sábado, 1 de março de 2008

Guiné 63/74 - P2602: Blogues da nossa Guerra (I) (Virgínio Briote)

Ideias Soltas

Surpreendi-me, desde início, com a quantidade de material (sobre a Guerra Colonial) já existente e com a imensidão de temas por desbravar; infelizmente, eu serei uma prova viva de como a segunda geração, a dos filhos dos ex-combatentes, sabem muito pouco sobre o que aconteceu verdadeiramente – muito por culpa da pouca transmissão de informação desses acontecimentos no espaço escolar. (...) Talvez seja mesmo necessária e espontânea esta urgência inconsciente de exorcização enquanto exorcizar fará algum sentido.Creio que qualquer um de nós se apercebe das mudanças sociais ocorridas; não creio, no entanto, que seja necessário batalhar no quanto o mundo está mudado. É de uma ironia imensa o facto de três décadas serem mais do que suficientes para o esquecimento da história recente. A memória passa a existir apenas para quem a viveu, com a ameaça de cada um ficar isolado na história. E as memórias de quem viveu a nossa guerra colonial estão ainda tão, tão vivas que não creio que seja justo deixá-las cair no isolamento.
Susana GASPAR, actriz e directora do projecto IGNARA


Blogues que falam de nós.

Falam de nós, alguns dos nossos filhos. Cresceram com a Guerra, não porque os pais falassem dela. Alguns, certamente falaram, e muitos deles falaram alto. Outros, calados com eles próprios, não deixaram também de falar.

Neste projecto podemos ver a edição da Câmara Clara, o programa da RTP2, da Paula Moura Pinheiro, a quem agradecemos as referências à nossa Tabanca Grande. Uma oportunidade para quem não conseguiu ver na altura em que passou.

aqui em http://projectoignara.blogspot.com/ .

Com a devida vénia ao Filipe ARAÚJO, à Susana GASPAR e ao Paulo Campos dos REIS, actores e directores do projecto IGNARA.
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IGNARA é um projecto teatral, produzido pelo teatromosca, subordinado ao tema GUERRA COLONIAL... Este blog é uma plataforma de partilha de informações relativas ao projecto e ao tema abordado... Se desejar, poderá participar...

Guiné 63/74 - P2601: Convívios (40): Encontro anual do BCAV 3846, na Casa Pia, Lisboa, no dia 16 de Março de 2008 (Delfim Rodrigues)

Brazão do BCAV 3846, composto pelas CCAV 3364 (Ingoré), CCAV 3365 (S.Domingos) e CCAV 3366 (Suzana)

1. Mensagem do nosso camarada Delfim Rodrigues de 29 de Fevereiro de 2008

Agradecia o favor de dar publicidade no blogue ao convívio do BCAV 3846
(Ingoré, São Domingos, Suzana, Antotinha e Varela)
a comemorar os 35 anos do regresso a casa.

Um abraço
Delfim Rodrigues

OBS: Anexo o programa do encontro

2. Programa do Encontro

Guiné 1971/1973
Batalhão Cavalaria 3846
Companhia Independente
22 de Fevereiro de 2008


Caros amigos,
É com grande satisfação e alegria que vimos anunciar mais um Encontro Anual para celebrar o Aniversário do Regresso de Terras da Guiné.

De acordo com o já discutido e entre todos acordado, iremos uma vez mais reunir todo o nosso Batalhão de Cavalaria 3846.

Este ano, o local que nos irá a acolher será essa mesma cidade que há 35 anos atrás assistia ao nosso feliz regresso de terras longínquas.

Será então aí precisamente que teremos a oportunidade para reforçar a ligação à qual demos já início no ano passado.
Porque agora não são tempos de discórdias devemos consolidar este novo velho grupo unido pelas mesmas referências e de uma forma orgulhosa abraçarmos um festejo que a todos diz respeito.

Assim, no próximo dia 16 de Março será realizado um Almoço nas instalações da Casa Pia – na Rua dos Jerónimos, nº 9, em Lisboa – e o mesmo será servido por esse Restaurante bem conhecido de seu nome “O Furo”.

Os preços praticados serão os seguintes:
Crianças até aos 4 anos de idade: não pagam
Crianças entre os 4 e os 10 anos de idade: 12,50 €
Para todos os restantes: 25€

Pedimos a todos para estarem presentes no local pelas 12h00 pois antes do Almoço será realizada como habitualmente uma missa celebrada pelo nosso muito querido Capelão.

Para qualquer dúvida ou esclarecimento necessário poderão contactar

Alberto Toscano - 912381293 - albertotoscano@sapo.pt

Carlos Conceição (Xina) - 919489378 - carlos_m_novoa@hotmail.com

T.Col. Bernardino Laureano - 966452001 - laureano@netmadeira.com

A confirmação de presença deverá ser feita até 9 de Março

Esperamos poder contar com a presença de todos vós neste dia e até ao nosso encontro, resta-nos desejar uma boa viagem até Lisboa.

Um forte abraço,
Toscano, Xina, Laureano, Capelão

Guiné 63/74 - P2600: Os Mortos de Guidaje nas Notícias Lusófonas (Rui Fernandes)

Mensagem do Rui Fernandes:

Caro Virgínio Briote

Em anexo segue uma notícia do Notícias Lusófonas publicada em 29-2-2008.
Com os meus cumprimentos,


Rui Fernandes

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Transcrição da notícia. Sublinhados da responsabilidade de vb.
Corpos de soldados portugueses mortos em Guidaje vão ser exumados

A Liga dos Combatentes de Portugal vai, após sucessivos adiamentos, proceder à exumação dos corpos de dez militares portugueses sepultados em 1973 em Guidaje, norte da Guiné-Bissau, disse hoje à Agência Lusa o vice-presidente daquela associação.

Segundo o general Lopes Camilo, a operação, prevista para o primeiro trimestre do ano passado, decorrerá de 07 a 21 de Março próximo e envolverá uma dezena de elementos, entre militares, antropólogos, arqueólogos e geofísicos.

Uma primeira missão militar, composta por três oficiais e um sargento, parte a 07 de Março para o terreno, seguida, uma semana mais tarde, pela delegação técnica, que integra quatro antropólogos, uma arqueóloga e um operador de radar (geofísico), indicou Lopes Camilo.





Mapa (ver legenda abaixo) do cemítério militar de Guidaje, fornecido pelo Estado Maior da Força Aérea. A imagem foi-nos gentilmente cedida pelo nosso camarada Manuel Rebocho.


Foto: © Manuel Rebocho (2006)

Os corpos, incluindo os de três pára-quedistas, estão sepultados num "cemitério militar provisório" próximo de um antigo aquartelamento português em Guidaje, no norte da Guiné-Bissau e já próximo da fronteira com o Senegal.

O vice-presidente da Liga adiantou que os restos mortais dos dez militares portugueses, mortos em combate durante a guerra colonial na Guiné-Bissau (1963/74), serão transportados para um local "mais digno" em Bissau, no quadro dos projectos que a associação criou no país.

Os corpos dos sete militares (*), entre elementos do Exército e "comandos africanos", serão transferidos para um cemitério em Bissau e os dos três pára-quedistas serão, posteriormente, trasladados para Portugal, numa missão desenhada por familiares e financiada pela União dos Pára-Quedistas Portugueses (UPP).

O plano tem já luz verde dos ministérios da Defesa dos dois países, sendo, porém, um projecto pensado inicialmente pela família de um dos soldados, que deveria ter partido para o terreno a 16 de Fevereiro de 2007.


O projecto remonta a Setembro de 2005, quando um antigo Sargento-Mor dos Pára-quedistas portugueses, Manuel Rebocho (ver nota, em adenda), que combateu também na então província da Guiné, apresentou a tese de doutoramento intitulada "Sociologia da Paz e dos Conflitos", na Universidade de Évora.





Foi, então, montada uma missão civil para resgatar os três corpos, delegação liderada pelo próprio Manuel Rebocho e que envolvia mais oito pessoas, algumas delas familiares, entre elas a irmã do soldado António Neves Vitoriano, natural de Castro Verde, falecido no teatro de operações em Maio de 1973.

Em declarações hoje à Lusa, Conceição Vitoriano Maia, irmã de Vitoriano, arqueóloga, residente em Évora e que integra a missão civil que se desloca à Guiné-Bissau, disse estar satisfeita por a operação, em preparação há quase dois anos, ir agora por diante.

Além de Vitoriano, que faleceu aos 21 anos, dois outros soldados da Companhia de Caçadores Pára-Quedistas 121 (CCP-121) acabaram por ser enterrados em Guidaje: Manuel da Silva Peixoto, 22 anos e natural de Vila do Conde, e José Jesus Lourenço, 19 anos, de Cantanhede.

Dado que a área envolvente às sepulturas dos três pára-quedistas contém os restos mortais de pelo menos sete militares do exército português, a Liga dos Combatentes acabou por os incluir (*) no projecto.

Fora do território português existem registos de 6.000 militares naquelas circunstâncias, 4.000 deles nos três principais teatros de guerra em África, Angola, Guiné e Moçambique.

No caso da Guiné, há a localização teórica de locais onde estarão enterrados cerca de 750 militares portugueses, no eixo Bissau/Bambadinca/Bafatá/Gabu, que se juntam aos pouco menos de 1.500 detectados quer em Angola quer em Moçambique, sublinhou.

Nesse sentido, os projectos de cooperação da Liga, disse Lopes Camilo à Lusa, incidem muito especialmente em quatro acções: localizar, identificar, concentrar e dignificar.
Na prática, acrescentou, o objectivo é localizar os corpos entre os mais de uma centena de locais onde se crê que estejam sepultados, identificá-los - nem todos estão identificados -, concentrá-los em quatro ou cinco lugares e dignificá-los com uma campa.

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Nota de vb:

1. Agradecemos ao Rui Fernandes o envio da mensagem com esta importante comunicação.

2. (*) Através desta comunicação das Notícias Lusófonas (que transcrevemos com a devida vénia) ficamos a ter conhecimento que os corpos dos Camaradas do Exército vão ser trasladados por arrasto.

3. ver artigos de :

28 de Junho de 2006 > Guiné 63/74 - P919: Vamos trasladar os restos mortais dos nossos camaradas, enterrados em Guidage, em Maio de 1973 (Manuel Rebocho)

25 de Outubro de 2006 > Guiné 63/74 - P1212: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (1): A morte do Lourenço, do Victoriano e do Peixoto

9 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1260: Guidaje, de má memória para os paraquedistas (Victor Tavares, CCP 121) (2): o dia mais triste da minha vida

21 de Fevereiro de 2007 > Guiné 63/74 - P1540: Os paraquedistas também choram: Operação Pato Azul ou a tragédia de Gamparà (Victor Tavares, CCP 121)

19 de Março de 2007 > Guiné 63/74 - P1613: Com as CCP 121, 122 e 123 em Gadamael, em Junho/Julho de 1973: o outro inferno a sul (Victor Tavares, ex-1º cabo paraquedista

29 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1793: Operação Muralha Quimérica, com os paraquedistas do BCP 12: Aldeia Formosa, Guileje e Gadamael, Abril de 1972 (Victor Tavares)

27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1891: O Cantanhez (Cadique, Caboxanque, Cafine...) e os paraquedistas do BCP 12 (1972/74) (Victor Tavares, CCP 121)

9 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2038: Os pára-quedistas no mítico Cantanhez: Operação Tigre Poderoso (I parte) (Victor Tavares, CCP 121 / BCP 12)

31 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P2014: O Idálio Reis, a CCAÇ 2317, Gandembel e os pára-quedistas do BCP 12 (Victor Tavares)

15 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2051: Os pára-quedistas no mítico Cantanhez: Operação Tigre Poderoso (II parte) (Victor Tavares, CCP 121 / BCP 12)

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Legenda do mapa (Manuel Rebocho):

Campa 1 > Manuel Maria Rodrigues Geraldes, Sold. n.º 06471572, da 2.ª CC/BC 4512/72. Filho de António Emílio Geraldes e de Ascensão dos Santos Rodrigues. Natural da freguesia de Vale de Algoso, Concelho de Vimioso.
Campa 2 > Bacote Tanga, Soldado nativo, da 3.ª Companhia de Comandos Africanos.
Campa 3 > António das Neves Vitoriano, Soldado Pára-Quedista n.º 528/72, da CCP 121.
Campa 4 > José de Jesus Lourenço, Soldado Pára-Quedista n.º 544/72, da CCP 121.
Campa 5 > Manuel da Silva Peixoto, Soldado Pára-Quedista n.º 1176/70, da CCP 121.
Campa 6 > Talibú Baió, Soldado nativo, da C C n.º 19.
Campa 1-A > José Carlos Moreira Machado, Furriel Miliciano n.º 02893771, da CC 3518. Filho de Manuel Machado e de Delta de Jesus Moreira. Natural do lugar de Sá, freguesia de Ervões, Concelho de Valpaços.
Campa 2-A: João Nunes Ferreira, Soldado n.º 09477371, da CC 3518. Filho de Luís Ferreira e de Maria Martinha. Natural da freguesia de Câmara de Lobos, Concelho de Câmara de Lobos – Madeira.
Campa 3-A > Gabriel Ferreira Telo, 1.º Cabo n.º 03117871, da CC 3518. Filho de João de Jesus Telo e de Maria Filomena Ferreira Telo. Natural da freguesia de Paul do Mar, Concelho de Calheta – Madeira.
Campa 4-A > António Santos Jerónimo Fernandes, Fur. Miliciano n.º 09486271, da CC nº. 19. Filho de Domingos António Jerónimo Fernandes e de Maria da Glória Fernandes Jerónimo. Natural da freguesia de Garção, concelho de Vimioso.
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Mensagem do Manuel Rebocho, a propósito desta comunicação das Notícias Lusófonas:
(...) Não tenho mais nada a acrescentar. Apenas dizer que fico muito satisfeito por se ir efectuar o que devia ter sido efectuado logo em 1973, e que foi mantido em segredo durante 30 anos.
(...) mas sinto um enorme prazer e uma imensa satisfação ao verificar que, passados mais de 34 anos o Sargento-Mor Rebocho ainda "obriga" os Oficiais a fazer o que não querem.
(...) Se eu lá estivesse, naquele momento, os Pára-Quedistas não teriam lá sido enterrados, isto para não dizer que não teriam lá morrido, mas isso já é outra história.
Um grande abraço.
Manuel Rebocho

Guiné 63/74 - P2599: Recortes de imprensa (2): O Simpósio de Guileje visto hoje pelo Diário de Notícias (Virgínio Briote)



Recortes de imprensa > (*)

O Simpósio de Guileje (ou Guiledje), hoje no DN

No caderno Gente, do DN de hoje, 1 de Março de 2008, fala-se do diálogo com o "Inimigo" em Bissau. Uma Reunião inédita na história das guerras. Texto de Leonor Figueiredo. Grande destaque. Três páginas.

