiné. Não tive êxito mas, como quem procura sempre alcança, acabei descobrindo o sítio Memória de África onde no Boletim Semanal do Banco Nacional Ultramarino Nº 473 de 23 de Janeiro de 1958 se pode ler o seguinte no que se refere aos preços fixados para a compra e exportação de amendoim nesse ano:


Ao produtor indígena por Kg

- Nos portos de exportação.... 2$20

- Nos centros comerciais do interior

servidos por vias fluviais.....2$00

- Nas regiões fronteiriças:

Circunscrição de Gabú e Postos Administrativos

de Contuboel e de Cuntima..... 1$90


Recordo-me perfeitamente que, a quem ia entregar o produto nos nossos armazéns de Binta (porto de exportação), era paga a mancarra a 2$20 o quilo e isso acontecia tanto ao produtor directo como aos pequenos comerciantes, sobretudo libaneses, que a compravam nos seus estabelecimentos e utilizando camiões próprios ou alugados a transportavam para Binta.

Igualmente recordo de muitos dos produtores da área de Cuntima se deslocarem com os seus burros carregados de mancarra até Farim onde valia mais 0$10 por quilo do que no comércio daquela localidade.

Havia depois a cotação em bolsa que, por exemplo em 22 de Maio de 1958 (Boletim Semanal do BNU Nº 489), atingia o preço FOB de 52$50 a arroba (15 Kg.), ou seja, 3$50 o quilo. Para quem não estiver tão familiarizado com estes termos, FOB são as iniciais de free on board isto é, o preço do produto colocado a bordo e que era o pago pelo importador ficando as despesas do frete e seguro por conta deste.

Assim, conhecendo o hábito dos naturais da Guiné, capazes de andar longas distâncias só porque em determinada localidade um comerciante dava mais uns cobres pela mancarra ou os presenteava com o chamado labaremos (gorjeta ou qualquer tentadora oferta), estou em crer que o Raul Fodé faltou à verdade nas informações que prestou ao nosso querido Zé Teixeira. Não sei quem seria o comerciante a que se referiu. Eu conheci pessoalmente um comerciante de Empada, em 56 e 57, que se deslocava frequentemente a Bafatá efectuando inclusivamente alguns negócios com a NOSOCO onde eu trabalhava. Era um homem relativamente pequeno e magro. O nome já se me varreu da memória embora o seu aspecto e fisionomia estejam bem presentes. Creio ser Lúcio.

Também o referido post - até pelo subtítulo “Um exemplo de exploração colonial” - pretende reduzir a dita exploração (que de facto existiu e existe um pouco por todo o mundo) à ideia simplista de o colono rouba e o indígena é roubado. Ora, as coisas não são assim tão lineares porque a tentativa de enganar existia nos dois lados e era consequência uma da outra. Posso afirmá-lo com a relativa autoridade que me advém da experiência decorrente dos muitos anos em que na Guiné trabalhei no comércio. Alguns exemplos:

Cheguei a Farim em 1954 como empregado da NOSOCO onde na época da campanha da mancarra nós a comprávamos em grandes quantidades. No quintal do estabelecimento existia uma balança para pesar os sacos, balaios e outros recipientes com a mancarra transportada, pagando-se de seguida o respectivo valor ao proprietário. A primeira vez que fui para a balança, todo eufórico, pesei dois sacos que o agricultor transportava num burro e paguei rigorosamente a importância correspondente ao peso exacto da mercadoria. De imediato o Sissau Sama, um mandinga meu colega de trabalho, muçulmano íntegro e que sendo mais velho foi para mim como que um pai, me chamou à parte e repreendeu dizendo que o negócio não podia ser feito assim pois deveria ter tirado alguns quilos ao peso. Porquê? - perguntei-lhe. Ele colocou aqueles dois sacos à parte e disse-me que depois me explicava.

No fim do dia de trabalho pegou nos dois sacos e despejando-os numa tarara procedeu à sua limpeza. Quando terminou, o autêntico lixo daí resultante (pauzinhos, cascas, pequenas pedras, etc) foi pesado: 4 quilos. Fiquei pasmado! Vês? - disse ele. - Temos sempre de tirar alguns quilos no peso porque depois de limpa a quebra é grande e, como antes do embarque em Binta, toda a mancarra é passada na tarara porque os importadores são exigentes, a diferença, em muitas toneladas, seria grande e o gerente da firma responsabilizava-nos.
- Há ainda outra coisa que devemos ter em conta - acrescentou- A mancarra quando é trazida para cá está ainda muito húmida e por vezes até a molham para pesar mais. Depois ela seca no armazém e ao ser pesada para o embarque (a pesagem era fiscalizada pela guarda fiscal e alfândega) não corresponde ao que está registado no livro de aquisição.Por isso temos que nos defender das inevitáveis quebras.

Sabiam os camaradas que a Guiné foi exportadora de apreciáveis quantidades de cera e borracha até finais dos anos 50? E que essa exportação terminou porque os importadores deixaram de adquirir devido às vigarices dos produtores?

No que se refere à borracha, era apresentada no formato de novelos, como os de lã –salvaguardadas as devidas proporções. Os fios eram bastante grossos, sensivelmente com dois ou três centímetros de espessura, e com eles eram feitos novelos que atingiam as dimensões de uma bola de futebol. Recordo-me que eram bem pesados. Pois essa exportação terminou porque os inocentes produtores enrolavam a borracha em torno de uma pedra e até de pedaços de ferro para aumentar o peso. Com este estratagema causaram graves prejuízos à indústria pois alguma maquinaria que processava a borracha foi danificada. E assim a Guiné deixou de exportar borracha.

Algo de semelhante se passou com a cera. Os importadores exigiam que fosse exportada em blocos com dimensões normalizadas e isenta de qualquer tipo de impureza. Aí começou a “dor de cabeça” dos comerciantes exportadores porque quando a compravam aos indígenas ela era tudo menos limpa. Assim, viam-se na necessidade de a purificar.

Em Bafatá –certamente alguns estarão recordados- havia um comerciante, de seu nome João Batista Pinheiro, cujo estabelecimento comercial e residência se situava na parte baixa da vila numa casa de primeiro andar ao lado do mercado. No estabelecimento vendia-se e comprava-se de tudo como era hábito (ainda será?) na Guiné mas com a particularidade de ser também a farmácia lá da terra. Aí pontificava um sobrinho dele, o Albino, sensivelmente da minha idade e de quem eu era grande amigo. Aliás, a amizade era uma constante entre todos nós.

Voltando ao assunto da cera. No quintal, para onde os camiões podiam entrar através de um pórtico que passava por baixo da casa, o velhote João B. Pinheiro arranjou a sua fabriqueta para a depuração da cera. Sistema um tanto artesanal mas eficiente, consistia num enorme bidão de ferro onde era colocada a cera e seguidamente aquecido com uma fogueira por baixo a fim de que fosse derretendo. Quando esta já se encontrava no estado líquido era retirada cuidadosamente com o auxílio de um enorme caço de cabo bem comprido e vertida numas formas de madeira de formato e dimensões semelhantes às de fabricar blocos de cimento e previamente untadas com óleo de palma para facilitar a extracção uma vez arrefecida e solidificada. Desta maneira, como só era retirada a parte que se encontrava no estado líquido, ficavam no fundo todas as impurezas.

Parece que ainda estou a ver o velho João B. Pinheiro a vociferar impropérios cada vez que verificava a enorme quantidade de resíduos acumulados no fundo do bidão (terra, pregos, casca de árvores etc.) depois de retirada a cera aproveitável. O homem quase chorava e só não arrepelava os cabelos brancos porque os usava rapados. Lamentava o prejuízo enorme que a comercialização lhe dava e acabou por desistir. Como ele, muitos outros comerciantes deixaram de comprar cera e assim acabou a exportação.

Poderia citar outros casos mas estes são suficientes para lançar a pergunta: - Afinal, quem enganava quem?

Um outro assunto que merece reparo é o que está contido na frase “A Avenida principal de Empada estava plena de palacetes de estilo colonial...” (O sublinhado é meu)

O termo palacete é exagerado. As casas onde residiam os colonos eram sem dúvida melhores e mais confortáveis do que as palhotas dos indígenas mas não poderão considerar-se “palacetes”. Aliás, a questão da habitação está relacionada não exclusivamente ao poder económico mas também à própria maneira de ser e à cultura tradicional dos povos.

Eu conheci vários naturais da Guiné, africanos, que viviam em casas em tudo semelhantes às dos europeus. Outros mantinham-se na moranças tradicionais por opção própria. Cito um caso regressando ao Sissau Sama de Farim.

O Sissau tinha por mim grande estima e foi um conselheiro, um mestre que muito contribuiu para a formação do meu carácter. Tendo eu chegado com a bonita idade de 16 anos, ele preocupou-se com o meu comportamento que poderia não ser o mais adequado devido à falta de experiência e bom senso próprio dos verdes anos. Levava-me à sua morança situada na Morocunda (saída de Farim na estrada para Cuntima) depois de terminado o trabalho. Ensinava-me a forma como devia tratar as pessoas, a distinguir o certo do errado e apoiava-me em tudo. Jamais o esqueci nem esquecerei.

Pois o Sissau, como em geral todo o bom muçulmano, tinha 3 mulheres e era dono de enormes lugares de mancarra. (Aproveito para esclarecer que os campos onde era cultivada a mancarra se chamavam “lugares de mancarra”. Nas bolanhas cultivava-se o arroz). Acontecia que ele, melhor dizendo, as mulheres dele, só cultivavam uma pequena parte desses lugares. O suficiente, dizia ele, para ter algum dinheiro que lhe desse para a roupa, comida e mais nada.

Um dia sugeri-lhe que, se lavrasse a totalidade dos seus campos arranjaria dinheiro mais que suficiente para ter uma casa melhor. Poderia colocar telhas ou zinco em vez de colmo, pavimentar o chão, instalar electricidade, comprar um frigorífico (que na Guiné chamávamos geleira, djeladêra em criolo) e outros confortos semelhantes. Respondeu-me que não queria nada disso. Essas coisas eram para os brancos e eles gostavam mais de viver assim conforme estavam habituados.

Que dizer disto? Nada a não ser que não podemos forçar ninguém a viver segundo os nossos padrões e que por vezes pessoas que invejam o viver de outrem nem sempre se esforçam por melhorar a sua própria vida. Não precisamos de ir muito longe. Cá em Portugal existem muitas pessoas a viver em barracas de péssimas condições com grandes carros à porta, tv satélite e outras mordomias que muita gente que habita em casas normais e decentes, segundo os nossos padrões de vida, não têm.

Por aqui me fico porque esta lenga-lenga já vai longa e não quero aborrecer os caros tertulianos com as minhas lamentações. Acrescento que não pretendo de forma alguma criticar seja quem for mas somente prestar alguns esclarecimentos na tentativa de fazer ver que muitas das coisas que se dizem sobre a colonização não passam de estereótipos. Que houve erros, houve, nem tudo foi bom, não foi. Porém a colonização – prefiro chamar-lhe acção civilizadora - não pode ser posta em causa por eventuais erros de alguns porque, globalmente, não temos de que nos envergonhar. Por exemplo nos finais de 1974 Luanda, quando já lá se encontravam os líderes dos movimentos de libertação, recebeu vários jornalistas africanos curiosos para ver como se iria processar o futuro de Angola. A um jornalista do vizinho Congo perguntaram a sua opinião sobre o desenvolvimento daquelas terras bem como o ambiente do dia a dia. (Ainda não tinham começado os confrontos que depois opuseram MPLA, FNLA e UNITA). Pois o referido jornalista mostrou-se admirado com tudo o que viu dizendo: quem nos dera termos sido colonizados pelos portugueses.

E chega por hoje.

Mário Dias

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(1) Vd. postes de:

12 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCLXXXV: Antologia (24): Elisée Turpin, co-fundador do PAIGC (Élisée Turpin)

(...) "Para além das células, estabeleceram-se pontos focais, ou seja, elos de ligação no interior do País. Por exemplo, o elo de ligação em Farim era o Dionísio Dias Monteiro; em Bolama era Carlos Domingos Gomes (Cadogo Pai); em Catió era Manuel da Silva.

"Lembro-me de algumas pessoas que se movimentavam na altura como activistas políticos e muitos deles envolvidos na criação do Partido: Amilcar Cabral, Aristides Pereira, Rafael Barbosa, Luís Cabral, Abílio Duarte, Fernando Fortes, João Rosa, Inácio Semedo, Victor Robalo, Júlio Almeida, João Vaz, Domingos Cristovão Gomes Lopes.

Contudo, no dia 19 de Setembro de 1956, na fundação (criação formal do Partido, denominado PAI - Partido Africano da Independência), compareceram apenas 6 pessoas: Amilcar Cabral, Aristides Pereira, Luís Cabral, Fernando Fortes, Júlio Almeida, Elisée Turpin" (...)

26 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DLXXXIX: Pidjiguiti: resposta do Mário Dias ao Leopoldo Amado

(...) "Reiterando os meus agradecimentos e admiração ao Leopoldo Amado, termino respondendo à sua estranheza por eu não ter referido a presença no cais do Pidjiguiti do Domingos Ramos, Constantino Teixeira e outros soldados africanos. Claro que eles lá estiveram, não no recinto do cais propriamente dito, mas nas imediações do mesmo tal como os restantes soldados. Eles faziam parte da companhia que regressava do aeroporto e para lá foi desviada.

(...) "Como tem sido recentemente muito referido o João Rosa, guarda-livros (actualmente designados contabilistas ou técnicos de contas) da NOSOCO, resolvi anexar uma fotografia tirada em Bissalanca na despedida do gerente da referida firma, monsieur Boris, que nesse dia regressava a Paris (está ao centro de fato e gravata). O João Rosa está na segunda fila à direita; à sua frente, o 2º da direita, é o Toi Cabral. Não sei se será o mesmo que o Luis Cabral refere como um dos principais obreiros na fuga do Carlos Correia. Gostaria obter essa confirmação mas não sei como consegui-la. Os restantes elementos da foto são alguns (quase todos) dos empregados do escritório da NOSOCO em Bissau (...).

Segundo o historiador e membro da nossa tertúlia Leopoldo Amado, o nacionalista João da Silva Rosa terá morrido às mãos da PIDE, em Abril/Maio de 1961.

João Rosa começou por ser um dos fundadores do MLG - Movimento de Libertação da Guiné, que antecedeu a criaçõ do PAIGC: Vd. poste de 25 de Fevereiro de 2006 >
Guiné 63/74 - DLXXXVI: Simbologia de Pindjiguiti na óptica libertária da Guiné-Bissau (Leopoldo Amado) - II Parte

(...) " João Rosa, um dos líderes históricos do MLG lembra (segundo o seu auto de interrogatório na PIDE datado de 1962) de ter integrado este movimento a convite de José Francisco Gomes e de ter participado na primeira reunião do MLG em princípios de 1958, na qual estiveram igualmente César Fernandes, Ladislau Lopes, este último mobilizado por Rafael Barbosa, elemento que viria a revelar a grande veia mobilizadora, chegando mesmo a protagonizar em entre 1959 e 1959 uma rotura que praticamente definhou a estrutura residual do MLG em Bissau" (...).

(...) "Na sua meteórica passagem por Bissau, Amílcar Cabral acordou com os seus principais colaboradores, na altura Aristides Pereira, Luís Cabral, Fernando Fortes, Rafael Barbosa e João da Silva Rosa em como largaria tudo e seguiria para a República da Guiné (Conakry) de onde enviaria directrizes. Efectivamente, a decisão de Amílcar Cabral de escolher um poiso de apoio na Guiné-Conakry foi devidamente sustentada com o exemplo de Pindjiguiti, pois que para ele era a prova iniludível da natureza permanentemente violenta do sistema colonial que, sintomaticamente, tinha maior força nos centros urbanos, donde a razão porque era preciso proceder a uma extensa e meticulosa preparação para a guerra de libertação e a mobilização dos camponeses para responder com violência à violência colonial" (...)..

(2) Vd. postes do Mário Dias (e outros) sobre o Domingos Ramos:

2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCI: Domingos Ramos, meu camarada e amigo (Mário Dias)

2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIII: Domingos Ramos e Mário Dias, a bandeira da amizade (Luís Graça / Mário Dias)

2 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDXCIV: O segredo do Mário Dias, ex-sargento comando

12 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2343: PAIGC - Quem foi quem (5): Domingos Ramos (Mário Dias / Luís Graça)

20 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2461: Blogoterapia (38): Dois heróis, dois homens com valores, Domingos Ramos e Mário Dias (Torcato Mendonça)

(3) Vd. outros postes do Mário Dias:

(i) Memórias de Bissau:

9 de Fevereiro de 2006 > Guiné 63/74 - DXII: Memórias do antigamente (Mário Dias) (1): Um cabaço de leite

19 de Fevereirod e 2006 > Guiné 63/74 - LDXVI: Memórias do antigamente (Mário Dias) (2): Uma serenata ao Governador

15 de Março de 2006 > Guiné 63/74 - DCXXX: Memórias do antigamente (Mário Dias) (3): O progresso chega a Bissau


(ii) Op Tridente (Ilha do Como, Janeiro-Março de 1964):

15 de Janeiro de 2006 > Guiné 63/74 - CDLI: Falsificação da história: a batalha da Ilha do Como (Mário Dias)

17 de Novembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCXCV: A verdade sobre a Op Tridente (Ilha do Como, 1964)

15 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXII: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): Parte I (Mário Dias)

16 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXV: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): II Parte (Mário Dias)

17 de Dezembro de 2005 > Guiné 63/74 - CCCLXXX: Op Tridente (Ilha do Como, 1964): III Parte (Mário Dias)

(4) Vd. poste de 17 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2545: Blogoteria (41): Guileje, Gadamael, Mata do Cantanhez... e a memória das gentes (José Teixeira)

(...) Disse-me ele:
- A região do Tombali, tal como a de Forreá, foram outrora muito ricas em arroz, milho, madeiras, peixe, etc. As etnias tinham os seus chefes, as suas normas e conseguiam entender-se de modo a que tudo estava bem. Chegaram os brancos vindos de Bissau, a produção aumentou muito, desenvolveu-se a produção da mancarra, que deu cabo da terra. A população começou a trabalhar para os brancos, dividiu-se e lentamente empobreceu, apesar de trabalhar e produzir muito mais. Os brancos, esses, ganharam muito dinheiro. Repara, eu, Fodé, vou na bolanha, com mulheres e filhos, rasgo a terra e semeio mancarra. Arranco as ervas más, cavo a terra para amolecer e provocar o enraizamento, passo lá todo o tempo a defender de animais e do bandido. Quando está seco, corto separo e ensaco, transporto para loja do branco, que me paga um peso [moeda antiga que correspondia a um escudo] por saco. Quando chega o barco, tenho de fazer o transporte desde a loja do branco. Isto é tudo trabalho meu. Agora sabes quanto recebe o branco por cada saco de mancarra ?
- Dois pesos - disse eu convictamente.
- Dois? Era bom! Por cada saco de mancarra, cultivada, secada, ensacada e embarcada por mim, o branco recebe quinze pesos" (...).