Não há na história, tanto quanto se saiba, um encontro deste género. Reunir num dos mais sangrentos lugares da Guerra da Guiné combatentes dos dois lados, hoje irmanados no mesmo espírito: celebrar a Paz e fazer História.

Guileje é descrito como sempre o conhecemos: o corredor da morte e um aquartelamento impossível, ali ao lado.

Fazem declarações a propósito da reunião, o Pepito (Carlos Schwartz, a grande alma do Simpósio) que sonha em cativar ex-combatentes para o que designa como o Turismo da Saudade, e o Coronel Nuno Rubim (das dificuldades na montagem do diorama e do reencontro com os guerrilheiros que faziam as noites brilhantes de luz e os dias negros de pólvora e fumo à CCaç 726). É também entrevistado o Coronel Coutinho e Lima que deu a ordem de abandonar Guileje, em 22 de Maio de 1973. O antigo comdante do COP 5, na altura major, diz que está a acabar um livro sobre a história de Guileje, que ainda suscita mal-entendidos



Fotos do nosso blogue surgem aqui e ali, enquadrando declarações e pequenas entrevistas. O editor do blogue, Luís Graça, autorizou a jornalista Leonor Figueiredo a utilizar materiais do nosso blogue. Como,por exemplo, as declarações de Watna Na Lai, hoje Major-General do Exército da República da Guiné-Bissau, e naqueles tempos comandante do PAIGC.

(...) Para mim (este encontro) tem grande significado, porque durante a luta Amílcar Cabral insistiu em dizer que a guerra não era contra o povo português, mas contra o regime de Salazar. O 25 de Abril veio mostrar que o povo português também estava contra a guerra. Éramos e somos irmãos.




A Tertúlia da Guiné não podia deixar de estar presente na notícia. Luís Graça fala do aparecimento, a princípio tímido, do nosso blogue, e que é hoje considerado o maior blogue colectivo em língua portuguesa sobre a experiência das guerras do Ultramar, colonial, e de libertação, segundo a expressão do próprio jornalista.

O blogue também inclui testemunhos de ex-guerrilheiros do PAIGC, como o coronel Paulo Maló, das Forças Armadas da Guiné, que comandou várias emboscadas.

Da sua participação no encontro em Bissau, Luís Graça - que diz nunca ter usado a sua G-3, nem mesmo debaixo de fogo - espera trazer novos contributos.


(..) "Há cinco anos, o professor da Escola Nacional de Saúde Pública de Lisboa e ex-furriel miliciano na guerra da Guiné-Bissau entre Maio de 1969 e Março de 1971 decidiu, como tantos outros, partilhar a sua experiência de guerra e criou um blogue pessoal.

"A primeira reacção não se fez esperar. 'O primeiro que me apareceu foi um operário do estaleiro de Viana do Castelo. Ficou o número dois da tertúlia. Não eram só ex- -militares, mas também familiares, a viúva, a ex- -namorada... depois a tertúlia virou um pequeno rio', pormenoriza Luís Graça ao DN gente.

(...) "O 'rio' que cresceu deu origem a um blogue que teve mais de 400 mil visionamentos, até Setembro passado, além das 200 pessoas que ali partilham regularmente a sua experiência.

"O blogue Luís Graça & Camaradas da Guiné tem mais de mil visitas diárias e já deu origem ao livro de um ex-militar da Guiné, Beja Santos.

Neste meio de comunicação juntam-se homens de muitas profissões, além de médicos e alguns oficiais superiores.

"No entanto, 'a maior parte são milicianos, soldados e alguns têm o handicap de não lidarem facilmente com a Internet. De resto, não fazemos juízos de valor. Falamos do que vimos e testemunhamos, mas não entramos em políticas nem da guerra nem da descolonização', sublinha Luís Graça".(...)


Referindo-se ao programa do Simpósio Internacional de Guiledje, diz a jornalista:

(...) "Todo o encontro fará referências ao quartel de Guiledje, abandonado em 1973 pelo então major Coutinho e Lima para salvar 600 pessoas. O chamado 'corredor de Guiledje' era fundamental porque por ali se abastecia o PAIGC de armas e mantimentos. Três dias depois do abandono, o PAIGC toma o quartel, acto fundamental para a proclamação da independência da Guiné-Bissau a 24 de Setembro desse ano.

"Muitas centenas de guineenses e portugueses passaram por Guiledje, cuja referência não aparece nos mapas vulgares, anos inesquecíveis das suas vidas. 'Hoje existe respeito mútuo dos dois lados e vontade de recordar as histórias. Até porque faltam peças do lado do PAIGC', sublinha o ex-combatente Luís Graça, que no blogue de partilha com os camaradas da Guiné vai registando as memórias. O mesmo não acontecendo da parte dos ex-combatentes guineenses, muitos dos quais já morreram ou estão velhos, já que a esperança de vida é menor, sem o hábito de registar pela escrita episódios numa sociedade que vive muito da tradição oral.

"Hoje, os participantes vão visitar o que resta do quartel de Guiledje, estando o encontro com os ex-combatentes guineenses marcado para amanhã. Visitarão depois os media locais, centro materno-infantil e um antigo acampamento do PAIGC. Os trabalhos iniciam-se depois de amanhã na Assembleia Nacional Popular, em Bisau, com a presença de individualidades dos dois países. Historiadores, sociólogos e agrónomos, portugueses, guineenses e espanhóis, diplomatas cubanos, ex-militares do PAIGC guineenses e cabo-verdianos falam sobre diversos aspectos da guerra, e ouvir-se-ão testemunhos da população, ex-milícias e régulos" (...).

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Nota de vb:

(*) O primeiro post desta série foi publicado em 15 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1663: Recortes de imprensa (1): As nossas mulheres e o stresse pós-traumático de guerra (Zé Teixeira)

Guiné 63/74 - P2598: Estórias avulsas (2): O bom pastor (Luís Fonseca)

Texto de Luís Fonseca, ex-Fur Mil Trms, CCAV 3366/BCAV 3846 (Suzana Varela , 1971/73), enviado em 23 de Fevereiro último.

Caro Luis:
O texto que seguidamente escrevo era para ter tido guia de marcha por alturas do Natal. Tavez pudesse ter sido aceite como história do mesmo período. Mas nem sempre, cá como lá, no primeiro decénio do séc. XXI ou nos princípios dos anos setenta, os planos saiem tal qual as nossas expectativas.

Este episódio nada tem que ver com os indomáveis guerreiros felupes mas apenas com dois anos da nossa vida passados naquele chão.



Portugal> Panorâmica da Serra da Estrela, tão diferente da paisagem da Guiné-Bissau

Guiné> Bonito pôr-do-sol em Suzana

Fotos: © Luís Fonseca e Carlos Vinhal (2007) (Direitos reservados)


1. O bom pastor (1)
Por Luís Fonseca

O personagem chegou a Suzana já era passada, para os velhinhos, mais de metade da comissão de serviço.

De aspecto franzino, o homem era de poucas falas, sendo notório desde o primeiro dia o seu isolamento do convívio com os restantes camaradas.
Com a sua bazuca, acompanhada, raras vezes, por algo de sólido, quando aparece na sala do soldado, afasta-se o mais possível das conversas, parecendo escolher sempre a mesa mais afastada. Se nos primeiros dias se poderia dizer que estaria numa fase de ambientação, com o passar do tempo tal esperança desvaneceu-se.

No desempenho da sua especialidade, reabastecimento de combustíveis, pouco havia que fazer, não só pelo número de viaturas existentes, mas também porque desde o início o nosso Furriel Rodinhas, cognome dado pela população ao responsável pela Mecânica Auto, como acontecia aos restantes responsáveis pelas secções de serviços dependendo da sua especialidade, tinha distribuído aos seus rapazes essa tarefa.

"A" era mais um elemento para a Mecânica e, como os restantes, para todos os serviços que fossem necessários ao bom funcionamento da Unidade. Assim não era raro, quando preciso, vê-lo nos serviços de escolta, ida à água, psico, etc.

Em qualquer deles não deixava transparecer emotividade. Não era preciso pressioná-lo para o desempenho de qualquer das tarefas da estrutura militar. Limitava-se a cumprir e fazia-o exemplar e disciplinadamente.
Nem o campeonato de futebol entre os diversos Grupos de Combate, Formação e População o conseguiam tirar do seu alheamento. Talvez não apreciasse o chamado desporto-rei.

O Maior afirmou, por várias vezes, que tínhamos ganho um problema sério e que seria bom não o perder de vista.

A cada dia que passava a sua forma de agir mais se fechava. Ficava-se pelo sim ou não, como quem pretende não permitir intrusos dentro da concha em que se havia enclausurado. Em termos meramente comparativos dir-se-ia que vegetava.

De quando em vez aproveitava o seu tempo para dar longas caminhadas no perímetro do aquartelamento, sem nunca entrar na tabanca. Sempre só, sem corresponder sequer aos gracejos dialécticos das bajudas. Era vulgar encontrá-lo sentado no banco existente na casa da pista de aviação, onde permanecia até à hora da refeição do jantar.

Uma tarde um elemento da população de Ejatem fez uma entrada apressada no aquartelamento. Da sua expressão sobressaía um nervosismo bem visivel. Apontava na direcção da sua aldeia e apenas era possível entender a palavra soldado na, para nós complicada, linguagem felupe.
A primeira ideia que ocorreu foi a de que os páras senegaleses, com quem os felupes haviam tido alguns desentendimentos (2), tinham voltado a fazer das suas.
O elemento da população mostrava-se cada vez mais nervoso, esgrimindo as suas armas, arco e flechas. Com a chegada de um interprete ficou a saber-se o que, na verdade, se passava. Um militar das NT passeava-se em território senegalês.

Foi de imediato destacada uma Secção de um dos Grupos de Combate para que rapidamente se pudesse pôr cobro a uma situação, no mínimo, delicada. Chegados ao local, guiados e acompanhados por elementos da população de Ejatem, foi confirmada a presença de um militar português e mais, quem era o passeante.

Sentado em cima de um pequeno baga-baga "A", utilizando como arma um longo varapau, fitava, com o mesmo ar distante, um rebanho de gado vacum, pertença, mais que provável, de algum Fula.

Durante a viagem de regresso a Suzana, "A" apenas referia que se encontrava bem e que não percebia o aparato pois se tinha limitado a seguir umas vaquinhas sozinhas que havia encontrado durante uma das suas passeatas habituais (a distância que separa Suzana de Ejatem é de cerca de 5 km) e que tal facto o fizera reviver o seu rebanho de ovelhas na sua querida Serra da Estrela.

Acredito que foi, talvez, a mais longa conversa tida desde a sua chegada. E existia motivo para tal.
Os seus acompanhantes de ocasião, habituados a situações bem mais duras e também diferentes, trataram com o maior carinho o seu camarada. Afinal tratara-se de recolher alguém que havia decidido sonhar com os locais que lhe eram queridos e o melhor, já que tudo havia corrido sem problemas, era não o acordar do seu sonho.

Dias depois o nosso bom pastor seguia a caminho do HM 241 de Bissau, da mesma forma que havia chegado e vivido aqueles meses entre nós, praticamente em silêncio.

O stress pós-traumático de guerra (3), apenas foi reconhecido em Portugal, oficialmente, em 1992 e, pelo que se sabe, existem mais de 50.000 homens que passaram pelos três Ramos das Forças Armadas, a sofrerem, com maior ou menor notariedade, de tal síndroma.
A esse número pode e deve ser acrescentado um número indeterminado de apanhados pelo clima e outros que, exteriorizando ou não o que lhes ia na alma, foram actores, num pedaço de história do Império Mali, reino de Gabu, a que desde o séc. XVIII chamam de Guiné, a que, de alguma forma, ficámos ligados sentimentalmente.

Kasumai

Luis Fonseca
ex-Fur Mil Tms

Nota: Espero que a coluna para Guileje se faça sem problemas e que o restante programa decorra o melhor possível.


2. Comentário de C.V.

A propósito deste trabalho, enviado pelo Luís Fonseca, venho lembrar que os camaradas da Tertúlia e os nossos habituais leitores, que apresentam algum sintoma de stresse pós-traumático, devem procurar ajuda psicológica.

Nunca é tarde para encetar uma recuperação e proporcionar aos familiares algum sossego. Como se sabe, não são só os doentes que padecem, mas também quem os acompanha, especialmente as esposas e os filhos.

Podem começar por se dirigir a uma das Delegações da ADFA existentes, desde Bragança até ao Funchal e Ponta Delgada, onde poderão solicitar informações sobre os passos a dar.

O site da ADFA está em http://adfa-portugal.com/

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Notas dos editores:

(1) Título da responsabilidade do editor

(2) Vd. post do último trabalho do camarada Luís Fonseca de 23 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2474: Cusa di nos terra (14): Susana, Chão felupe - Parte IX: Os indomáveis guerreiros felupes (Luís Fonseca)

(3) Vd. Posts relacionados com stresse pós-traumático:

de 9 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2089: O stresse pós-traumático dos veteranos da guerra colonial

de 15 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1663: Recortes de imprensa (1): As nossas mulheres e o stresse pós-traumático de guerra (Zé Teixeira)

Guiné 63/74 - P2597: Pensar em voz alta (Torcato Mendonça) (9): Ler o blogue tornou-se quase um vício

A coragem de pensar em voz alta. A falar com ele, de tudo, mesmo de factos que nem sempre o deixaram em paz. O Torcato Mendonça.
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1. Mensagem do Torcato Mendonça.

Domingo, 24 de Fevereiro de 2008.

PENSAR EM VOZ ALTA
Meus Caros Editores

Não era para enviar mas vai. Vou parar uns dias devido a outras vidas.

Para mim as sondagens, se tratadas por quem sabe, podem dar uma amostragem curiosa desta Tertúlia. Partindo do principio que, o universo das respostas se confina só aos membros (207?). Pode ser alargado a todos os que não pertencendo votam. Sabem melhor que eu.

Quanto a fracturas…bem … o que não fractura…

Votos de óptima viagem aos que, neste momento, trilham estradas a caminho de Bissau e aos que, proximamente, vão ao Simpósio.
Oxalá aparece “livro” com comunicações e conclusões.

Um abraço,
Torcato Mendonça

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PENSAR EM VOZ ALTA ---- B


1 - Os P´s

Quando lemos alguns textos somos, por vezes, levados a reflectir calmamente sobre o seu conteúdo. Depois, podemos ou não fazer um escrito. Ou seja, podemos prosar de forma prosaica sem prosápia e, porque a senilidade ainda não se instalou totalmente, expressarmos o nosso pensamento. Sem pretensão de infirmar sobre o pensamento de outros, muito pelo contrário, afirmar, isso sim o nosso e quantas vezes, se formos capazes, reforçar em livre expressão nossa, o que lemos. A sondagem 7… sobre a guerra… violenta e humana… é um desses textos.

Ler o Blogue tornou-se quase um vício. Agradável e não uma dependência.
Hoje, com o tempo frio e húmido, as cicatrizes a protestarem, dizendo – presente – a leitura do jornal, o café duplo e a espera pelo despertar das ideias.
Passamos ao teclado, alinhamos palavras, voltamos a locais de contradição, locais de dor e amor, de alegria e tristeza, locais únicos de saudável duplicidade. Só nós entendemos. Porquê? Não entendo ou não o quero fazer?

Volto lá e tento um comentário. Assim:
O Psiquismo dos combatentes era fortemente abalado. Depois da morte do Alferes, da Milícia de Moricanhe, Uro Balde, vitimado por uma mina anti-pessoal aquando do rapto do Soldado Monteiro, sofri um choque forte. Outros factores agravaram.

Dormia mal. Ainda tomei um medicamento forte. Era pior. Dormia mas os sonhos continuavam. Depois habituamo-nos. Melhor, pensamos estar habituados. Não. Vejamos, um tormento desse tempo a prolongar-se mais que o desejável.
(….)

SONHOS

A maior operação em que participei, quer pelo número de dias quer pelos meios humanos empregues, foi a Lança Afiada. Só neste aspecto foi grande.

Os resultados, vistos pelo aspecto militar, foram fracos. Destruíram-se inúmeros acampamentos inimigos, fizeram-se prisioneiros – mulheres, crianças, adolescentes e velhos. Não se desarticulou profundamente a estrutura do PAIGC. Mesmo com muito armamento apreendido e a destruição de muitos “depósitos” de alimentos.

As baixas provocadas ao IN foram poucas, face aos meios por nós empregues. Parece incorrecto assim falar, mesmo hoje quase quarenta anos passados.

Parece um desejo de morte. Não é assim. Tento é ver com os olhos de outrora e, ontem como hoje, aquela operação, como todas, eram de destruição e aniquilamento. Assim, no nosso entendimento, deviam ter participado forças especiais a montar emboscadas na margem esquerda do Corubal.
E não só. Pode considerar-se uma crítica a todos os que a planearam e ao ComChefe.
Teimosia do General, mais que falta de visão, aliada á falta de coragem de o contrariarem. Tinha e tenho consideração pelo General. Não devo agora falar dele. Talvez um dia o faça. Escrevi na Agenda de 69 – em nota final à operação – assim a guerra é uma merda!

Sofremos vinte e dois feridos (quatro eram do meu grupo), cento e muitos evacuados por doença e insolação.

Temos que atender à duração, onze dias, às elevadas temperaturas – com médias de máximas à sombra entre 39 e 43,6 e ao Sol entre 70 e 74,5 graus – ao deficiente apoio logístico, principalmente no fornecimento de água e às rações de combate não adaptadas aquele clima.
Podemos voltar, um dia, a falar desta operação e à reacção ou retaliação do IN.

Já no regresso da operação, perto do Galo Corubal, com a tarde a cair rápida, parámos para descansar e comer. Tudo no maior silêncio possível, aplicando-se aqui e bem – o silêncio é de ouro.
Trazíamos prisioneiros, mulheres, crianças e três ou quatro adolescentes. De repente, já o sol tinha desaparecido, ouve-se o choro de um bebé. Alto, cuidado.
Digo, talvez ao Sukel – manda calar o miúdo. Cala-se, mas volta a chorar.
Mau, raios parta a sorte. O Sukel olhava para mim mostrando a sua impotência em pôr cobro á situação. Ele era fula, a mulher e o bebé balanta ou beafada sendo difícil o entendimento.

O choro aparecia de forma descontínua entrando como som de corneta mata adentro. Levanto-me e vou junto da mãe. Na penumbra, vejo-a segurar mais fortemente o bébé contra o peito. Não procuro falar. Olha-me e sabe porque ali estou. Vejo medo, terror mesmo, no olhar e sinto que compreende a situação. A segurança de muita gente está a ser posta em causa. Ela apercebeu-se disso, embala e aperta mais forte o filho contra o peito. Levanto-me e, quando me voltava, o bebé esperneia e volta a chorar.

Paro. Olho-a e ponho a mão esquerda na minha boca, puxo da faca de mato e passo-a pelo meu pescoço.

O terror no olhar daquela mulher, o soluço contido, o forte apertar do filho contra o peito, os olhares das outras mulheres e o choro abafado das outras crianças deixam-me aturdido, perturbado, revoltado. Afasto-me lentamente.




Guiné >Zona Leste > Sector L1 > Mansambo > CART 2339 (1968/69) > O Alf Mil Torcato Mendonça. Uma imagem que nos traz à memória o Apocalipse Now, O Caçador e outros filmes americanos da Guerra do Vietname. Pena é que a Guerra na Guiné, com tanto pessoal colocado anos e anos no Departamento de foto-cine, no QG em Bissau, não tenha praticamente produzido nenhum documento que não fossem as cerimónias de Bissau. E entretanto, a Guerra prosseguia impiedosamente, todas as horas de todos os dias, 11 anos seguidos, sem um dia de tréguas, nem mesmo depois do 25 de Abril.

Em quem, ou no que me tornei?
Sento-me, procuro acalmar e encontrar justificação, para toda aquela brutalidade. O miúdo calou-se. De repente barulho, correrias, sons a serem abafados, vozes sussurradas. Dizem-me: - o puto mais velho fugiu e um outro está ferido.

São dadas ordens rápidas para sair dali. Não tínhamos condições de segurança. Os turras estavam perto e o puto, quinze ou dezasseis anos, já sabia muito. Depressa os encontraria. Iniciámos um regresso rápido.
Nem duas horas depois aí estavam os nossos inimigos a bater a zona. Aceleramos o passo e só paramos depois da meia-noite. A estrada Mansambo – Xitole não estava longe.
Paramos para breve repouso. Enfiei-me no ponche com o Capitão. Consulta à bússola e à carta, dar umas curtas “passas” num cigarro e descansar um pouco, sentados sobre os calcanhares travando o desandar dos corpos com os ombros. Só que o cansaço atraiçoou-nos e o tempo passou rápido.
Acordámos em sobressalto com a manhã quase a raiar. Por pouco não acertei com a G3 numa “surucucu”, enroscada ali perto. O Milícia estava atento… e houve uma baixa nos répteis.

Saímos rápido, tentamos o contacto com Mansambo e só voltamos a parar bem perto da estrada. A partir daí tínhamos que redobrar os cuidados. Uma vaca de mato apareceu e o Lhavo, o nosso guia, queria atirar. Não! Mansambo é já ali – dizia ele. Não!
De facto, pouco depois estabelecemos contacto com a nossa malta, aliviámos a carga, sentimos mais segurança e Mansambo aí estava.

Belo aquartelamento…Larguei o material e tentei encontrar chocolates, doces e bolachas. Não tinha esquecido aquela mãe. Procurei-a. Quando me viu recebeu-me com o mesmo olhar de terror e apertou o filho. Tentei sorrir e dar-lhe as guloseimas. Certamente desconhecidas para ela e para a criança. Sabia, isso sim que eu era o seu inimigo. Entreguei ao Chefe de Tabanca, Leonardo Balde as “coisas”. Ele percebeu e disse: vai Alferes, vai. Eu trato deles.
Pedi ao Zeferino uma garrafa de uísque e fui tomar banho. Não voltei a ver mãe e filho. Durante muito tempo, de quando em vez eles voltavam, sempre da mesma maneira em sonho ou pesadelo a encharcar-me o corpo e a latejar as têmporas. Era mais um sonho ou pesadelo a juntar a outros. O tempo foi curando… nem sei. Os sonhos sempre foram e vieram, cada vez menos… um dia pensei terem-se ido, enganei-me. Mas isto não é o muro das lamentações. Foi um período dispensável da minha vida. Aconteceu… marcaram fortemente aquelas experiências. Foi negativo. Certamente também teve algo de positivo.

Há dias, tentei justificar o meu voto na sondagem a guerra… com o envio desta mensagem depois de ler uma resposta a outra.(…)

Abri o “correio” e li a mensagem abaixo. Mas que é isto? Nem reparei, haver outra mais abaixo em declaração de voto. Quando, antes, tinha lido a frase suporte da sondagem disse: porquê? Depois li e reli.

Na minha idade deve ler-se e reler-se. Não só por mor da idade. Não me queria meter nisto e, menos ainda faço declaração de voto. Tento afastar-me da politica… mas! Se isto fosse Declaração de Voto parecia política, nada disso. É um simples escrito. Talvez de alguém muito intrometido. Já votei. Porquê? Pela razão que devo participar e o voto, aqui e noutras sondagens poderão – se tratadas – ser um indicador deste Grupo.
Vejamos:

- Se eu regredir até ao meu tempo de militar posso votar;
– Concordo! Escrevi, alguns escritos foram publicados, sobre o Malan Mané, Braimadicô e, das estórias do José;
– O Sonho – não deve ter sido publicado (um tormento meu) e outros que não me lembro.

Eram tempos de Guiné, tempos de guerra imposta para a qual fui preparado. Melhor ou pior foi, no entanto, o treino suficiente para a desumanização. Se olhar para a frase com os olhos de hoje, digo não. É primário e básico para mim. A guerra é a suprema violência colectiva. A sucessão de actos desumanos, injustos e só praticados, por quem procura através da injustiça fazer prevalecer uma razão que não lhe assiste.

Vejamos as guerras actuais. Tentemos, com olhos de hoje, ver aquela em que participamos. Então? Claro, claro que era injusta, desumana e de violência gratuita. Cuidado: de ambos os lados existem erros. Disse aqui, creio eu – Bons, Maus e Vilões…disse…

Nas chamadas – tropas especiais – essa “metamorfose” era mais notória. Tive uma especialidade e preparação um pouco consentânea com esses princípios. Por isso sofri, depois de, sem dar por isso, ter claudicado. Sofri a tal metamorfose, a transformação, o sentido da disciplina, o suor a poupar sangue e outras…

Aqui, neste espaço sou forçado a regredir para escrever sobre esse passado. Será correcto? Seria dispensável a Sondagem? Não.

Vamos certamente ter uma amostragem que, se tratada, terá interesse para melhor nos conhecermos. Voto como outrora, CONCORDO. Porque não é o voto actual. É isso sim o voto do militar de outrora. Antes fora aquele jovem alegre e brincalhão que um dia os senhores da guerra, a mando dos políticos, metamorfosearam e era mais um…é pá…UM VOTO ACTUAL: TODOS PELA PAZ, PELA CONCÓRDIA, PELA JUSTIÇA (possível) ENTRE OS HOMENS. Em liberdade, igualdade e fraternidade. Mesmo utópica.

E peço desculpa dela ultima frase…C’ est la revolution? Bá… I beg your pardon (…) Não apago a “citação em francês e em inglês” porque expressam somente um pensamento e, simultaneamente tentam dizer que, neste site existe a livre expressão mas não a tomada de posição fora dos onze princípios…

Hoje, 24 de Fevereiro, no escrito do autor da frase que deu origem á sondagem, leio … a guerra dos pára-quedistas e uma foto de um cartaz contra a pide.

Quanto á primeira merece um breve comentário: se os pára-quedistas tinham uma guerra diferente (ou sentida de outra forma diversa) dos outros miltares desconhecia. Talvez o título induza em erro ou tenha eu entendido mal.

Quanto ao cartaz: eles estavam em toda a parte e nós milicianos mereciam, no tempo que lá estive, uma atenção especial…voltarei a este tema.

Antes, sem atingir ninguém que nesse tempo tinha entrada no lado do edifício de oficiais de Bambadinca, não sei ao certo onde ou quem viu os livros, acrescento um breve escrito sintomático dos longos tentáculos das” informações”….(…) O Livro, o Bufo* e o Jagudi**. Ou Bambadinca, Meu Amor.