Guiné 63/74 - P2643: III Encontro Nacional da Tertúlia em Monte Real (1): Abertura de inscrições (C. Vinhal e J. Mexia Alves)

Caros Tertulianos

Temos que começar a pensar no nosso III Encontro Nacional.

O Joaquim Mexia Alves, que se propõe organizar tudo o que disser respeito ao almoço, estadia para quem quiser ficar uma ou mais noites na zona de Monte Real e um local de convívio e trabalho durante a tarde para discutir assuntos do Blogue, tem livres os dias 19 de Abril, 3; 17 e 24 de Maio.

Porque o tempo urge, aceitamos desde já inscrições com indicação do número de acompanhantes e escolha da data preferida. Esta escolha é para auscultação da tertúlia e a data do encontro deverá ser a mais votada. Devem indicar também se necessitam de estadia e em que noites.

Lembro que os nossos amigos tertulianos não ex-militares, fazem parte desta grande família, pelo que a sua presença no Encontro será para nós uma honra.

As inscrições podem desde já ser enviadas para o camarada Joaquim Mexia Alves, e-mail joquim.alves@gmail.com com conhecimento a mim, para o meu endereço carlos.vinhal@oniduo.pt

Ao vosso dispor para qualquer escarecimento ficamos

Carlos Vinhal e
J. Mexia Alves

Guiné 63/74 - P2642: Fórum Guileje (5): Que sentido dar a esta vaga de fundo ? Da guinefobia à guinefilia (Hélder de Sousa / Luís Graça)

Guiné-Bissau > Bissau > Fortaleza da Amura > Simpósio Internacional de Guiledje > 7 de Março de 2008 > Piquete de dia, prestando homenagem aos grandes Combatentes, já falecidos, da Liberdade da Pátria, junto ao mausoléu de Amílcar Cabral... (LG)

Foto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados

1. Mensagem do Helder Sousa , ex-Fur Mil de Transmissões TSF (Bissau e Piche 1970/72), que me foi enviada há já algum tempo, ainda antes da minha partida para a Guiné, como participante do Simpósio Internacional de Guileje...

Nota do editor:

Sinto que há uma certa oportunidade editorial em publicar esta mensagem neste momento (1). Espero que isso nos ajude a gerir melhor as nossas emoções e gerar mais e melhores ideias para o futuro... O Hélder Sousa, que vive em Setúbal e que nunca mais voltou à Guiné (nem sei se tem vontade de lá voltar), toca aqui, com sabedoria e serenidade, nalguns pontos sensíveis, em que facilmente nos revemos. Por exemplo, a nossa amizade para com a Guiné e a população guineense pode (e deve) ser mais proactiva, mais solidária ? Seria bom reflectirmos sobre isso... LG

Luís:

Em anexo remeto um pequeno texto que tinha a pretensão de ser o início das histórias que queria enviar para o Blogue.

Como tem o aspecto de ser mais um texto de reflexão do que descritivo, acabei por não o desenvolver e não o utilizar.

Entretanto, ao reler o que lá está, e tendo em conta o Simpósio [Internacional de Guileje] e a viagem de inúmeros camaradas à Guiné e particularmente a Guiledje, decidi partilhá-lo porque me parece que estão lá dois ou três aspectos relevantes e que têm a ver com o momento e a envolvência do evento que irá ocorrer.

Trata-se de avançar com possíveis explicações para o rememorar da guerra em geral e da Guiné em particular, do efeito que o Simpósio pode ter no lançamento de novas e consistentes iniciativas e também do ricochete que toda esta dinâmica e este envolvimento não deixarão de fazer no Blogue.

Um abraço


Hélder Sousa


2. Contributo: Alguns antecendentes,
por Hélder Sousa:


Antes de relatar a minha passagem pela Guiné devo fazer algumas considerações sobre um conjunto de questões e circunstâncias que acho que têm relevância para o enquadramento, tanto mais que alguns desses aspectos são, de vez em quando, abordados no Blogue, nomeadamente as questões da consciência política dos militares nossos contemporâneos e o problema dos refractários e desertores.

Por outro lado há um outro fenómeno que muito me tem interessado. Trata-se da aparente vaga de fundo que a questão da guerra colonial tem conhecido recentemente, nos seus vários aspectos, traumáticos, saudosistas, gloriosos, heróicos, altruístas, generosos, solidários, etc., de que o nosso Blogue (e não só) tem feito eco.

É claro que o efeito Guiné é fortemente aglutinador pois aquele pequeno território teve (tem) o condão de não permitir que quem lá esteve, viveu, lutou e sofreu, lhe seja indiferente. Marcou muito profundamente todos os que por lá passaram, fossem quais fossem as suas circunstâncias, pelo que, mais do que qualquer outro lugar por onde os jovens portugueses foram chamados a cumprir o serviço militar, a Guiné une, e o seu apelo faz com que muitos dos que até aqui optaram pelo silêncio, por tentar esquecer, por evitar falar daquilo que se viveu no nosso vietnamezinho, venham agora relatar em apontamentos autênticos, sofridos, em livros, em memórias, etc., aquilo que finalmente pode constituir o verdadeiro levantamento da História da Campanha da Guiné, no Século XX.

O facto do território ser relativamente pequeno, das acções abrangerem praticamente toda a sua extensão, de ser facilmente do conhecimento geral os problemas, dificuldades, desaires e êxitos, passados em qualquer um desses lugares, principalmente dos mais badalados cujos nomes eram sempre pronunciados com respeito (Morés... Oio... Guileje... Guidaje... Gandembel... Aldeia Formosa... e tantos outros), faz com todos se sintam fraternamente unidos, para além dos limites das suas próprias Unidades, e daí o êxito do nosso Blogue que teve a feliz ideia de criar a Tabanca Grande onde todos podem caber.

Essa é uma das razões pelas quais o Blogue terá que perspectivar, mais cedo ou mais tarde, o sentido que todo este entusiasmo, este querer, esta maneira de dizer presente, irá tomar.

Sabemos que não devemos, não podemos nem queremos imiscuir-nos nas questões internas de outros povos (além disso, temos também muita coisa para fazer por cá, certamente), mas lá que talvez se possa contribuir para dar um novo impulso àquela terra isso certamente também haverá muita vontade, e acho que o famoso Projecto Guiledje poderá ser a porta de entrada para o caminho a percorrer.

Entrando agora nas questões mais pessoais devo dizer que, quando fui para a tropa, já a guerra ia com os anos suficientes para que várias fornadas de jovens tivessem passado por lá, já se conheciam bem os efeitos que isso ia fazendo nas famílias, já tinha passado o entusiasmo com que alguns responderam ao apelo de para Angola, já, e em força!... Por altura do Verão de 1969, quando ingressei em Santarém para o 1º Ciclo do CSM, a palavra Guiné era pronunciada com toda a reverência e era sinónimo de local de grande sofrimento e de temor por parte das famílias.

Em Santarém, na minha recruta, a preparação parecia ser feita de modo orientado para a actuação na Guiné, disso mesmo os oficiais que nos instruíam faziam alarde, quando passávamos o tempo enfiados nos charcos à beira-Tejo da Quinta das Ómnias, nos lameiros e mesmo nos paúis, sempre nos iam dizendo que era para não estranharmos quando chegássemos à Guiné, que seria certamente o nosso destino mais provável. Neste aspecto devo confessar que, do ponto de vista militar, psicológico e preparatório, e mesmo operacional, quem fez a 3ª incorporação de 69 do CSM em Santarém teve uma preparação bastante mais adequada do que sei que foi ministrada noutros locais e em outras ocasiões.

3. Comentário de L.G.:

Tens faro de sociólogo, camarada!... De facto, como interpretar esta tendência, esta aparente vaga de fundo, como tu lhe chamas ? Será que a Guiné passou a estar na moda ? Redescobrimos a Guiné, 500 anos depois ou 50 anos depois ? Passámos da guinefobia (com a guerra colonial ou guerra do ultramar) para a guinefilia (com o desencanto dos guineenses, e de nós próprios, com os últimos trinta anos da Guiné-Bissau como país independente) ? Guinefilia ou paixão serôdia, extemporânea, quiçá patológica... ? O que leva alguns de nós a voltar à Guiné, uma, duas, três e até mais vezes ?