Era uma vez um Livro, pequeno, cerca de cem folhas ou poucas mais. Viajante infatigável, habituara-se a passar de mão em mão, sendo folheado calma ou bruscamente, consoante o leitor. Desta vez entregaram-no a um sujeito barbudo e de rosto fechado.
Pegou nele, lançou breve olhar á capa e contracapa. De forma brusca atirou-o para cima de uma cama. Aterrou, o livro, próximo de um monte de roupa, junto a um saco cilíndrico, verde, seboso pelo uso pouco cuidado e com restos de lama de tarrafo. Pela experiência pressentiu a proximidade de viagem. Limitou-se pois a observar tudo o que o rodeava.

O homem arrumava papéis, blocos, canetas e objectos similares numa caixa de madeira. Fechou-a com um cadeado, colocando depois a chave num fio que tinha ao pescoço. Com gestos automatizados passou á roupa, separando-a de forma a ficar em pequenos montes. Fumava cigarro atrás de cigarro. Berrou um nome qualquer.

Pouco depois apareceu um outro sujeito, mais magro e macilento. Entregou ao homem um pequeno saco, talvez com artigos de higiene, uma máquina fotográfica e um rádio. Não trocaram palavra e nem se olharam.

Meteram a roupa e os outros objectos dentro do saco verde. O homem trouxe mais dois outros livros. Embrulhou-os numa espécie de rede mosquiteira e ficaram, os três, no cimo do saco. O sujeito macilento fechou o saco militar e trouxe-o, juntamente com a caixa para junto de outra bagagem a ser carregada numa viatura.

Pouco depois ouviu vozes, ordens de marcha e sentiu, habituado que estava, ao início de uma outra viagem. Conseguia ver, por entre as malhas da rede, a picada, a mata não muito densa e os militares com armas na mão, rostos fechados, olhares atentos.

Tentou falar com os outros livros. Um era bem maior que ele e o outro não tanto. Só falava francês e não foi entendido. Calou-se. Não demorou muito a viagem, talvez duas horas ou nem tanto. Ouviu gritos e risos de meninos, o vozear alegre de outros homens, em língua desconhecida para ele. Apercebeu-se terem chegado a uma aldeia.

Tiraram o saco e a caixa da viatura colocando tudo, com cuidado, numa palhota. Sentiu o cheiro a medicamentos. Ouvia, cá fora, risos e conversas em voz alta. De repente entrou o homem com mais papéis. Abriu a caixa e meteu tudo lá dentro. De seguida abriu o saco de onde tirou os livros, a máquina fotográfica e o rádio. Colocou-os sobre uma espécie de mesa, junto á caixa de madeira e afastou-se.

Tinha agora, daquele local, uma melhor visão do que o rodeava no pequeno espaço de uma palhota. Quase diariamente era lido pelo homem. Folheava-o cuidadosamente, com carinho mesmo, tomava apontamentos e, de quando em vez, trocava-o pelos outros; ou, mais frequentemente pelo outro, o mais pequeno, apesar de maior que ele.

O maior era menos lido. Outras vezes escrevia nos cadernos. Pressentia ser, aquela palhota (tabanca ou morança, como lhe ouvira chamar) o centro da aldeia. Tudo girava á volta dela, até a pequena enfermaria.

Os dias passaram rápidos. Voltou a viajar e foi entregue a outro homem. Era o seu destino, a razão da sua existência numa contínua e eterna peregrinação.

Ficção com factos reais, senão ouça:

O homem era militar da 2339 com base em Mansambo. Viajou primeiro para a Tabanca em autodefesa de Candamã e Afia com o seu Grupo reforçado; posteriormente viajou para Bambadinca, sede do BCAÇ de que estava dependente, apesar de pertencer a uma Companhia Independente. Como gostava de ler levou três livros, matava o tempo e suavizava o mau viver em condições difíceis. Se bem me lembro, os livros foram todos emprestados. O Livro era: Révolution dans la Révolution de Régis Debray; outro, um pouco maior, era Terra Ocupada de Urbano Tavares Rodrigues e, o maior não me recorda o nome, tratava de guerra, das suas tácticas etc., escrito por um militar, Coronel ou perto desse posto, chamado Hermes de Oliveira.

Estive, entre quinze dias e um mês, em Candamã e depois passei por Bambadinca antes de regressar a Mansambo. Aproveitei para beber um uísque com gelo, tomar um duche há muito adiado, uma refeição decente e dormir numa cama. Indicaram-me o quarto, talvez com mais camas, naquele edifício em forma de U.

Apesar da confiança protegi com roupa a caixa de madeira (antes era cunhete de granadas, agora tinha documentos confidenciais) e desfiz o saco. Descuidei-me com os livros. Fui tomar um duche e devo ter cantado e demorado. Demorado muito certamente, sentindo o prazer da água a escorrer-me pela encardida e curtida pele. Certamente voltei e arrumei tudo, livros incluídos.
Sabia bem das relações de R. Debray com Guevara na Bolívia e do que tratava o livro sendo desnecessário aqui focar; ou dizer que Urbano T. Rodrigues não morria de amores - suave - pelo regime, nem a censura por ele. Quanto ao outro livro não comento.

Talvez uma semana depois voltei a Bambadinca. Fui chamado ao Comandante. Certamente trazia documentos para ele e vice-versa. Depois das saudações, foram tratados os diversos assuntos. Na parte final da reunião fez-me, no entanto, uma pergunta normal mas, a sua formulação alertou o meu sexto sentido.
- Sei que gosta de livros. O que está a ler agora? (Pois…)
- Um livro sobre guerrilha de Hermes de Oliveira e outro do francês Jean Laterguy, sobre guerra na Argélia. (pois…)
- Claro, claro. Escrito em francês?
- Não meu comandante. Já foi traduzido claro. Está em português.
- É preferível. Não gosta de ler em francês pois não? Sorriu, por detrás do bigode de galã de filme italiano dos anos 60. E mais não disse (o Comandante era o Tenente Coronel Pimentel Bastos). Não respondi.

Talvez tenha esperado um pouco e pedido autorização para sair. Talvez tenhamos almoçado na mesma sala. Certo é nunca ter sabido quem fora o bufo*. Se houve denúncia… não era a primeira vez…Pululavam, os bufos, por toda a parte… talvez fossem mais abundantes que os jagudis. ** Preferia os últimos. Eram úteis!

E neste dia frio e húmido paramos. A noite entra devagarinho. O Sol há muito que se escondeu por detrás dos montes. Aqui, no vale ou no sopé destas serras a rodearem-me por todos os lados, anoitece mais rápido. Por isso, não só por isso, a necessidade de rumar ao meu Sul.

Amanhã, ou noutro dia qualquer continuo… um dia de cada vez…. Esperando o seguinte… como outrora lá e agora, não há muito tempo, cá…

__________

Notas de Torcato Mendonça:

*Bufo: - espécie da família das corujas. Maiores, olhos grandes e amarelos. Certas “pessoas” recebiam esse nome… porque seria? O Império; o Império…e a Metrópole… a Metrópole…
** Jagudi: - (crioulo) espécie de abutre. Ave de rapina e necrófaga muito útil. Nunca se abatia tal ave… (….).
__________

Notas de vb: legenda da foto da responsabilidade do co-editor. Ver artigos de

19 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2558: Blogoterapia (44): Pensar em voz alta (Torcato Mendonça)
e de:

14 de Março de 2007> Guiné 63/74 - P1594: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (1): A dança dos capitães

16 de Abril de 2007 > Guiné 63/74 - P1666: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (2/3): O Zé e o postal da tropa

25 de Maio de 2007 > Guiné 63/74 - P1785: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 239) (4): Burontoni, mito ou realidade ?

27 de Junho de 2007 > Guiné 63/74 - P1892: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (5): O Casadinho e o Bessa, os mortos do meu Gr Comb, os meus mortos

7 de Julho de 2007 > Guiné 63/74 - P1929: Estórias de Mansambo (6): Matilde

17 de Agosto de 2007 > Guiné 63/74 - P2055: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça) (7): Eleições à vista...

21 de Setembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2122: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça) (8): Marcha, olha para mim, com ódio, peito erguido, cabeça levantada...

28 de Setembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2139: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (9): Amigos mais velhos

15 de Dezembro de 2007 >Guiné 63/74 - P2353: Estórias de Mansambo (Torcato Mendonça, CART 2339) (10): Devolvam o bode ao dono... e às cabras de Fá Mandinga, terra de Cabrais

14 de Novembro de 2006 > Guiné 63/74 - P1278: Estórias de Bissau (3): éramos todos bons rapazes (A.Marques Lopes / Torcato Mendonça)

sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2596: Guileje: Simpósio Internacional.(Virgínio Briote)

Na hora de fazer a mala

1. Mensagem do José Marcelino Martins: 


Caros Camaradas Por vosso intermédio envio um forte abraço ao Pepito, ao Nuno Rubim e a todos aqueles que pensaram, trabalharam e levaram a bom termo o encontro de Guiledje. Com gente assim conseguiremos fazer história e transmiti-la aos vindouros. Neste momento, relembro o Zé Neto que, esteja onde estiver, estou ciente que também estará no simpósio. Um abraço José Martins CCAÇ 5 - Gatos Pretos

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 Obrigado, Zé Martins, levarei os teus abraços. E pensarei em vocês todos. Parto amanhã de manhã, ou melhor partimos, um grupo numeroso de tugas, com cubanos, espanhóis e franceses pelo meio... Não sei onde apanhamos os caboverdianos...

Apareçam em força no lançamento do livro do Beja Santos (e nosso livro)... Vai ser um dia de festa para todos, contribuindo para reforçar os nossos laços de camaradagem e de amizade. Até ao dia 7 de Março. O VB e o CV tomar#ao conta da loja. Sei que posso confiar neles. LG.
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  2. Mensagem do Helder Sousa:

Caro Luís Este mail tem por finalidade apenas desejar, muito fortemente, que a viagem à Guiné corra bem em todos os aspectos.

Que tudo decorra com o mais elevado espírito de fraternidade e de positivismo e que se consiga através do Simpósio alcançar um patamar de trabalho com "pernas para andar", de modo a potenciar a dinâmica que se tem vindo aparentemente a conseguir. Relativamente às ostras, não te esqueças que elas eram cozinhadas .... vinham quentinhas .... Penso que por cá, apesar de não poderes estar presente pessoalmente, o Blogue estará muito bem representado pelos seus Co-editores e por uma representação bem significativa de "tertulianos" tal modo que o Beja Santos verá todo o calor e carinho que o pode envolver. Estou a envidar esforços para ver se consigo levar a estar presente um dos irmãos do David Payne que o Beja Santos refere com alguma frequência neste seu primeiro ano de comissão. Boa viagem e um abraço Hélder Sousa

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Nota de vb:

Aí estamos nós de regresso às bolanhas e às terras vermelhas da Guiné. Não agrupados em Pelotões, Companhias e Batalhões. Nem fardados com armas guardadas nos porões dos Uíges e Niassas ou dos Super-Constellation dos TAM ou da TAP.

Desta vez, vamos todos misturados. Somos de todos os anos, de muitas unidades, soldados, furriéis, alferes, capitães, que em outros tempos para lá partimos, enquadrados em Batalhões, Companhias e Pelotões, com flâmulas, bandeiras, botas, cornetas, desfiles, Mães, Pais, Namoradas, lágrimas e lenços a abanarem ao vento da Rocha Conde de Óbidos ou do aeroporto de Figo Maduro.

Vamos à civil o mais possível, as armas que levamos são os portáteis e as máquinas fotográficas.

E, desta vez, levamos nos braços um enorme abraço a todos os Guineenses.

Não vamos estar todos presentes, mas vamos lá estar. Como temos estado estes anos todos com aquelas gentes e aquelas terras que há décadas fazem parte das nossas vidas.

Guiné 63/74 - P2595: Operação Macaréu à Vista - II PARTE (Beja Santos) (22): Meu amor, vai acabar entre nós este Oceano!






Texto do Beja Santos (ex-Alf Mil, Comandante do Pel Caç Nat 52, Missirá e Bambadinca, 1968/70), remetido em 27 de Dezembro de 2007:




Operação Macaréu à Vista - II Parte > Episódio XXII

MEU AMOR, VAI ACABAR ENTRE NÓS ESTE OCEANO!
Beja Santos

(i) Fim das insónias, voltou-me o bom humor, tenho cores risonhas

As cartas que envio à Cristina em 23 e 25 de Janeiro abandonaram de vez o tom melancólico, estão agora centradas na esperança do reencontro. Feliz, dou a boa nova do meu restabelecimento. Escrevo a 23: “Sabe-me bem estar neste quarto silencioso da casa dos Payne, onde o único sinal da vida militar são as peças do meu fardamento numa cadeira. Regulei os sonos, deito-me logo a seguir ao jantar, pelas 9h da manhã pequenoalmoço, arranjo-me e vou dar um passeio, habitualmente até ao cais, se estou em condições passo duas horas no Centro de Estudos da Guiné Portuguesa. Medico-me, almoço e descanso até meio da tarde. Leio, escrevo e como sabes melhor que ninguém falo-te a partir dos Correios. Mais um passeiozinho, vou à Catedral, volto, janto com os Payne, mais medicamentos e cama. Fico muito contente sabendo que já marcaste o casamento civil para 7 de Fevereiro. Esta imensidão do oceano vai finalmente desaparecer. Continuo a pensar que não vou ter férias aí e falei longamente com o David Payne sobre a tua vinda, caso eu me mantenha na região de Bambadinca. Ele acha que se tu queres vir não deves ser frustrada.

Estou muito contente com tudo quanto me comunicas, eu amo-te com todas as minhas forças e fraquezas, eu preciso absolutamente de ti. Sei que tu vais ter muita energia para suportar a incógnita dos próximos meses e por isso digo-te sem hesitar que venhas até Bissau quando quiseres. Por favor, não comprometas o resto dos teus estudos nesta fase, parece-me mais razoável que concluas tudo em Julho ou mesmo em Setembro. Decide o melhor por nós. Se podermos casar aí, gostava que fosse na Igreja de Santo António, e gostava que fosso o Padre Cerqueira a ministrar-nos os sacramentos. Vou escrever a todos os nossos amigos a falar do nosso casamento. Lembra-te que o Infinito Amor está connosco”. Dois dias depois, informo que o David Payne me considera tratado, a grande depressão está a passar, mas ainda sonho em viajar até Lisboa em 19 de Fevereiro: “Parto para Bambadinca amanhã ou depois, levo ainda várias caixas de medicamentos, mas com a obrigação de ir fazendo gradualmente o desmame. Para tratares da minha certidão de baptismo, peço-te que vás à Igreja de Fátima, fui baptizado em finais de Junho de 1945. Agradeço-te a companhia que tens dado ao Casanova, ao Quebá Soncó, ao Fodé e ao Paulo. Ontem, encontrei um oficial de Bambadinca que me deu a informação que houve um pequeno êxito militar na área da Ponta do Inglês, sem derramamento de sangue foram trazidos homens, mulheres e crianças e destruídas as barracas onde eles viviam enquanto agricultavam as bolanhas do Poidom. Tenho ouvido música do Zeca Afonso e do Adriano Correia de Oliveira e para adormecer ponho Bach e Vivaldi, oiço baixinho à noite para não incomodar os Payne. Telefonei ao Ruy e disse-lhe que casaremos a 7, felicitou-nos, o 7, diz ele que é devoto da ciência babilónica, é o número redondo da vida, fico muito contente com este auspício. Ainda vou tentar telefonar-te ao fim da tarde, não posso contar com os Correios de Bambadinca. Pensemos em Fevereiro, a nossa felicidade em Deus, amo-te cada vez mais”.

(ii) O major Cunha Ribeiro no HM 241

É quando vou ter alta que sou informado do desastre pavoroso que vitimou o major Cunha Ribeiro: ele vinha a subir a rampa de Bambadinca num jeep, à frente seguia um camião que iria no dia seguinte levar mercadorias ao Xitole, o camião descomandou-se, veio sobre o jeep que ficou entalado num poilão. Demorou mais de uma hora para ser retirado do jeep, tal o número de ferros retorcidos, saiu com múltiplas fracturas, as pernas escavacadas, os maxilares partidos com contusões graves e hemorragias. Foi operado a 21, visitei-o a 22 ao fim da tarde. Até partir, visitá-lo-ei sempre até 27, dia em que efectivamente regressarei a Bambadinca. Nesse dia, quando me estou a despedir, entraram as senhoras da Cruz Vermelha, com o seu avental imaculado, sempre capitaneadas pela Sr.ª D. Maria Helena Spínola. A mulher do comandante chefe pergunta a Cunha Ribeiro em que lhe pode ser útil e ele responde: “Gostava que me oferecessem a Enciclopédia Britânica, é um sonho de infância, tenho agora aqui tratamento para largos meses, era bom que a Cruz Vermelha cuidasse agora das minhas aspirações culturais”. Mesmo todo fracturado e com o corpo enfaixado, Cunha Ribeiro troçava do destino, punha a ridículo as convenções solenes. A 1 de Fevereiro, escreverei à Cristina pedindo-lhe para o visitar, Cunha Ribeiro tinha a mulher e os filhos pequenos a viver em Braga.

Há pouco tempo resolvi testar a memória do Queta Baldé, perguntando-lhe se tinha recordação das circunstâncias em que se dera este acidente. Isto passou-se ao fim de mais um encontro, desta vez eu pedia-lhe esclarecimentos sobre as povoações que visitávamos regularmente, seja no eixo Xime-Bambadinca, a partir da estrada para Bafatá, em Badora e Cossé, seja ainda entre Bambadinca e Mansambo. Não tinha apontamentos sobre as nossas idas a Bijine, Madina Bonco (residência do régulo Mamadu Sanhá) e Jana, queria recordar o que era a nossa actuação, nesse tempo coube-nos fazer o recenseamento das armas nas tabancas em autodefesa, a pedido da CCS de Bambadinca. Acerca do acidente que vitimara o major Cunha Ribeiro, Queta voltou a surpreender-me com a sua memória: “Nosso alfero, era um camião civil, tinha os travões desarranjados, o dono tinha ido em peregrinação a Meca, mal tinha chegado quando o informaram que ia no dia seguinte numa coluna para o Xitole, na rampa o motor preguiçou, o camião destravou-se, o jeep do major ficou esmagado entre o camião e uma árvore, mesmo à esquina da estrada que levava à casa e aos armazéns do Rendeiro. Ouvimos o major Cunha Ribeiro a gritar a chamar pelo Atalaia (efectivamente, ele era o seu motorista). Vieram os desempanadores e não tivemos coragem de ver mais um morto”. Expliquei ao Queta que ele não tinha morrido, estava de boa saúde, tanto quanto possível, vivendo no Porto, como coronel reformado. Nestas coisas, o Queta dá um sinal de tranquilidade e resignação: “ Graças a Deus, julgava que o major tinha morrido dentro daqueles ferros, quando fechou os olhos e deitava sangue pelo nariz e pelos cantos da boca, julguei que tinha sido chamado para o Paraíso”.

(iii) A descoberta de uma glória guineense, um missionário e um intelectual

No Centro de Estudos da Guiné Portuguesa encontro referências aos jesuítas, e prontamente enviei uma carta ao padre António Fazenda, estudioso das missões dos jesuítas em África. Terei dito algo como isto: “Os jesuítas aparecem no inicio do séc. XVII na ilha de Santiago, eram os padres Baltazar Barreira e Manuel Fernandes e dois auxiliares. O padre Barreira embarcou para a Guiné, andou por Cacheu, Bissau, rio Nuno e Serra Leoa. Acho que vem tudo descrito no livro do padre Fernão Guerreiro “Relação Annual das cousas que fizeram os padres da Companhia de Jesus”. O padre João Delgado e outros voltaram à Guiné em 1608, os jesuítas iam morrendo todos, vitimados pelo clima. Em 1640 havia na Guiné dois padres da Companhia de Jesus. Mas as dificuldades eram insuperáveis e terão abandonado a Guiné depois de 1647. Aqui acabam as minhas informações para si”. A grande surpresa é a descoberta do padre Marcelino Marques de Barros, nascido em Bissau em 1844, professor no colégio das missões em Cernache de Bonjardim, onde faleceu em 1929. Empolgado, começo a folhear os seus trabalhos sobre filologia, etnografia, folclore e corografia guineenses. Foi sócio correspondente da Sociedade de Geografia de Lisboa, tendo escrito no seu boletim. Folheio o seu texto “Guiné Portuguesa ou breve notícia sobre alguns dos seus usos, costumes, línguas e origens de seus povos”, que publicou em 1875. Antes de escrever o seu breve ensaio cita Carlyle: “Em cada objecto há uma inesgotável significação; os olhos vêem conforme os meios que empregam para ver”. Escrevo deliciado no meu caderninho viajante, extraindo o que diz sobre línguas nativas: “A língua mandinga, pela sua incomparável harmonia, elegância e facilidade de pronunciação, é a mais falada da Senegâmbia; e por ser muito cultivada pelos mouros letrados, está elevada a um alto grau de perfeição”. E depois descreve o registo da sua admirável capacidade de observação, fala de saudações, pactos e juramentos, hospitalidade, tabus, vindicta, roubo, rapto, casamento, aborto e infanticídio, aleitamento, circuncisão, costumes agrícolas, costumes guerreiros, doenças (lepra, bexigas, varíola, doença do sono), Deus, alma, fetichismo, habitações, géneros de vida, família e vestuário. Folhei a seguir um livro de 1900, sobre a literatura dos negros, contos cantigas e parábolas, que maravilha, fala do djambatuto, aquela ave que vi tantas vezes em Missirá, descreve o jagudi dizendo que é um abutre muito parecido com o peru, com um grande bico e muito mal encapotado nas suas asas de cor de lama. Passo a seguir para o seu trabalho sobre a língua guineense que ele publicou na Revista Lusitana, dirigida por Leite Vasconcelos. Leio e releio, finalmente encontro alguns códigos para perceber o crioulo, as raízes e os arcaísmos do português adaptado neste ponto da África ocidental: ablução é banho; abjecto é despressionado; aceno é sinal; confusão é tarpadjaçon; dever é obrigaçon; adivinha é dbinha... Nada escapava à curiosidade do padre Marcelino: como é que chegou a mancarra à Guiné, o arvoredo do Sul, a mistura das línguas nativas com o português. Estou a ficar muito cansado, tenho que ir para casa, passo ainda os olhos no texto que Teixeira da Mota elaborou com base numa conferência que aqui fez em 1955, e que está publicado no Boletim Cultural da Guiné Portuguesa: “No momento presente, apenas um quarto da população civilizada é constituída por brancos, e há cerca de um século apenas havia 16 europeus em Bissau, e o comércio exterior e a navegação estavam praticamente nas mãos de estrangeiros, situação que se manteve até há 30 anos”. Ainda posso pelo museu, a arte nalu, os pássaros dos Bijagós são geniais. Como foi possível a arte portuguesa ter ignorado esta escultura deslumbrante?

(iv) O último jantar com Botelho de Melo e algumas leituras

A 25, vou despedir-me do Botelho de Melo que regressa aos Açores. Jantamos no Pelicano, com a foz do Geba ao fundo. Agradeço-lhe tudo o que fez por mim, as impressões açoreanas nessa noite estão muito vincadas, passo em revista os seres humanos que me acolheram e que me continuam a amparar com o seu estímulo. Falamos da cultura das ilhas, os seus grandes romancistas e poetas, recordo a culinária soberba e as belezas naturais, aquele verde intenso das lavas e das chuvas, as hortênsias iridescentes, as azaléias de cor intensa, as araucárias de grande porte, o porto das Capelas, a beleza genesíaca da costa da Bretenha. E ficamos por aqui, são horas de voltar para a cama. Abraçamo-nos muito, é uma amizade de pedra e cal, o tempo encarregar-se-á de confirmar esta estima profunda.

Continua a ser um mistério ter lido e guardar recordações do que li. Miss Maple é uma velhinha amável com um condão especial para a investigação criminal. Em “O estranho caso da velha curiosa”, de Agatha Christie, tudo começa em Londres, quando Mrs. McGillcuddy, uma sua amiga toma um comboio e assiste durante a viagem a um assassínio. Miss Maple vem colaborar, reconstitui a viagem, descobre que é muito possível que a amiga não tenha delirado. E descobre uma casa em Brackhampton que reúne probabilidade de ser o local onde está o corpo. Recorre então ao auxílio da sua amiga Lucy Eyelesbarrow que irá trabalhar em Rutherford Hall. É lá que de facto está o corpo de uma mulher assassinada, aparentemente ninguém a conhece ali, intervém a polícia, há mais dois assassínios, Miss Maple deslinda o imbróglio.




Da editorial Inquérito li “Noites Brancas”, de Dostoiewski. Um homem deambula por S. Petersburgo, é um homem só, encontra num canal uma jovem, Nastenka. Enceta-se assim uma série de noites com encontros e desencontros, a história de uma grande paixão, paixão essa que une Nastenka a um apaixonado que irá aparecer no final da história. É um Dostoiewski muito diferente daquele que eu lera nos Irmãos Karamazov, profundamente lírico, centrado numa relação sentimental catártica. As ilustrações são da Manuel Ribeiro de Pavia, um grande ilustrador, desenhador e pintor.






Está na hora de regressar. Ainda vou ao mercado comprar especiarias, passo pela Casa Taufik Saad onde descubro banda desenhada recente, tomo um Dakota para Bafatá, depois de amanhã, ainda não sei, vou participar numa batida junto do Buruntoni, a operação “Topázio Valioso”. A guerra vai recomeçar.
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Nota dos editores:

(1) Vd. último poste da série: 22 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2570: Operação Macaréu à Vista - II Parte (Beja Santos) (21): Em Bissau, em tempo de Vesperax, curando uma depressão

quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Guiné 63/74 - P2594: Bibliografia (20): Lançamento do Diário da Guiné, 1968-1969: Na Terra dos Soncó, do Mário Beja Santos (Virgínio Briote)

Lançamento do Diário da Guiné, 1968-1969: Na Terra dos Soncó, do Mário Beja Santos

Programa:

13h00: Almoço na Casa do Alentejo

14h30: Visita guiada à Sociedade de Geografia de Lisboa

16h00: Reunião dos Camaradas presentes na Sociedade de Geografia.

18h00: Espectáculo de korá, por Braima Galissa18h30: Apresentação do Diário da Guiné, 1968-1969: Na Terra dos Soncó, do Mário Beja Santos: intervenções de Mário Beja Santos, Mário de Carvalho e General Lemos Pires

Almoço: Presenças confirmadas até 28/02/2008

1. Henrique Matos
2. Cor. A. Marques Lopes
3. Dr. António Graça de Abreu
4/5. António Santos e Esposa
6. Delfim Rodrigues
7. Mário Fitas
8. Cor. Rui A. Ferreira
9. Raul Albino
10/11. Carlos Vinhal e Esposa
12/13. Albano Costa e Esposa
14/15. Carlos Marques dos Santos e Mulher Teresa M. Santos
16. Cor. Hélder Pereira
17. Júlio Pinto
18. Dr. José Monteiro
19. José Manuel Bastos
20/21. Reis Martins e Esposa
22. Filipe Ribeiro
23. Dr. Mário Beja Santos
24. Fernando Chapouto
25. Torcato Mendonça
26. Manuel Chamusca
27. José Aurélio Martins
28. Carlos Murta
29. Manuel Paes (?) e Sousa
30. Cor. Carronda Rodrigues
31. Cor. Marinho
32. Ten. Cor. Heitor Gouveia
33. V. Briote
34. Hélder Sousa
35. Custódio Castro
36. Carlos Santos

37. João Parreira
38. Cor. Diamantino Gertrudes da Silva

39. Alfredo Carvalho Rodrigues
40. Fernando Franco
41. Prof. Doutor Jorge Cabral
42. Carlos Américo Cardoso
43. José Manuel Lopes


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ver artigos de:

25 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2581: Lançamento do Diário da Guiné, 1968-1969: Na Terra dos Soncó, do Mário Beja Santos (Virgínio Briote)

20 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2559: Lançamento do Diário da Guiné, 1968-1969: Na Terra dos Soncó, do Mário Beja Santos (Virgínio Briote)

14 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2537: Lançamento do Diário da Guiné, 1968-1969: Na Terra dos Soncó, do Mário Beja Santos (Virgínio Briote)

10 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2521: Lançamento do Diário da Guiné, 1968-1969: Na Terra dos Soncó, do Mário Beja Santos (Virgínio Briote)

4 de Fevereiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2505: Diário da Guiné, 1968-1969: Na Terra dos Soncó. O livro do Mário Beja Santos, o nosso livro (Virgínio Briote)

11 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2429: Lançamento do meu/nosso livro: 6 de Março de 2008, na Sociedade de Geografia, com Lemos Pires e Mário Carvalho (Beja Santos)

Guiné 63/74 - P2593: Pami Na Dondo, a Guerrilheira , de Mário Vicente (11) - Parte X: O preço da liberdade (Fim)

Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > Uma enfermeira (*) pára-quedista no meio dos Lassas...