Eu tenho a minha teoria, mas não quero estragar o efeito surpresa, não quero, com a minha opinião, enviesar o debate, não quero que me interpretem como sendo politicamente correcto, cinzentão, asséptico... Não quero muito simplesmente ser ideólogo de coisa nenhum... Não quero sobretudo desencantar os que nutrem pela Guiné e pelo seu povo uma genuína amizade, uma grande compaixão, a par de uma crescente preocupação pelo seu futuro como país independente, respeitável e respeitado, no seio das Nações...

Continuo, de resto, a fazer votos para que a nossa Tabanca Grande seja isso mesmo: uma aldeia suficientemente grande, onde todos nós (ou quase todos nós) possamos caber e sentirmo-nos relativamente confortáveis, na presença uns com os outros... Como aconteceu na semana de 29/2 a 7/3/2008, em Bissau e em Iemberém (um verdadeiro oásis no deserto!), a umas largas dezenas de portugueses e outros estrangeiros convidados por guineenses... Ao terceiro dia, e antes do galo cantar, eu já estava a lembrar ao Pepito:
- Há um provérbio português que diz Ao fim de três dias, o peixe e o hóspede fedem... E há outro que acrescenta, mais sibilamente: Duas alegrias os hóspedes nos dão: quando chegam e quando se vão...

Pois os nossos amigos guineenses, que têm um elevado sentido da hospitalidade africana, quase ficaram ofendidos... Mas eu sei que a AD, a ONG do Pepito que arcou com a principal responsabilidade da organização do Simpósio, praticamente ficou paralizada, nas últimas semanas, com a mobilização total dos seus quadros, colaboradores e funcionários e a sua afectação ao planeamento, organização e realização do Simpósio...

Agora é a altura de fazer o balanço e voltar à normalidade. Para uns e para outros... Da nossa parte, ficam responsabilidades acrescidas... Para alguns, quiçá mais pessismistas e agoirentos, não é bom libertar as abelhas selvagens no mato: podem cair-nos em cima... Ou, continuando a falar em termos metafóricos, senhores ex-combatentes, não brinquem com o fogo, não abram a caixa de Pandora, que os mortos estão enterrados, as feridas saradas e os vivos já arrumaram... as botas...

__________

Nota de L.G.:

(1) Vd. postes anteriores:

12 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2626: Fórum Guileje (1): E Cameconde ? Cabedu ? E a nossa Marinha ? (Manuel Lema Santos / Jorge Teixeira / Virgínio Briote)

12 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2628: Fórum Guileje (2): Nunca uma guerra foi feita de uma só batalha (Mário Fitas)

13 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2629: Fórum Guileje (3): A Marinha esteve como peixe dentro de água no CTIG, e teve um papel logístico fundamental (Pedro Lauret)

14 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2638: Fórum Guileje (4): Minas aquáticas em Bedanda (Ayala Botto)

sexta-feira, 14 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2641: Normalização da comunicação entre o Blogue e os tertulianos (Carlos Vinhal)

Caros camaradas e amigos tertulianos

Com muita frequência, são devolvidas mensagens enviadas a alguns dos nossos tertulianos, por vários motivos, a saber: endereços desactivados ou desconhecidos, caixas de correio cheias, etc.
A isto, provavelmente junta-se alguns camaradas e amigos que não serão contactados por omissão nossa.

Assim, tomamos a liberdade de tornar público alguns dos camaradas e amigos tertulianos, cujas caixas de correio rejeitam a nossa correspondência, para que os mesmos nos informem dos seus endereços actualizados.

É o caso dos:
Eduardo Santos
Artur Ramos
João Varanda
Manuel Melo
Sadibo Dabo
Ernesto Ribeiro
Mário Armas de Sousa
José Belo
Maurício Nunes Vieira
Fernando Gomes Carvalho

Pedimos àqueles que fazem parte da lista de tertulianos existente no lado esquerdo da nossa página e não recebem a nossa correspondência, o favor de nos contactarem, indicando o endereço de mail actualizado e preferencial.

Aos que têm mais do que um endereço e queiram que retiremos da lista algum deles, nos informem dessa vontade.

Quem quiser pode fornecer o seu contacto telefónico para constar da lista dos tertulianos.

Nunca é demais pedir que utilizem o endereço do Gmail (luisgracaecamaradasdaguine@gmail.com) exclusivamente para assuntos do Blogue. Qualquer outro assunto deve ser enviado só para os endereço pessoais dos editores.

Por uma questão de segurança e servindo como redundância, os trabalhos para publicação podem ser enviados para o Gmail e para os endereços pessoais dos editores.

Devem enviar as mensagens de grupo com os endereços na linha BCC ou CCO conforme o caso.

Sempre que um assunto tratado em mensagem for de carácter privado ou não publicável por vontade do remetente, devem manifestar esse impedimento.

Estamos abertos a sugestões que melhorem o nosso relacionamente por correio electrónico.

Vai ser enviada a todos uma lista actualizada dos tertulianos, com as alterações efectuadas devidamente assinaladas.

O vosso camarada e amigo
Carlos Vinhal

Guiné 63/74 - P2640: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (5): Um momento de grande emoção em Gandembel


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > Visita dos participantes do Simpósio Internacional de Guiledje > 1 de Março de 2008 > O nosso querido amigo e camarada Zé Teixeira, aqui ao lado da Senhora Ministra dos Combatentes da Liberdade da Pátria, Isabel Buscardini, protagonizou um dos momentos altos do dia: a homenagem a todos os heróis de Gandembel, de um lado (NT) e do outro (PAIGC).


Fotos, vídeo e texto: © Luís Graça (2008). Direitos reservados


Da Ponte Balana ao antigo aquartelamento de Gandembel é um saltinho (1). A caravana automóvel parou e fez uma visita, demorada, ao que resta - já muito pouco - do aquartelamento construído pelo Idálio Reis e os seus homens-toupeiras da CCAÇ 2317 (2).


Aqui fica o registo do emocionado discurso, neste lugar mítico, do José Teixeira, que foi 1.º Cabo Enfermeiro na CCAÇ 2381 (Buba, Quebo, Mampatá e Empada ,1968/70), hoje bancário reformado, vivendo em Matosinhos, e que veio de jipe, com mais outros camaradas, atravessando Portugal, a Espanha, Marrocos, a Mauritânia, o Senegal, a Gâmbia e a Guiné-Bissau, para estar aqui hoje, connosco:


"Gandembel... Neste lugar, que para mim foi a referência maior e mais importante que me obrigaram a viver.

"Quero recordar e saudar os camaradas portugueses que, na sua maioria, lutaram nesta terra, de G3 na mão, para salvar a própria vida.

"Recordar e saudar os guineenses que, a meu lado, lutaram convictos que estvam do lado certo da contenda. Quantos deles deram a vida na sua Pátria, pela minha Pátria, Portugal.

"Recordar e saudar a população maravilhosa, alegre e comunicativa, que nos acolheu, na sua terra, nas suas tabancas, nas suas moranças, sempre com um sorriso, com carinho.

" Recordar e lembrar milhares de jovens, de ambas as frentes, que regaram com o seu sangue esta terra, para que dela pudesse surgir uma árvore, a árvore da liberdade.

"Recordar e lembrar as populações, crianças, jovens e menos jovens, anciãos, que foram envolvidos nesta terrível luta de vida ou de morte e nela, inocentemente, muitos perderam a vida.

"Foi aqui em Gandembel que eu senti verdadeiramente o que era a guerra para onde me tinham empurrado. Visitei três vezes este lugar em colunas de reabastecimento oriundas de Buba / Aldeia Formosa, e na recolha da CCAÇ 2317, que fez nascer Gambembel, aqui viveu oito longos meses, para depois abandonar cumprindo estratégias e ordens superiores.

"Eu, aqui bem perto, em Mampatá Forreá, ouvia os estrondos da guerra que aqui se vivia. Gandembel, Guileje, Gadamael, Mejo ou Cacine. Rara era noite ou dia que não havia 'manga di sakalata'. [muito chocolate, porrada]

"De um lado tínhamos os heróis da resistência. Do outro os heróis da persistência. Onde a esperança nunca morria. Se um camaradas era ceifado por uma bala ou estilahço traiçoeiros, logo outro se levantava para continuar a luta.

"Dois povos em luta. A da vossa e da nossa liberddae, vistas de prismas diferentes. Nós, Portugueses, na sua maioria queríamos que os dois anos de Comissão acabassem depressa. Vós queríeis correr-nos daqui para fiora. Estávamos tão perto quanto aos objectivos pessoais e tão longe quanto aos meios para atingirmos esses mesmos objectivos.

"Vocês gritavam do lado de lá da floresta: 'Tugas, ides-vos embora!'...

"Gandembel foi um marco histórico. À capacidade estóica de resistência dos camaradas da CCAÇ 2317, juntava-se a teimosia e persistência de um inimigo que, sentindo a terra como sua, jamais desistiu da luta, que se tornou mais mortífera..

"Trouxe de Portugal uma pequena planta que quero plantar aqui em Gandembel. Quero que simbolize o espíritio de todos os que aqui lutaram. Todos os que aqui derramaram o seu sangue, sem distinção de raça ou cor.

"Quero que simbolize o espírito de paz e fraternidade que todos queremos alimentar. Quero que simbolize a esperança na construção de uma Guiné Bissau melhor. Onde haja pão para todos, saúde para todos, justiça social para todos.

"De mãos dadas, fiquemos um minuto de silêncio Relembremos todos quantos deram op seu sangue nesta terra. Quem tem fé, encomende-os a Deus, Pai e Criador, para que descansem em Paz".


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 1 de Março de 2008 > Visita, a pé, ao antigo aquartelamento da CCAÇ 2317, construído em escassos meses, entre Abril de 1968 e Janeiro de 1969, abandonado pelas NT e destruído pelos sapadores do PAIGC... Gandembel/Balana era um espinho encravado no Corredor do Povo (para os portugueses, Corredor da Morte)... Na imagem, em primeiro plano, comandante de mar-e-guerra Pedro Lauret...

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 1 de Março de 2008 > Visita aos restos do aquartelamento da CCAÇ 2317, construído entre Abril de 1968 e Janeiro de 1969... Em primeiro plano o Cor, na situação de reserva, Coutinho e Lima, que em 22 de Maio de 1973 deu ordem para abandonar Guileje, na qualidade de comandante do COP 5...



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 1 de Março de 2008 > Restos de um abrigo do aquartelamento da CCAÇ 2317, construído com materiais fornecidos pela Engenharia Mulitar, entre Abril de 1968 e Janeiro de 1969...



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 1 de Março de 2008 > Um pedaço do brazão, em cimento, da CCAÇ 2317, os Dragões Dourados...


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 1 de Março de 2008 > O Zé Teixeira trouxe de Portugal uma planta que não precisa de terra, alimentando-se do oxigénio... "Quero que simbolize o espírito de paz e fraterbidade que todos queremos alimentar"...

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 1 de Março de 2008 > Um voluntário sobe a uma árvore para prender a planta do Zé Teixeira...



Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 1 de Março de 2008 > Restos do aquartelamento da CCAÇ 2317, construído entre Abril de 1968 e Janeiro de 1969... Por aqui passou um pára-quedista, com o nome de guerra TIGRE... Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 1 de Março de 2008 > Local onde estava o pau da bandeira, no meio da parada (?)... Restos de munições: 1 granada de RPG-7, metralhadora pesada Brownning, espingarda automática G-3, provenientes do Núcleo Museológico de Guiledje...


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 1 de Março de 2008 > As explicações do Pepito... Sob a liderança da AD - Acção para o Desenvolvimento, tem sido feitas escavações em antigos aquartelamentos militares portugueses do sul da Guiné, tais como Guileje e Gandembel...

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 1 de Março de 2008 > Vista do perímetro do antigo aquartelamento da CCAÇ 2317 (Abril de 1968-Janeiro de 1969)... Em menos de 40 anos, a natureza voltou a exercer os seus direitos sobre as construções (efémeros) dos homens... Mas grande parte do recinto foi capinado e limpo...

Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 1 de Março de 2008 > O antigo paiol, subterrâeno, da CCAÇ 2317... Depois do abandono do aquartelamento, em finais de Janeiro de 1969, Gandembel foi ocupado pelos guerrilheiros do PAIGC e as suas instalações destruídas por equipas de sapadores.


Guiné-Bissau > Região de Tombali > Gandembel > 1 de Março de 2008 > O antigo espaldão do morteiro pesado 81... O PAIGC usava o 120...


O Idálio Reis e os esquecidos mas heróicos sobreviventes de Gandembel/Balana mereciam esta (pequena) homenagem dos seus seus camaradas e amigos, portugueses. Mas também, através do gesto e das palavras do Zé Teixeira, prestar homenagem à persistência, à determinação, ao génio organizativo, à vontade de vencer e à coragem dos combatentes do PAIGC que pagaram um alto preço pela conquista de Gandembel/Balana, posição abandonada pelos portugueses em Janeiro de 1969.

Gandembel/Balana (1968/69) será, doravante, recordada como a mais silenciosa, prolongada e feroz batalha de toda a guerra, que envolveu diversas forças, incluindo tropas pára-quedistas. Foi um cerco prolongado que, do lado do PAIGC, preparou o caminho para a ofensiva, em Maio/Junho de 1973, contra Guidaje, Guileje e Gadamael...

O Idálio contou os ataques e flagelações neste curto tempo (para ele, um eternidade!) em que os homens-toupeira da CCAÇ 2317 construiram Gandembel/Balana, de raíz, com pás e picas, e defenderam-na, com unhas e dentes: nada mais, nada menos do que 372 ataques e flagelações, em menos de nove meses!...

De uma perspectiva sócio-antropológica da guerra colonial, Gandembel personifica a Síndroma do Estado de Sítio… Gandembel, Madina do Boé (que bem poderia ter sido a nossa batalha de Dien-Bien-Phu, Vietname, 1954), Guileje, Mansambo, Guidaje e tantos outros campos fortificados (a expressão é do PAIGC) foram, de facto, um verdadeiro Suplício de Sísifo para os combatentes portugueses.

O nosso blogue tem feito o que pode e o que deve para a dar conhecer a batalha de Gadembel e o suplício de Sísifo que foi a sua defesa, por parte das nossas tropas. Publicou nomeadamente um texto memorialístico, extenso, de grande riqueza humana, sociológica e historiográfica, escrito por uma homem dotado de excepcional capacidade de observação e de análise, mas também de serenidade e humanidade (que não mistura a razão e coração), o nosso camarada Idálio Reis, e que foi acompanhado de surpreendentes imagens que falavam por si. E irá recordar, no Simpósio Internacional de Guiledje, no dia próximo dia 5, os heróicos defensores portugueses de Gandembel...

Tínhamos prometido que, um dia, quando fôssemos à Guiné, tínhamos a obrigação de lá pôr uma flor, em Gandembel ou em Balana, aí onde tantos homens, de um lado e de outro, sofreram e morreram. A promessa foi cumprida por um de nós, o Zé Teixeira. E todos os restantes elementos da comitiva, guineenses, portugueses, cubanos e outros, que se deslocavam para Guileje, quiseram associar-se a este momento mágico e único, a este gesto de grande humanidade e sensibilidade.

Dali, de Gandembel/Balana, mandámos em pensamento um forte e comovido abraço para o Idálio Reis e para os demais homens-toupeira, os homens de nervos de aço, da CCAÇ 2317, onde quer que eles estivessem, neste dia 1 de Março de 2008, às 11h30. E ao meio dia partimos para o famoso corredor de Guiledje, corredor da morte, para uns, corredor da libertação, para outros... Será o tema da nossa próxima crónica.

Luís Graça


_________


Notas de L.G.:

(1) Vd. postes anteriores, no âmbito da nossa participação no Simpósio Internacional de Guileje:

8 de Março de 2008 >Guiné 63/74 - P2618: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (1): Regresso a Bissau, quatro décadas depois...

9 de Março de 2008> Guiné 63/74 - P2620: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (2): O Hino de Gandembel, recriado pelos Furkuntunda

9 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2621: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (3): Pequeno-almoço no Saltinho, a caminho do Cantanhez

11 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2625: Uma semana inolvidável na pátria de Cabral: 29/2 a 7/3/2008 (Luís Graça) (4): Na Ponte Balana, com Malan Biai, da RTP África


(2) Vd. postes de:

16 de Fevereiro de 2007 >Guiné 63/74 - P1530: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (1): Aclimatização: Bissau, Olossato e Mansabá

9 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1576: Fotobiografia da CAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (2): os heróis também têm medo

12 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1654: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (3): De pá e pica, construindo Gandembel

2 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1723: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (4): A epopeia dos homens-toupeiras

9 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1743: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (Idálio Reis) (5): A gesta heróica dos construtores de abrigos-toupeira em Gandembel

23 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1779: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (6): Maio de 1968, Spínola em Gandembel, a terra dos homens de nervos de aço

21 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1864: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (7): do ataque aterrador de 15 de Julho de 1968 ao Fiat G-91 abatido a 28

8 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1935: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (8): Pára-quedistas em Gandembel massacram bigrupo do PAIGC, em Set 1968

19 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1971: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (9): Janeiro de 1969, o abandono de Gandembel/Balana ao fim de 372 ataques

18 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2117: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/70) (Idálio Reis) (10): O terror das colunas no corredor da morte (Gandembel, Guileje)

10 de Outubro de 2007 > Guiné 63/74 - P2172: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/69) (Idálio Reis) (11): Em Buba e depois no Gabu, fomos gente feliz... sem lágrimas (Fim)

18 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2276: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (Idálio Reis) - Anexo I: Destacamento da Ponte Balana

18 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2277: Fotobiografia da CCAÇ 2317 (1968/69) (Idálio Reis) - Anexo II: Gandembel/Balana, Março de 2007 (Pepito)

Guiné 63/74 - P2639: O Simpósio de Guiledge na Voz da América. (Virgínio Briote)



Notícias em Português

O Factor Militar de Guiledge
Por Nelson Herbert
10/03/2008

Combatentes das forças armadas portuguesas e do movimento de libertação da Guiné-Bissau estiveram reunidos na semana finda, em Bissau, para uma evocação de Guiledje, um aquartelamento do então exército colonial português, capturado pela então guerrilha do PAIGC.