Foto: © Mário Fitas (2008). Direitos reservados.


Guiné > Região de Tombali > Cufar > CCAÇ 763 (1965/66) > A bela Miriam, a lavadeira, de etnia fula, que, no romance, gostava de fazer converso giro com o Furriel Rafael...

Foto: Mário Vicente, Putos, Gandulos e Guerra. Ed. de autor (Cucujães, 2000).


Guiné-Bissau > PAIGC > Novembro de 1970 > A liberdade: um caminho difícil, com um preço alto para muitos homens e mulheres que combateram na guerrilha. É o que sugere esta imagem do fotógrafo norueguês Knut Andreasson.

Fonte: Nordic Africa Institute (NAI) / Foto: Knut Andreasson (com a devida vénia... e a autorização do NAI)

PAMI NA DONDO, A GUERRILHEIRA (1)
Autor: Mário Vicente
Prefácio: Carlos da Costa Campos, Cor
Capa: Filipa Barradas
Edição de autor
Impressão: Cercica, Estoril, 2005
Patrocínio da Junta de Freguesia do Estoril
Nº de páginas: 112

Advertência: Trata-se de uma obra de ficção, embora inspirada em factos reais, em especial na actuação da CCAÇ 763, os Lassas, que estiveram e viveram em Cufar, no sul da Guiné, nos anos de 1965 e 1966.

Edição no blogue, devidamente autorizada pelo autor, Mário Vicente Fitas Ralhete (ex Fur Mil Inf Op Esp, CCAÇ 726, Cufar, 1965/66). Revisão do texto, resumo e subtítulos: Luís Graça.

Parte X (Final) > A professora do PAIGC é libertada no mato, grávida de um Lassa que morre em combate(pp. 97-111)

Vd. resumo dos episódios anteriores (2)

(i) Disfarçada de mulher de limpeza, Pami ouve os furriéis Gama, Taveira e Rafael a debaterem, dilacerados, o sentido da guerra e o seu sacrifício pela Pátria


Miriam, para além da roupa de Rafael, agora também tratava da limpeza e arrumação do quarto dos três furriéis. Pami, prisioneira em liberdade condicionada, acompanhava por vezes a lavadeira fula, dando uma ajuda a esta nas suas tarefas. Numa dessas deslocações à messe de sargentos, os três ocupantes encontravam-se no quarto comum. Sobre as camas, os mesmos falavam sobre a guerra e os seus problemas envolventes. Sem darem qualquer importância, aliás ignorando completamente a permanência das negras, movimentando-se nos seus trabalhos de limpeza.

Perspicaz e atenta, Pami registava as dissertações dos militares. Gama, sentado na cama recostado sobre a cabeceira da mesma dizia:
-Foda-se!... Martírio... para mim não há pior que a sede. Quando a boca se me seca, quase que sufoco!

Pami paralisou, confuso o seu cérebro tentou, sem o conseguir, saber qual a espécie de sede a que o militar se referia. Não era ele que os colegas diziam, transformar-se completamente perante uma acção de fogo? Não diziam até que, rastejando, ia à zona de morte buscar os camaradas feridos, quando eram emboscados? Dúvidas racionais sobre qual a sede sofrimento do militar.

Taveira, tronco nu, envergando apenas uns calções de cáqui, completamente estendido sobre a cama dissertava:
-É pá! Eu penso muitas vezes que um dia em que por hipótese tenha um filho... Que poderei eu dizer-lhe, sobre esta merda?... Que seu pai subiu aos cumes do bem, e que chafurdou, descendo aos abismos do mal?

Rafael de bruços, pés sobre os ferros da cama, lançando nuvens de fumo dos cigarros que sofregamente aspirava, atalhou:
- Filho!? Se o tiver... espero ter a coragem de confessar-lhe que seu pai se encontrou perdido e dividido entre esses dois pólos. Poderei até confirmar-lhe que espezinhei a condição humana e a própria Pedra de Moisés.

A prisioneira, na ânsia de ouvir os militares, ia fazendo render o tempo, ajudando vagarosamente na limpeza do aposento. Ignorando completamente a presença das duas mulheres, Rafael continuou:
- É certo que cada guerra é criadora das suas próprias normas e leis, não revogando as leis humanas. De livre vontade, sob coacção ou de qualquer outra forma não há dúvidas que as aceitamos e respeitamos... Quem terá ética e razão, para nos condenar pelo que fazemos? ... Também é lógico e racional questionar que, em termos teológicos, nos estamos cada vez mais afastando da libertação! O fosso que nos separa da casa e da família é cada vez mais profundo. A vida que foi. A ligação a essa forma de vivência torna-se cada vez mais esfumada. Estamos cada vez mais próximos do inentendível da razão, e da destruição da nossa identidade global.

Enquanto falava, lançava argolas de fumo do seu terceiro ou quarto cigarro, cujas pontas ia lançando na lata de conserva, improvisado cinzeiro. Gama abandonou a posição sentada e esparramou-se na cama sobre o lado direito, pronunciando:
- É fado de saudade, a comunhão que fazemos, no partilhar do pão, farinha amassada de tristeza e alegria, com os companheiros, envoltos nestes uniformes camuflados de guerra.

Taveira contorceu-se como que acossado por carreiro de formiga cadáver. Embora a sua propensão extrovertida de interpretar as situações, fleumático atirou:
- A unidade e a solidariedade são a procura incessante da estrutura humana no mundo. Há algo que é muito importante escalpelizarmos: A terrível confissão de que não temos nomes, e aquilo que apenas possuímos é a transformação desses mesmos nomes, em comunicados de guerra. Muito simplesmente a nossa condição humana é única e exclusivamente medida em litros de suor sangue e lágrimas, derramados em prol da Pátria. Todos somos espectros de outras guerras. Isso é o que nos une e permanecerá entre nós.

Gama interrompeu:
- É verdade! Somos uma geração que está a ser sacrificada e devorada, para o bem futuro e salvação das gerações vindouras.
- Mentira! - exclamou, peremptório, Rafael, dando uma volta e sentando-se na cama. De dedo em riste para o seu camarada afirmou:
- Repito! Em princípio isso é uma mentira imposta! Não nos sacrificamos a nós ou aos turras, mas a ambos. Os que já se foram e aqueles que ainda virão, são a súmula de todo este disparate!... O Taveira tem absolutíssima razão, quando diz que todos somos espectros de outros conflitos. Pergunto: Porquê nos foi destinada esta vida? Porquê nascer para este estado de sofrimento? Como compreender tudo isto?... Também é verdade, que qualquer resposta me é inútil, porque me encontro com vertigens, vomitando sobre o abismo que se abre à minha frente. Quando matamos, já não somos nós! Porque nós próprios já estamos mortos. Conheci poucas pessoas que quisessem vir para aqui, e muitos menos que não tivessem medo da guerra, e receio de não regressarem a casa. Muitos, mas muitos de nós tenho a certeza, dentro de si ficarão, com os buracos que abrimos para os abrigos, as crateras abertas pelas granadas de morteiros e as noites das matas sem luar cheirando a morte! Alguém já compreendeu, que se toma impossível regressar de uma guerra?...Ela será nossa companheira até nos extinguirmos. Findará apenas quando o som cavo, das pás de terra se ouvir, caindo sobre as tábuas, que envolverão a nossa matéria.
-Será!?... Que só sabemos criar através da destruição?

Pami não entendia agora muitas das coisas que os militares diziam. Mas ficou com a certeza de que era aquela a fotografia do seu interior, e que não tinha nada a ver com a que se apresentavam exteriormente perante o mundo.

Rafael continuou:
-Gostaria de perguntar a estas gentes que nos transformam em voluntários forçados e nos incutem a ter saudade dos maternos mamilos, sugando-os até fazer sangue. O porquê? E para quê?... À minha ditosa Pátria - busto, figura, mulher libertada - gostaria de perguntar que mais sacrifícios nos requer?... Às mulheres, mães, irmãs, esposas e amantes, gostaria de questionar porquê não invertem a razão dos valores, e gritem bem alto em uníssono: Parem!... Basta!... Por favor! Ou será que o absurdo leva as mães ao masoquismo de terem orgulho chorando sobre a campa dos seus filhos? Falsos heróis, fabricados por um louvor em Ordem de Serviço!

Gama inquieto, a adrenalina subindo. Exclamou:
- Pára , não voltemos a Camões. Lembra-te que o desgraçado, para poder divulgar a sua Obra, teve de dar manteiga aos padres.

Rapidamente Rafael ripostou:
- Camões é inquestionável. Sabes porquê? Porque a Língua é parte integrante da nossa identidade. Quem melhor a cantou como Ele? Mas também podemos reflectir - indicando na direcção das mulheres no seu trabalho - Que língua falam estas desgraçadas negras? Se Ela revela o que construímos e aquilo que somos. Também te dá os exemplos contrários. O que não somos, e o que não construímos ou antes destruímos.

Os militares, em íntimos pensamentos interrogativos concerteza, calaram-se por breves minutos. Um silêncio claustraniano invadiu a mansão militar. Mas Taveira remexeu o refugado.
- Sim!... Podemos questionar que outros tormentos e desalento, deseja a Pátria ver no rosto dos seus filhos, para se sentir feliz. Quem será o último a morrer, em seu nome e da sua glória?

Rafael voltou filosofando:
-O meu pai mostrou-me uma noite, o poço da Ribeira Velha. Era tão profundo, que apenas reflectia uma estrela. Um ano a seca foi tão grande que o fundo do poço se transformou em lama, fazendo desaparecer a estrela. Penso que o desaparecimento de uma estrela , no fundo de um poço, nos destroça mais do que uma emboscada na estrada de Cabolol. A sede que martiriza o Gama talvez seja esta. Por ventura, um de vós que me sobreviva, irá falar com o meu pai. O meu pai chorará, e aquele que lhe falar, ficará diante dele cabisbaixo, envergonhado, mordendo os lábios. Sentir-se-à culpado por não ter sido morto também. E reflectirá sobre a própria sobrevivência. A cara de meu pai reflectirá na distorção da sua dor e paixão a minha própria cara. Nessa hora concerteza pensareis: Porquê ele e não eu?
- Amanhã!... Será a vez de outro amigo e companheiro olhar nos olhos de outros pais ou mães. Não tenhais dúvidas! Este será o drama que nos acompanhará! Somos, sem dúvida, uma geração que não existiu para viver e amar, mas sim para se extinguir sob o síndroma dos efeitos da guerra. Como será o futuro? Quais os efeitos para todas as partes deste enorme disparate?

Como que acordando de longo sono, olhou para Míriam e rispidamente interpelou-a:
- Como é, saco de carvão? Esta merda nunca mais fica limpa? Gosse! Fora daqui!

Pami sentiu enregelar-se e, rapidamente, seguiu a sua companheira, que saía adivinhando borrasca. Os militares continuaram de certeza a sua conversa. Mas para a prisioneira o que ouvira era suficiente, para ficar completamente baralhada. O mundo apareceu-lhe, como imenso labirinto, bem definido entre dois pólos invisíveis: O Princípio e o Fim.

Não era a primeira vez que a conversa dos militares a fizeram raciocinar sobre este tema da guerra. Nas conversas habituais do varandim, tinha assistido a um aceso debate sobre a política portuguesa para as colónias Portuguesas em África, e ouvira perfeitamente falar sobre Amílcar Cabral.

Recordava na altura ter Rafael referido que um seu amigo tinha estudado engenharia com o líder do PAIGC, e que se referia a ele como sendo dos melhores alunos do seu curso de agronomia. Pena era ter-se ligado aos comunistas de Leste. Sobre este tema, não recordava quem tinha levantado o problema de não ter o PAIGC simpatias só nos países de Leste. Tinha até sido levantado o problema da Língua na Guiné, e a influência que os países de língua francófona, dada a sua proximidade, poderiam daí retirar algum partido, resultante do laxismo português. Ouviu muito mais sobre a questão colonial (províncias de Portugal). Inclusive, o Gonçalo, falar da estupidez de não ter sido tomada em conta a posição de Norton de Matos, sobre Angola. Sobre este caso, Pami por desconhecimento absoluto não pôde retirar conclusões.


(ii) Pami, com sintomas de gravidez, vai com o Furriel Rafael... em português


Aproximava-se a época das chuvas. Pami começou a sentir-se um pouco estranha, tinha vómitos pela manhã, o ciclo menstrual desapareceu-lhe e os seus pequenos seios começaram a crescer. Preocupada a prisioneira, pelos indícios verificou que estava grávida. Entrou em pânico, quando compreendeu que transportava no ventre, um filho ou filha, do militar branco.