Considerado por alguns um marco determinante na viragem da guerra que culminaria na independência da Guiné, Guiledje foi, entretanto, encarado por alguns dos participantes na conferência, como apenas a consequência de um conjunto de factores que ditariam o seu desenlace.

É o caso, pois, do professor universitário e analista político, Fernando Delfim da Silva, que realçou os riscos que a excessiva exaltação daquela feito militar, em detrimento da componente política do mesmo processo libertador da Guiné poderá, eventualmente, ter num país, onde tem sido sintomática a omnipresença dos militares na vida política nacional.

Em Prof. Fernando Delfim da Silva - Download (MP3) Prof. Fernando Delfim da Silva - Ouvir (MP3)

Guiledje Trinta e Cinco Anos Depois

Por Nelson Herbert
10/03/2008

Foi num contexto militar problemático para as então forças armadas portuguesas no teatro das operações militares na Guiné, o último comandante da guarnição militar de Guiledje.
A 22 de Maio de 1973, face à pressão da guerrilha do PAIGC, o então major Coutinho e Lima ordena aos seus homens o abandono daquele aquartelamento militar no Sul da Guiné-Bissau. Uma decisão que teria por consequência a sua detenção e consequente destituição pelo então governador da Guiné, António de Spínola.


Trinta e cinco anos volvidos sobre os acontecimentos de Guiledje, Coutinho e Lima está de regresso à Guiné no quadro do Simpósio Internacional alusivo a Guiledje.
Hoje coronel do exército português na reserva, Coutinho e Lima acedeu falar do reencontro com os antigos inimigos e reconstituir aspectos da operação Guiledje.

Em
Coronel Coutinho e Lima - Download (MP3) Coronel Coutinho e Lima - Ouvir (MP3)

Guiné 63/74 - P2638: Fórum Guileje (4): Minas aquáticas em Bedanda (Ayala Botto)

1. Mensagem do Carlos Ayala Botto, hoje Cor Cav, na situação de reforma (1):

Caros amigos,

Em relação ao que nos diz o Manuel Lema Santos (2), posso acrescentar que ao tempo em que eu era o Comandante da CCAç 6 em Bedanda, apareceram, ao que suponho, as primeiras minas aquáticas e muito perto do porto de Bedanda. Foram detectadas absolutamente por acaso porque a maré tinha baixado mais do que o habitual e elas ficaram à vista. Foram desactivadas pelos especialistas da Marinha que se deslocaram de Bissau.

Normalmente o Cmdt do comboio (que era mensal) era o 2º Tenente da Reserva Naval Serradas Duarte, que até à pouco tempo esteve na Direcção do Teatro de S. Carlos.Não sei precisar a data mas creio ter sido no início de 1972.

Um abraço para todos
Carlos Ayala Botto

___________

Notas dos editores:

(1) 6 de Janeiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1407: Tertúlia: apresenta-se o Coronel de Cavalaria Carlos Ayala Botto, ajudante de campo do General Spínola

(2) Vd. postes anteriores:

12 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2626: Fórum Guileje (1): E Cameconde ? Cabedu ? E a nossa Marinha ? (Manuel Lema Santos / Jorge Teixeira / Virgínio Briote)

12 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2628: Fórum Guileje (2): Nunca uma guerra foi feita de uma só batalha (Mário Fitas)

13 de Março de 2008 > Guiné 63/74 - P2629: Fórum Guileje (3): A Marinha esteve como peixe dentro de água no CTIG, e teve um papel logístico fundamental (Pedro Lauret)

Guiné 63/74 - P2637: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (23): Buruntoni: um topázio muito pouco valioso

Guiné > Zona Leste > Sector L1 > Bambadinca > 1969 > O Fur Mil Op Esp Humberto Reis, da CCAÇ 12, junto aos brazões das unidades que passaram por Bambadinca, e ao pau ao da bandeira. Ao fundo, vê-se a escola onde leccionava e vivia a misteriosa professora do ensino primário, caboverdiana, Dona Violete, aqui evocada, mais uma vez, por Beja Santos, que fez dela uma informante privilegiada sobre a história e a cultura da região. O Humberto Reis, pro sua vez, é o principal contribuinte (líquido), em termos de créditos fotográficos, do livro do Beja Santos, Diário da Guiné: 1968/69: Na Terra dos Soncó (Lisboa: Temas & Debates, 2008), cujo lançamento no dia 6 de Março de 2008, na Sociedade de Geografia de Lisboa, foi um acontecimento literário e social... Os parabéns ao autor, Beja Santos, nosso querido amigo e camarada, à editora Temas & Debates / Círculo de Leitires e ao nosso querido co-editor Virgínio Briote que aproveitou para fazer uma reunião da nossa tertúlia... Quem perdeu este memorável evento fui eu, que estive no Simpósio Internacional de Guiledje, em Bissau... Aproveito para agradever publicamente, à Dra. Isabel Mafra, da editora Temas & Debates, a oferta de um exemplar do livro e as palavras amáveis que me dirigiu, a mim e ao nosso blogue... (LG)

Guiné > Zona Leste > Estrada Bambadinca-Bafatá > 1969 > Coluna da CCAÇ 12, a caminho de Bafatá, vendo-se ao fundo uma AM (autometralhadora) Daimler, do Pel AM Daimler 2046, instalado em Bambadinca, e que era comandado nesse tempo pelo Alf Mil Cav J. L. Vacas de Carvalho, nosso tertuliano de Montemor-o-Novo. A estrada Bambadinca-Bafatá era uma das poucas, na Guiné, que estava alcatroada. Para nós, era uma verdadeira autoestrada, originando acidentes (e alguns graves) por excesso de velocidade. Entre Junho de 1969 e Março de 1971, não me recordo de qualquer actividade da guerrilha neste troço: mina, emboscada, flagelação à distância... Ainda no nosso tempo, deu-se início à construção da nova estrada (alcatroada) Xime-Bambadinca. Este troço entre o Xime e Bafatá era de grande importância estratégica para os transportes terrestres na Zona Leste (Bafatá e Gabu). As Daimlers limitavam-se a fazer segurança à pista de aviação e, às vezes, às colunas logísticas para Mansambo e Xitole... Não sei se alguma vez chegaram ao Saltinho... A viagem a Bafatá era um passeio dominical... (LG).

Fotos: © Humberto Reis (2006). Direitos reservados.


Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), remetido em 2 de Janeiro de 2008:

Luís, enquanto aguardo as tuas notícias, aqui vai o episódio n.º 23. Seguem igualmente propostas de ilustrações. Lembrei-me, caso concordes, podíamos mostrar a imagem da escola, já em derrocada. Tens aí também fotografias do Vacas de Carvalho, do Xime e de Amedalai. Recebe um abraço do Mário.

Operação Macaréu à Vista - II Parte > Episódio XXIII: OPERAÇÃO TOPÁZIO VALIOSO
por Beja Santos


(i) O regresso a Bambadinca, vindo de Bissau

No Dakota, mal saímos de Bissalanca, comecei a escrever febrilmente no caderninho viajante: recordações maravilhosas de um jantar em Mansoa, pela primeira vez atravessei o rio na jangada em João Landim, os casais Payne e Rosa acertaram pormenores quanto à vinda da Cristina; anoto que é urgente ter resposta se Bafatá me concede, a título excepcional, o gozo de uma licença para casar em Fevereiro, a Cristina anunciou que tem todos os papéis, está a prepara a cerimónia; procurar conversar com a Sr.ª D. Violete e escrever a Teixeira da Mota sobre a questão intrigante de Abdul Indjai, do Oio, premiado com o regulado do Cuor por Teixeira Pinto, e mais tarde banido para Cabo Verde, é importante esclarecer este triunfo e queda de um ídolo da Guiné do princípio do séc. XX.

O avião chega a Bafatá, o mercado ao ar livre está em todo o seu esplendor, compro um lenço para a Cristina, uma bolsa para a Celeste, caju para os meus sobrinhos, cola para enviar ao Paulo e ao Fodé. Enquanto não chega o jeep que me levará de regresso a casa, vou aos estabelecimentos Eduardo Teixeira onde descubro dois livros numa estante poeirenta de quinquilharias, entre policiais, que se revelarão muito boas leituras: Lenine, do filósofo Roger Garaudy, e O Socialismo no Futuro da Península, de Vitorino Magalhães Godinho. Aproveito ainda para escrever à minha Mãe, participando-lhe a iminência do meu casamento e pedindo-lhe para depositar dinheiro na minha conta.


Chego a Bambadinca, recordo que estava um céu límpido, um dia quente, na escola as crianças rodopiavam e gralhavam no recreio. Dirijo-me ao quarto e nisto oiço uma gargalhada estentórica e depois o bom acento alentejano. Acabo de conhecer o José Luís Vacas de Carvalho, o comandante do pelotão Daimler 2206, que vem substituir o Machado, o tal antigo estribeiro-mor de D. Violete.



O Alf Mil Cav J. L. Vacas de Carvalho, comandante do Pel Daimler 2206 (Bambadinca, 1970/72). Era (é), além de um companheirão, um exímio cantor de fado e tocador de viola... (LG)

Foto: © (2006). Direitos reservados

Se as nossas armas eram anacrónicas, nunca consegui perceber a utilidade daqueles veículos na guerra de guerrilhas. As Daimler pareciam apropriadas para as batalhas no deserto, no tempo do Afrika Korps, aqui, pensava eu, o seu desempenho era irrelevante. Todas as colunas ao Xitole levavam uma Daimler à frente, com a sua metralhadora Dreyse, lá dentro seguia um condutor e um apontador. O Vacas de Carvalho levava uma vida santa, sempre que aterrava um avião na pista de Bambadinca havia uma Daimler a montar segurança, ele comandava uma dúzia de praças e um furriel, vivia ocupado como instrutor de tiro das milícias, ouvimo-lo regularmente quando estávamos destacados na ponte de Udunduma, ele também era encarregado da escola e procurava fazer milagres com os soldados analfabetos, como todos nós cumpria tarefas como oficial de justiça e colaborava no reordenamento dos Nhabijões.

Irá revelar-se como um dos animadores das mesas de lerpa, aqui há uns tempos encontramo-nos no British Bar, em pleno Cais do Sodré, rememorámos façanhas e comédias e com a mesma voz possante do passado ele começou a sua narrativa neste modo:
- Beja, a primeira imagem que me vem à cabeça és tu a correr atrás de mim a atirares-me Lauroderme, aquele pó de talco que sempre usavas antes e depois das operações...

Enquanto conversávamos, foi como me viesse à memória esse dia, em finais de Janeiro, tinha a porta do meu quarto o furriel Vitorino Ocante, que se queria apresentar, bem como o Príncipe Samba, Albino Amadu Baldé, oriundo do Corubal, comandante de milícias de Missirá, uma das vitimas da mina anticarro de Canturé, em 16 de Outubro passado, tinha ainda os pés engessados, apoiava-se em muletas, vinha também cumprimentar e informar que seguia para Bissau para nova cirurgia. Após esta troca de cumprimentos, veio Bala, o ordenança do comandante, informar que o major de operações tinha urgência em falar comigo. Aproveitei para pedir ao Bala para falar com a Sr.ª D. Violete, pedia-lhe para me receber a seguir ao jantar.

(ii) Uma conversa com o major Herberto Sampaio


Mal entrei no gabinete, o major de operações [ do BCAÇ 2852, Bambadinca, 1968/70,] indicou-me uma cadeira em frente ao mapa e ter-me-á dito algo como isto:
- Espero que venha recuperado, parte amanhã para o Xime, vai participar numa batida à volta do rio Buruntoni. Chama-se operação Topázio Valioso. Não sei o que é que vocês vão encontrar, no reconhecimento aéreo não se vêem trilhos, não há sinal de vivalma. No entanto, eles estão activos. No dia 13, houve uma operação entre o Xime e a Ponta do Inglês, emboscaram com violência. A mata ali é muito fechada, não se consegue ver nada. Aqui há dias, a CCAÇ 12 e a companhia do Xime foram à Ponta do Inglês, de repente surgiu um trilho, foi-se por aí e apanharam população civil que andava a lavrar na bolanha do Poidom. Vamos agora saber se eles partem do Buruntoni, se têm alguma base entre o Baio e o Buruntoni. A companhia de Mansambo e o pelotão 63 saíram de Mansambo em direcção a Gundaguê Futa-Fala, se houver condições vocês regressam todos juntos até ao Xime, se não for possível fazer o reencontro, vêm separadamente. Aproveito para o informar que o mês foi anormalmente calmo, Missirá, Finete, Mansambo e Taibatá foram flageladas sem consequências, o prisioneiro que você levou para Bissau já regressou e deu muitos problemas, têm aparecido minas na estrada Xime-Bambadinca, foram detectadas a tempo. Hoje descansa, amanhã de manhã vai a Samba Juli e depois aos Nhabijões, é tudo uma coisa ligeira, a meio da tarde partem para o Xime. Recordo que chegou o tempo das insolações, cada um de vocês deve levar dois cantis, não esqueçam o mosquiteiro.



(iii) Um serão com D. Violete: recordações de uma professora no Cuor



À saída do gabinete, tenho o Mazaqueu à espera, o meu jovem amigo quer esferográficas, cadernos e algum dinheiro para doces e uma laranjada. Num aerograma para a Cristina, datado de 29 de Janeiro, refiro a minha preocupação com as cartas recentemente recebidas do Carlos Sampaio. A vida operacional em Cabo Delgado está a arrasar-lhe os nervos, a despeito da captura de armamento e de uma excelente relação com os seus militares. As suas cartas só falam dessa atmosfera a ferro e fogo, aqui e acolá há referências ao nosso futuro no projecto editorial para o qual ele me convidou, mas a sua prosa é crispada, há indícios seguros de desalento. Termino o aerograma lembrado-lhe que a minha ida a Lisboa é ainda uma completa incógnita, pelo que apoio a ideia de haver o casamento civil a 7 de Fevereiro, o resto fica tudo em aberto e renovo o meu pedido para visitar o major Cunha Ribeiro e o Casanova, ambos no Hospital Militar Principal. É nisto que Bala me vem informar que a Sr.ª D. Violete confirma que está disponível nesse serão.~

A professora recebe-me com a sua afabilidade habitual, mudou a oxigenação no cabelo, está maquilhada a rigor e conduz-me para a mesa da sala de jantar, sai e regressa com um bule fumegante. Enquanto serve o chá, recorda-me que lhe prometi levá-la a Bafatá em breve. Não esconde o sorriso quando eu abro o meu caderninho e atalhou prontamente:
- Sr. alferes, estou preparada para o seu interrogatório.

Comecei por lhe falar de Sambel Nhanta, vem nos livros como residência do régulo do Cuor, o nome não consta nos mapas, só Sansão e Missirá. Abro um desses livros, mostro-lhe, ela vê e responde:
-É Caranquecunda, uma terra de fulas, a tabanca dos sapateiros, são os artistas que fazem sapatos e os amuletos para trazer as mezinhas, os guardas de corpo. Era importante pelo seu comércio, tinha lojas, as tropas de Bissau chegaram a pernoitar aqui. Mas não era uma povoação importante no Cuor. Verdadeiramente importantes, há cinquenta anos atrás e mesmo quando a guerra começou, eram Cancumba, Canturé e Mato de Cão, tudo por causa das destilarias e do amendoim.

Perguntei-lhe se já tinha ouvido falar de Abdul Indjai, o tal herói deportado. Sim, confirmou, Abdul era sobrinho de Infali Soncó, quando este se rebelou contra as autoridades portuguesas, ele ajudou a esmagar a rebelião e fora nomeado régulo. Mais tarde Infali voltou, mas acabou por ir morrer na região de Quínara, sucedendo-lhe Bacari, que ela ainda conhecera. Perguntei-lhe depois se tinha sido professora no Cuor.
-Estive três anos em Gã Gémeos, senhor alferes, entre 1959 e 1962. No fim desse ano, a luta começou e logo muito intensa, desapareceu a grande tabanca de Canturé, Chicri, Mato de Cão, Malandim, Cancumba, Maná, Aldeia do Cuor, Sancorlã, Paté Gidé, foi um mundo que se desmoronou, fiquei com a escola vazia, as populações fugiram para o mato, para Bambadinca, Galomaro, para as tabancas de Joladu. Gã Gémeos permitia-me ir de barco de manhã cedo e regressar a Bambadinca a meio da tarde. Estava perto de Canturé, onde residia grande parte da população do Cuor, aqui a agricultura era muito rica, o islamismo já tinha grande peso mas as famílias mandingas queriam que as crianças soubessem português. Este tremor de terra acabou nos inícios de 1963, só os Soncó ficaram em Missirá, todas as famílias juraram morrer com o seu régulo. Finete desapareceu nessa altura, creio que foi por volta de 1965 que voltaram quando as tropas da milícia vieram para os proteger. Era eu professora em Fá Mandinga, em 1957, quando dei pela presença de Amílcar Cabral a trabalhar entre Gambana e Canturé, se o senhor alferes lá voltar, irá encontrar blocos de cimento a assinalar os quilómetros em direcção a Geba. Aqui me tem em Bambadinca, a ensinar meninos que vêm fugidos de vários regulados, habituaram-se a viver aqui, estão à espera que a guerra acabe para voltar para as suas terras. Tenho saudades de Gã Gémeos, de subir o rio, ir até ao Gambiel, ali a floresta é muito bela.

Confirmei essa beleza, tinha estado várias vezes no Gambiel, um dos locais mais formosos e paradisíacos que conheci. Despedi-me, voltando a pedir licença para voltar em breve.
-Que tema quer tratar a seguir, senhor alferes?.

Beijando-lhe a mão, agradecendo o saboroso chá preto, lancei-lhe o desafio:
-Se concordar, vamos falar do islamismo, como tem sido possível não haver nesta guerra de guerrilhas uma guerra religiosa.

Ficou entusiasmada com a sugestão.