Como seria? Que fazer perante esta situação?... Não poderia dizer a ninguém. Mas como esconder tal situação? Falar com Míriam e contar toda a verdade? De certeza esta ficaria com ciúmes, e a amizade terminaria. E mais grave o furriel Rafael ficaria logo a saber. E se contasse ao furriel ou ao alferes? Qual seria a reacção? Rafael era amigo do Gonçalo! Incerteza como reagiria! Agora, sim, sentia-se num dilema, turbilhão de ideias. Como poderia ser compreendida pela guerrilha? Certo era que não poderia viver assim sem comunicar com alguém.

Passada que foi uma noite sem fechar os olhos, e com uma agitação incontrolável na sua mente, teve uma resolução, chamou Míriam, e solicitou-lhe, para interceder junto do furriel Rafael, pois queria falar com ele. Aquela riu perdidamente, e perguntou:
- Sanhá, tu não sabe fala potuguês! Como fala tu com furiel? Quê qui tu quere fala cum ele?- perguntou com desconfiança.

A prisioneira informou de que não aguentava mais a situação, e queria que o furriel a interrogasse, para depois a matar, ou mandar embora.

Míriam falou com o furriel, e este informou que ia falar com o alferes Telmo. Para resolver o assunto. Pela tarde, apareceu um milícia, que mandou a prisioneira acompanhá-lo, e seguiram para a casa dos interrogatórios. O milícia mandou sentar Pami, ele também se sentou no chão. Passado um bom bocado, apareceu o furriel só, sem arma, vestindo roupa civil. Calça cinzenta e camisa branca. Deixara crescer a barba novamente, mas agora estava um pouco mais gordo. Retirou um maço de cigarros do bolso da camisa, e ofereceu um ao milícia e retirando outro para ele, acendeu com o isqueiro, primeiro o dele, e depois o do milícia. Olhou para a prisioneira, e comunicou ao milícia:
- Diz-lhe lá que já não me lembrava dela como prisioneira! Mas que está mais gorda e mais bonita! Pergunta-lhe se está satisfeita com os soldados de Cufar!

Antes do milícia fazer a tradução, a prisioneira retorquiu em crioulo perfeito:
- A mim fala só cum furriel!

Este ficou um pouco desorientado, ao ouvir a prisioneira, e demoradamente reteve o olhar no coto da mulher. Olhou para a cara da mesma e ordenou ao milícia:
- Vai embora! Eu falo então com ela!

O milícia saiu, o furriel sentou-se no único banco existente na casa. Começou a fazer argolas com o fumo do cigarro, com o olhar e pensamento concerteza distante. Voltou a olhar para a prisioneira que, angustiante, aguardava a oportunidade da autorização para falar. De repente disparou:
- Quê qui bó miste?

Pami olhou para o furriel, duas gotas caíram-lhe dos olhos e pronunciou:
- Eu peço perdão, eu falo português!

O furriel rápido como um felino, deu um salto deixando cair o banco. Instintivamente, levou a mão direita à anca, como se procurasse a pistola. Notava-se que tinha ficado desorientado. Olhando constantemente para a prisioneira, deu uns passos na sala - como que fera a preparar o salto sobre a presa - sempre fumando. Até que parando levantou o banco, voltando a sentar-se, e calmamente interpelou:
- Não estou a compreender, vamos com calma! Repete lá o que disseste?
- É verdade!... Falo português, e possuo a quarta classe de escolaridade, tirada na escola missionária de Catió. Peço perdão por ter escondido, mas tinha medo que me matassem. O meu nome verdadeiro é Pami Na Dondo. Sanhá Na Cunhema era minha mãe que faleceu em Cadique há um ano e pouco. O meu pai é Pan Na Ufna e meu marido Malan Cassamá, se ainda for vivo.

Estupefacto, o furriel mandou a prisioneira falar e contar tudo. Enquanto Pami ponto por ponto narrava a sua vida, o militar em silêncio fumava, acendendo cigarros uns nos outros. Incrédulo, ouvia, parecendo o pensamento estar muito longe. A narrativa da destruição da escola de Flaque Injã fê-lo olhar para a prisioneira, que agora falava e chorava. Pami ia começar a narrar alguns episódios da sua estadia como prisioneira no aquartelamento. Mas foi interrompida pelo furriel.
- Ficaste contente quando o Gonçalo morreu, na noite que te levou para a cama?

Pami ficou sem saber que responder e admirada pelo militar saber que o amigo a tinha violado. Escondendo o estado de gravidez em que se encontrava, num rasgo de audácia, perguntou:
- Como sabe?
- Sei tudo o que se passou nessa noite, há soldados que viram e a Míriam contou-me tudo. Estás ou não contente por ele ter morrido?
- Fiquei contente nesse dia, sim! Não o nego. Mas hoje não sei! Estou muito confusa! Furriel, por favor, eu quero terminar agora!... Mate-me! Eu já não sirvo para nada. Nem para os militares, nem para o PAIGC. Quero mesmo acabar. Mate-me ou mande matarem-me! A partir deste momento, só o meu pai me poderá compreender, Malan meu marido dificilmente o fará.

Rafael deitou fora a ponta do último cigarro restante do maço e apagou-a com a ponta da bota de lona. Olhou fixamente a prisioneira, e disse-lhe:
- Malan Cassamá já não existe! Foi abatido em Flaque Injã quando ao servir de guia tentou fugir.

Pami retorquiu:
- Tentou a fuga ou mandaram-no fugir?
- Sinceramente não sei dizer! Mas daria no mesmo. Após tudo isto tenho a certeza que não és assim tão ingénua e ignoras a situação em que nos encontramos. Sabes perfeitamente que estamos na opção zero! Quem não mata, morre! Que alternativas existem?

A prisioneira, sentindo o coração apertado, com aquela verdade tão dura respondeu:
- Sim! Só que nós morremos por uma causa nobre e justa, queremos ser livres e donos da nossa Terra!
- Tens razão! Só que nós não queremos morrer e, para isso acontecer, a única lógica concerteza é matar. Quem achas que sofre mais? A mãe de Malan Cassamá ou a mãe do Gonçalo? Há possibilidades de medir a dor e o sofrimento de qualquer mãe pela morte de um filho?... Pode um homem ser a maior peste do mundo, mas para a sua mãe ele será sempre o seu filho. Aqui há coisas concretas, não podemos brincar. Mesmo que queiramos não podemos fugir à realidade.


(iii) Rafael, armado de G3, leva Pami para o mato, sozinha com ele. Pami, grávida em resultado da violação, implora ao Lassa para que mate


Pami não respondeu, chorava copiosamente. O furriel levantou-se e disse-lhe, saindo:
- Esperas aqui que eu volto já.

Saiu, e a professora guerrilheira continuou chorando, completamente destroçada. Totalmente em farrapos, o seu cérebro ia tentando recompor algumas coisas. Malan morto! E seu pai, ainda seria vivo? Apenas existia uma indecisão. Era a corrente que se transmitia do seu ventre ao pensamento.

Teria ela também o direito de decidir qual o caminho do ser que transportava? Reconhecera já raiva com ela própria, ao tontamente sorrir, acariciando o ventre. Sentia momentos de incerteza, sobre o gosto do que transportava.

Passados alguns minutos o furriel regressou. Tinha envergado uma camisa camuflada, por cima da camisa branca. No ombro em bandoleiro de cano para baixo, trazia uma espingarda G3. Abriu a porta, e sem olhar, disse:
- Vamos! Segue-me!

Abandonaram o quarto de interrogatório, e o furriel dirigiu-se para a porta de armas seguido da professora de Flaque Injã. À saída da porta de armas, o soldado de sentinela olhou e falou:
- Vai comê-la, ou entregá-la ao papá do céu? Veja lá, meu furriel, mas é se ela lhe rouba a arma, enquanto está matando a fome!.
- Vai-te foder! Porco de merda! - foi a resposta do furriel.

Seguiram junto ao arame farpado e depois divergiram para o carreiro que dava acesso à lagoa, entrando na picada que a circundava. Pami sentia o corpo todo em demente tremura, e os seus passos seguindo os do militar eram já inseguros e incertos. Recordante, ouviu o padre Francelino narrando os passos de Cristo, coroado de espinhos arrastando a Cruz, a caminho do Gólgata. Tentou rezar o Pai-nosso em sinal de perdão. O furriel andou uns cento e cinquenta metros, e parou debaixo de uma árvore, carregada de ninhos de tecelões que, com o aparecimento dos intrusos, voaram, num grande chilrear.

O sol caía sobre o fundo da pista. Brevemente a noite africana apareceria com os seus sons e mistérios. Época de chuvas, o bonito luar de África, não apareceria mas sim as trevas e algum tornado. O furriel puxou a culatra da G3, e introduziu uma bala na câmara, rodando a patilha de segurança para tiro de rajada. Mandou sentar a prisioneira no chão, ao que esta obedeceu. Rafael olhou para a cara da rapariga, e sentiu qualquer coisa diferente de quando a interrogara pela primeira vez. Verificou em pormenor que a prisioneira apresentava a cara mais cheia, os seios agora bem visíveis pelo afastamento do pano, pareciam que tinham dobrado de tamanho, o olhar tornara-se meigo e brilhante de uma doçura estranha.

O militar procurou os olhos da prisioneira e fixando-os tentou penetrar no seu intimo, questionando-a!
- Que posso fazer por ti?
- Mata-me! - respondeu, firme, a prisioneira.
- Sabes que cometeste uma grande falta e erraste ao mentires nos interrogatórios. Podias ter colaborado e assim não morrerias. Os militares não te trataram bem?

A rapariga acenou que sim com a cabeça. Mas o militar pressentiu qualquer coisa na prisioneira, e, julgando que era a hora certa, insistiu:
- Fala! Há qualquer coisa estranha, que parece quereres dizer-me algo mais!?

Pami mudou de posição, e pôs-se de joelhos, como que em oração, olhos no chão, saíram-lhe estas palavras:
- Já não tenho solução, aqui ou na guerrilha, a minha vida já não vale nada, pelo que o melhor é morrer!

Uma torrente de lágrimas caía pela cara da pseudo-guerrilheira. O furriel já não olhava para a mulher, mas sim para o cair do sol por sob o ilhéu de Infanda, e ela continuava:
- Mata-me! É melhor assim, para mim e para ele, que o Deus do padre Francelino me perdoe.
- Não! Há alguma coisa errada no meio disto tudo. Conta! Conta toda a verdade!

Massacrava o furriel com perguntas. Agora já num choro em soluços, Pami de joelhos continuava: - É nula a solução, eu sei tudo sobre vós, já contei tudo, mas aparecer assim na guerrilha não vão acreditar. Vai ser o maior desgosto para o meu pai!
- Mas aparecer como? - ripostou o militar.
Completamente destroçada, Pami confessou:
- Eu fiquei grávida na noite em que morreu o Gonçalo! Nas minhas entranhas existe um ser, filho dele!

(iv) Rafael liberta finalmente Pami, que irá ter um filho de tuga, norto em combate. A mãe pôs-lhe o nome de Umberto Cassamá.


Uma rajada soou por sobre a lagoa de Cufar, e o seu eco redobrou na margem oposta. As aves que se alimentavam, nas águas calmas, levantaram voo em gritos de aflição.

Pami pareceu sentir o seu corpo trespassado por milhares de projécteis, e o seu cérebro apenas definiu o fim. Passaram uns segundos eternidade. A mulher levantou os olhos, e olhou para Rafael. Este continuava a olhar o pôr-do-sol, e sobre a rala e negra barba, apareciam agora gotas de orvalho caídas da fonte de seus olhos. A arma mantinha-se fumegante, virada para os céus.

Pami jamais sonhara ver aquele homem duro comovido. O militar baixou-se, pegou na guerrilheira pelos braços, e ergueu-a. Voz embargada, falou para Pami mulher criança:
- Se quiseres ficar connosco, podes ficar! Ninguém te tratará mal. Se achares melhor ires ter com o teu pai, vai! Perdoa ao Gonçalo, e se for um rapaz não te esqueças de lhe por o nome de Humberto! Aqui em Cufar todos te julgarão morta! Nunca te arrependas de ser uma mulher livre! O teu pai saberá compreender-te! Vai!...

Completamente atónita, Pami Na Dondo, guerrilheira e professora de Flaque Injã, não queria acreditar no que ouvia do militar. Começou a caminhar no sentido do fundo da pista, de regresso ao desconhecido. Cinquenta metros à frente, sentiu na coluna um arrepio de frio e a sensação que iria receber uma rajada pelas costas, - o furriel não iria cometer uma traição - e virou-se para ao menos morrer de frente. Ajuizou mal. Apenas viu o militar de costas, caminhando em direcção ao aquartelamento.

Míriam tinha razão, Rafael nunca seria capaz de matar mulher. Só em combate ele poderia matar alguém. Teve vontade de voltar atrás correndo e pedir perdão ao militar.

Ao entrar na porta de armas, a sentinela brincou com o furriel:
- Aquela, já vai dormir com os anjinhos hoje!? Amanhã vai dar um belo pequeno-almoço aos jagudis!

O furriel, sem olhar repostou:
-Sim, aquela voltou a ser uma mulher livre!

No fundo do carreiro, Pami contornou a pista e dirigiu-se para a mata de Cufar Novo. Fez-se noite....

Época de chuvas, completamente encharcada, Pami na Dondo, vagueou perdida pelas matas de Cufar Nalu, Camaiupa Cachaque e Cabolol. Passados dois dias, num carreiro junto ao rio Quaianquebam, próximo onde Gonçalo fora abatido, um grupo de guerrilheiros, encontrou-a caída completamente exausta.

26 de Novembro de 1966, algures na mata do Cantanhez no Sul da Guiné, nascia Umberto Cassamá, filho de Pami na Dondo, e neto de Pan Na Ufna. No mesmo dia, os Lassas desembarcavam do navio Niassa no Cais de Alcântara em Lisboa.