(iv) Queta Baldé fala-me do Xime

É escusado pôr a memória de Queta à prova: sabe muitíssimo mais do que esqueceu, antes de chegarmos ao regulado do Xime, que ele conhece como as suas mãos, pedi-lhe informações sobre as povoações que visitávamos a partir do eixo Bambadinca-Bafatá, descreveu-me Bantajâ Mandinga, Bantajâ Assá e Bantajâ Cuta como se lá tivéssemos ido ontem, recordou-me o caminho para Quecuta, as diferentes tabancas do regulado de Badora, como Sinchâ Dembel e Bricama. Fui deslizando a conversa para o Xime, a vivacidade de Queta aumentou. As suas recordações passavam por uma placa que o PAIGC afixara em Gundaguê Beafada, em 1964, dizendo “aqui começa a Guiné Cabo Verde”, e qual tinha sido na reacção das tropas vindas de Bafatá.

Queta é de Amedalai, vira nascer o quartel de Bambadinca, fizera parte das milícias que defenderam a Ponta do Inglês, vira formarem-se pelotões de milícia que defendiam Amedalai, Demba Taco, Taibatá e Moricanhe, conhecia a palmo a região da Ponta do Inglês até ao fundo do Corubal. E vira também desaparecer quartéis, vira desmantelar-se regulados, considerava uma desgraça total o abandono da Ponta do Inglês que viera permitir a total liberdade do PAIGC no Poidom e em Ponta Varela, a sua enorme capacidade ofensiva na estrada entre o Xime e Bambadinca, sobretudo entre Taliuará e Ponta Coli, aqui o mato é denso e as emboscadas ferozes de gente que vem bem armada e que não foge só porque há reacção das tropas portuguesas.

E depois da conversa ziguezagueante, perguntei-lhe se se recordava de mais um fiasco, a Topázio Valioso, cerca de trinta horas a vaguear entre o capim alto e o arvoredo frondoso, com dois guias permanentemente perdidos que ora iam em direcção de Gundaguê Beafada, ora em direcção do rio Corubal.
-Nosso alfero, passados estes anos todos, continuo a pensar que era um erro muito grande quando chegávamos a um quartel não se perguntar à tropa quem é que conhecia a região, todos nós tínhamos que aceitar andar atrás de um guia , ou de dois guias, só porque eram propostos pelo régulo do Xime ou pelo chefe de tabanca. A maior parte das vezes, esses guias tinham ido uma ou duas vezes ao Buruntoni em miúdos, a natureza tinha mudado completamente. Na época seca, estava tudo diferente, os guias fugiam da estrada, quando encostávamos para as palmeiras de Gundaguê Beafada começava a desorientação. Era aqui que se podia ir em direcção ao Baio, ao lado do rio Buruntoni, mas era muito perigoso, começava aqui uma terra de lalas, o PAIGC tinha sentinelas, foi aqui que perdemos em 1967 o nosso bazuqueiro, Mário Adulai Camará. Perdemo-nos no rio Buruntoni, na manhã seguinte a avioneta denunciou-nos, os dois guias não sabiam bem o que andavam a fazer, fomos arrastados para perto da Ponta do Inglês, quando chegámos ao rio Buruntoni era o fim da tarde, tivemos que descansar. Na manhã seguinte, continuou o castigo, nem nos encontrámos com a tropa de Mansambo, nem avistámos trilhos e depois veio a ordem da avioneta para regressarmos ao Xime a meio da tarde, já sem água e sempre a pensar em emboscadas na mata fechada de Madina Colhido. Felizmente que nada aconteceu, mas ficámos chateados, aquilo não era maneira de fazer guerra. Foi assim que se criou a ideia que não era possível ir ao Buruntoni, ora era possível ir ao Buruntoni a partir de Mansambo ou de Moricanhe, caminho que nunca se fazia porque em Mansambo não havia guias e nunca ninguém perguntou se nós servíamos para guias. Podíamos tê-los apanhado de surpresa e nunca aconteceu. Foi triste.

(v) Uma semana de leituras incomparáveis

Não há exagero, foram mesmo leituras incomparáveis. Primeiro, Um homem de talento, de Patricia Highsmith. Tom Ripley é, pelas minhas contas, o primeiro assassino metódico realmente bem sucedido. A pedido de um industrial afortunado, Herbert Greenleaf, Tom, um pequeno escroque, sem eira nem beira, sempre à procura de expedientes, vai até Mongibello, em Itália, para ver se traz de volta Richard Greenleaf, Dickie, que tenta a vida artística. Vai começar a vida afortunada de Tom, que começa por ter férias pagas e congemina o assassínio de Dickie, apropriando-se da sua identidade, até o fazer desaparecer, deixando poucos vestígios, desnorteando a pouco motivada polícia italiana. Tom, disfarçado de Dickie, passeia-se por Roma, inventa desculpas para não ver nem visitar amigos, escreve à namorada de Dickie em termos tais que esta se convence que os afectos se esfumaram. Nas cartas forjadas para os pais de Dickie, vai deixando no ar o sentimento de uma depressão, de um abandono. Em Roma, em desespero de causa, é obrigado a matar Freddie, um amigo de Dickie, numa situação desesperada que podia ter levado à revelação da trama urdida. Tom vai viver para Veneza e aí inventa um testamento de Dickie. No final, vai receber uma boa maquia, depois de andar inquieto com os interrogatórios policiais.



Capa de Um homem de talento, por Patricia Highsmifh, colecção Vampiro, nº149. "É uma obra determinante,irrecusável.Depois deste livro,o crime cerebral ganha ampla dimensão,passou a ser possível matar sem receber a sanção exemplar. Depois, está escrito como nunca se escrevera, mesmo sabendo-se que Georges Simenon é um gigante da literatura. Neste caso, a tradução de Mário Henrique Leiria ajuda muito" (BS).
Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Tal como Sherlock Holmes era o detective inteligente, capaz de pôr a dedução ao serviço do problema, tal como Ellery Queen pusera fim ao detective dos músculos e ao policial de acção, introduzindo um equilíbrio entre o problema e o desfecho prodigioso, Patricia Highsmith reconstrói o policial dentro das regras da grande literatura, deixando-nos na dúvida se é necessário, doravante, acrescentar à literatura o qualificativo de policial. Um homem de talento é, com efeito, muito boa literatura e indisciplina os convencionais desfechos punitivos do criminoso. Eu ainda não sabia, mas Mr. Ripley ia ficar gloriosamente na literatura e até passar ao cinema.

A outra experiência avassaladora foi O Fogo e as Cinzas, de Manuel da Fonseca. Já li na Guiné Seara de Vento e Aldeia Nova, bem como alguma muito boa poesia. Mas este livro de contos instala a minha reconciliação com os cânones do neo-realismo: é uma escrita afogueada, vibrante, medularmente alentejana, é tudo simples e grande, sem pormenores balofos, piruetas popularuchas. Logo o arranque do primeiro conto:

“Antigamente, o Largo era o centro do mundo. Hoje é apenas um cruzamento de estradas, com casas em volta e uma rua que sobe para a Vila. O vento dá nas faias e a ramaria farfalha num suave gemido; o pó redemoínha e cai sobre o chão deserto. Ninguém. A vida mudou-se para o outro lado da Vila”.

São contos inesquecíveis: como a telefonia mudou aqueles lugares no fim do mundo; as declarações de amor entre miúdos, as maldades de um velho sovina que controla a existência de um filho adulto; uma noite de Natal numa venda, os amores de lavradores alentejanos, histórias de ódios, de misérias, de solidão. Manuel da Fonseca escreveu pequenas obras primas e faz-me amar ainda mais o Alentejo dos ganhões e malteses, universalizando o sofrimento desta terra bastarda.

Capa do livro O fogo e as cinzas, de Manuel da Fonseca. s/data, sem referência ao capista,1ªedição,Editorial Gleba, Lda (BS)

Foto (e legenda): © Beja Santos (2008). Direitos reservados.


Para a semana vou casar-me, haverá mesmo festa em Bambadinca. É um mês de Fevereiro em que vou descobrir que não tenho direito a férias nem a nenhuma licença. Espera-me a ponte de Udunduma, duas vezes irei ao Xitole, andarei em emboscadas e um dia abro uma carta e, aturdido, descubro que perdi o meu maior amigo na guerra. O mundo ia adquirir uma outra importância, a minha vida um outro significado. Será que vale a pena tentar falar desse meu sofrimento, desse desabamento?
_________

Notas de L.G.:

(1) Vd. último poste desta série > 29 de Fevereiro de 2008 >
Guiné 63/74 - P2595: Operação Macaréu à Vista - II PARTE (Beja Santos) (22): Meu amor, vai acabar entre nós este Oceano!
(2) Sobre a Professora de Bambadinca, vd. os seguintes postes:
(...) "Deambulo aos solavancos e o meu sonho vai até Bambadinca, do cemitério à vila. Bato à porta de Dona Violete da Silva Aires, professora, cabo-verdiana de pele clara, que me aguarda numa sala ampla, ao pé de um piano a cair de podre, com uma boquilha na mão. Serve-me uma infusão, faz-se silêncio, Dona Violete olha em direcção ao Geba. É uma mulher que esconde a devastação do tempo com camadas absurdas de pó de arroz e traços grossos de rímel. O cabelo oxigenado sai-lhe de um lenço vistoso, de cores fosforescentes, amarrado em laços grotescos sobre o carrapito. Tudo nela é amolecimento, solidão, alguma sensualidade mal contida" (...)