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Notas de L.G.:

(1) Vd. postes anteriores desta série >

21 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2293: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (1): Os bastidores de um romance (Luís Graça / Mário Fitas)

23 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2298: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (2) - Parte I: O balanta Pan Na Ufna e a sua filha (Mário Fitas)

28 de Novembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2307: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (3) - Parte II: A formação político-militar (Mário Fitas)

5 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2328: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (4) - Parte III: O amor em tempo de guerrilha (Mário Fitas)

10 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2340: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (5) - Parte IV: Pami e Malan são feitos prisioneiros (Mário Fitas)

18 de Dezembro de 2007 > Guine 63/74 - P2363: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (6): Parte V: O primeiro interrogatório da prisioneira (Mário Fitas)

30 de Dezembro de 2007 > Guiné 63/74 - P2391: Pami Na Dondo, a Guerrilheira , de Mário Vicente (7) - Parte VI: Malan é entregue à PIDE de Catió (Mário Fitas)

16 de Janeiro de 2008 > Guiné 63/74 - P2443: Pami Na Dono, a Guerrilheira, de Mário Vicente (8) - Parte VII: O prisioneiro Malan é usado como guia (Mário Fitas)

5 de Fevereiro de 2008 >Guiné 63/74 - P2506: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (9): Parte VIII: Os demónios étnicos (Mário Fitas)

20 de Fevereiro de 2008> Guiné 63/74 - P2560: Pami Na Dondo, a Guerrilheira, de Mário Vicente (10) - Parte IX: A prisioneira é violada...


(2) Resumos dos postes anteriores:


(i) A acção decorrer no sul da Guiné, entre os anos de 1963 e 1966, coincidindo em grande parte com a colocação da CCAÇ 763, como unidade de quadrícula, em Cufar (Março de 1965/Novembro de 1966)…

No início da guerra, em 1963 Pan Na Ufna, de etnia, balanta, trabalha na Casa Brandoa, que pertence à empresa União Fabricante [leia-se: Casa Gouveia, pertencente à CUF]. A produção de arroz, na região de Tombali, é comprada pela Casa Brandoa. Luís Ramos, caboverdiano, é o encarregado. Paga melhor do que a concorrência. Vamos ficar a saber que é um militante do PAIGC e que é através da sua influência que Pan Na Ufna saiu de Catió para se juntar à guerrilha, levando com ele a sua filha Pami Na Dono, uma jovem de 14 anos, educada das missão católica do Padre Francelino, italiano.

O missionário quer mandar Pami para um colégio de freiras em Itália mas, entretanto, é expulso pelas autoridades portugueses, por suspeita de ligações ao PAIGC (deduz-se do contexto). Luís Ramos, por sua vez, regressa a Bissau, perturbado com a notícia de que seu filho, a estudar em Lisboa, fora chamado para fazer a tropa.

É neste contexto que Pan Na Una decide passar à clandestinidade, refugiando-se no Cantanhês, região considerada já então libertada.

(ii) De etnia balanta, educada na missão católica, Pami Na Dondo, aos catorze anos, torna-se guerrilheira do PAIGC. Fugiu de Catió, com a família, que se instala no Cantanhês, em Cafal Balanta. O pai, Pan Na Ufna entra na instrução da Milícia Popular. Pami parte, com um grupo de jovens, para a vizinha República da Guiné-Conacri para receber formação político-militar, na base de Sambise. O pai, agora guerrilheiro, na região sul (que é comandada por João Bernardo Vieira 'Nino') , encontra-se muito esporadicamente com a filha. Num desses encontros, o pai informa a filha de que a mãe está gravemente doente. Pami fica muito preocupada e quer levá-la clandestinamente a Catió, enquanto sonha com o dia em que se tornará companheira do pai na Guerrilha Popular.

Entretanto, o destino prega-lhe uma partida cruel: na instrução, na carreira de tiro, tem um grave acidente, a sua mão esquerda fica decepada. No hospital, conhece Malan Cassamá, companheiro de guerrilha de seu pai, que recupera de um estilhaço de morteiro, que o atingiu na perna, no decurso da Batalha do Como, em Janeiro de 1964 (Op Tridente, Janeiro-Março de 1964, levada a cabo pelas NT) . Malan fala a Pami da coragem e bravura com quem seu pai se bateu contra os tugas.

Pami é destacada para dar aulas ao pessoal do Exército Popular e da Milícia Popular, em Flaque Injã, Cantanhez. No dia da despedida, canta, emocionada, o hino do Partido, 'Esta é a Nossa Pátria Amada', escrito e composto por Amílcar Cabral. Segue para Flaque Injã, com o coração em alvoroço, apaixonda por Malan Cassamá. De regresso à guerrilha, a Cansalá, Malan fala com o pai da jovem, e de acordo com os costumes gentílicos, Pami torna-se sua mulher.

(iii) Na actual região de Tombali (Catió), no sul da Guiné, o PAIGC, logo no início da guerra, ganha terreno e populações (nomeadamente, de etnia balanat). A resposta das autoridades portuguesas não se fez esperar, com uma grande contra-ofensiva para reconquista a Ilha do Como (Op Tridente, Janeiro-Março de 1964).

Entretanto, começam a chegar a Catió chegam reforços significativos. O Cantanhês, zona libertada, assusta o governo Português. Em contrapartida, no PAIGC, Nino, o mítico comandante da Região Sul, manda reforçar os acampamentos instalados nas matas de Cufar Nalu e Cabolol.

Em finais de 1964, Sanhá, a mãe de Pami, morre de doença na sua morança na tabanca de Cadique Iála. O guerrilheiro Pan Na Ufna, acompanhado da sua filha, faz o respectivo choro, de acordo com a tradição dos balantas.

Em Março de 1965, os homens da CCAÇ 763 - conhecidos pela guerrilha como os Lassas (abelhas) - reconquistam ao PAIGC a antiga fábrica de descasque de arroz, na Quinta de Cufar, e respectiva pista de aterragem em terra batida. Nino está preocupado com a actuação dos Lassas, agora instalados em Cufar, juntamente com o pelotão de milícias de João Bacar Jaló, antigo cipaio, agora alferes de 2ª linha.

Entretanto, Pami e Malan continuam a viver a sua bela estória de anor, em tempo de guerra, de sacrifício e de heroísmo. Ela, instalada em Flaque Injá, onde é professora. Ele, guerrilheiro, visita-a sempre que pode.A 15 de Maio de 1965, os Lassas destroem o acampamento do PAIGC na mata de Cufar Nalu. A guerrilha sofre baixas mas, durante a noite, consegue escapar com o equipamento para Cabolol. Na semana seguinte, os militares de Cufar tentam romper a estrada para Cobumba. Embrenham-se na mata de Cabolol, destroiem várias tabancas na zona.

Em princípios de Junho de 1965, os Lassas (abelhas) vão mais longe, destruindo o acampamento de Cabolol. Em Cafal, o comando político-militar do PAIGC está cada vez mais preocupado. Em Julho, Pami chora de dor, raiva e revolta ao ver a sua escola destruída, em Flaque Injã. Grande quantidade de material desaparece ou fica queimado. As casas de Flaque Injã ficam reduzidas a cinzas.

Mas a luta continua... Psiquicamente recuperada, a população começa a reconstrução de Flaque Injã e Caboxanque. A guerrilha recebe mais reforços e armamento novo. Pami entra voluntariamente numa coluna de reabastecimento que a leva à República da Guiné. Segue o corredor de Guilege, e sobe de Mejo para Salancaur, daqui para o Xuguê [Chuguè, segundo a carta de Bedanda,] terra de seus avós paternos. Desce até Cansalá, onde se encontra com seu marido. Não encontra seu pai, pois este fora transferido para o Cafal, e ali integrado numa companhia do Exército Popular.

Em meados de Agosto de 1965, Pami Na Dondo desce com Malan Cassamá até Cobumba. Malan e o seu grupo levam a cabo várias acções contra a tropa e o quartel de Bedanda. O grupo regressa a Cansalá. Uma delegação da OUA visita as zonas libertadas, a convite do PAIGC.

(iv) Madrugada de 24 de Agosto de 1965, Pami e Malan dormiam nos braços um do outro quando a tabanca, Cobumba, sofre um golpe de mão do exército português, que tem a assinatura dos Lassas.

No grupo de prisioneiros que são levados para Cufar, estão Malan e Pami que terão destinos diferentes. Pami estão integrada num grupo de cinco mulheres e procura nunca denunciar a sua condição de professora. Em caso algum falará recusará falar em português ou em crioulo. Mas os seus olhos de águia vão observado tudo, no caminho até ao quartel dos Lassas. No rio Cadique o grupo embarca em lanchas da Marinha. O Alferes Telmo não deixa que ninguém toque nas mulheres. Fala em psico, uma palavra que Pami desconhece. O grupo é entregue à guarda ao Furriel Mamadu.

Pami mal reconhece a antiga fábrica de descasque de arroz, a Quinta de Cufar, onse se instalaram os Lassas. Os prisioneiros são recebidos por militar dos óculos que, mais tarde Pami vem a saber tratar-se de Carlos, O Leão de Cufar, comandante do aquartelamento. Homens e mulheres são instalados em sítuios diefrentes. Malan e Pami entrecuzram o olhar, sem se denunciaram. Sabem que dizem ali adeus para sempre. Lágrimas nos olhos, Pami sente a dor da separação. Pami e as prisioneiros ficam à guarda da milícia de João Bacar Jaló [ou Djaló]. Recusa-se a comer, bebe só água. No dia seguinte, a vida no aquartelamento retoma o seu ritmo. Pami pode agora ouvir e até ver perfeitamente, por entre as frestas das paredes de capim ao alto entrançado com lianas, tudo o que acontece por fora da palhota onde tinha passado a noite.

(v) Começam os interrogatórios dos prisioneiros, em Cufar. Um soldado milícia, da tropa de João Bacar Jaló, vem buscar Pami. Pelo caminho, Pami vai-se preparando mentalmente para mentir aos seus captores e sobretudo para não comprometer Malan. Entretanto, com os seus olhos de águia, vai observando e registando todos os pormenores da vida no aquartelamento dos Lassas.

Um milícia serve de intérprete. O interrogatório é conduzido pelo Alferes Telmo, acompanhado pelo Furriel Rafael (de alcunha, Mamadu), um e outros reconhecidos de imediato pela Pami. Respondendo apenas em balanta, diz chamar-se Sanhá Na Cunhema (nome da mãe) e ter nascido na Ilha do Como. Os militares decidem mudar de táctica. Rafael encosta-lhe o cano da pistola ao seu ouvido, e pergunta-lhe, através do intérprete, o que aconteceu à sua mão esquerda... Um pouco trémula, diz que, quando era criança, fora mordida por uma cobre, tendo o pai sido obrigado a cortar-lhe a mão para a salvar...

Pami parece não convencer os seus interlocutores. Os dois Lassas entram em provocações de teor sexual, pensando tratar-se de uma eventual prostituta ao serviço da guerrilha... O interrogatório irá continuar nos dias seguintes. Pami regressa, exausta, para junto das suas companheiras de infortúnio. Mas, ao mesmo tempo, sente-se orgulhosa por. neste primeiro round, não ter traído os ideais de seu pai, Pan Na Ufna e de seu marido, Malan, valentes guerrilheiros do PAIGC.

(vi) Pami está exausta e confusa, depois do primeiro interrogatório com os rangers Telmo e Rafael (ou Mamadu). Próximo da hora de almoço do dia seguinte, Pami foi levada novamente para ser interrogada. Só que para surpresa sua, o interrogatório não era com os mesmos do dia anterior. Sente que tem de ter muito cuidado. Não pode cair em contradição, ou ceder qualquer pista, pois não sabe nada sobre o que está a acontecer ao seu marido Malan Cassamá, e agora tinha muitas mais razões para a sua inquietação, resultante das revelações feitas pelos seus inquiridores. Sim, ficou a saber que Telmo e Rafael pertenciam a tropas especiais. Porquê a sua inclusão numa companhia normal do exército colonialista, interroga-se ela?

Entretanto Malan é denunciado como guerrilheiro do Exército Popular e é entregue à PIDE de Catió. A professora apercebe-se que os seus companheiros, homens, estão a ser interrogados com a ajuda de cães para aterrorizar mais. Entre as mulheres prisioneiras, já teria havido confissões. Uma, pelo menos, foi alvo de abusos sexuais. As que colaboram com os Lassas são soltas.

Entretanto, a balanta Pami torna-se confidente de fula Miriam e sente um ódio profundo pelo Furriel Rafael (Mamadu, segundo o seu nome de guerra). Os Lassas, por sua vez, voltaram a ir ao outro lado do Rio Cumbijã. Meta, casada com um milícia e amiga da Miriam, contou que tinham andado por Cadique Iála, e que tinham morto muita gente, e queimado as casas todas. E não tinham tido nem mortos nem feridos.

Pami apercebeu-se que de facto as coisas deveriam ter corrido bem, porque houve grande festa no Comando. Mas também poderia ser festa de anos do furriel Rafael, como afirmara Miriam. Era certo que quando algum furriel ou alferes fazia anos, havia sempre grandes festas. Era uma forma de criar corpo de unidade, delineado pelo macaco velho do Leão de Cufar, o chefe dos Lassas.

(viii) Em novo interrogatório, o Furriel Rafael ameaça matar a professora de Flaque Injã, quando esta, já esquecida dos interrogatórios, é levada de novo, em princípios de Setembro de 1965, à presença do temível triunvirato: Queba, o intérprete, o alferes Telmo (com o seu caderno), e o furriel Rafael (com a sua pistola).

Embora aterrorizado com as ameaças do Furriel Rafael (que parece fazer bluff...). Pami teme sobretudo que os Lassas façam de novo uma operação do outro lado do Rio Cumbijã, utilizando o seu marido, Malan, como guia...

Voltando de novo à sua morança-prisão, Pami apercebe-se de que nem todos os Lassas estão ali, na guerra, de livre vontade... Os seus piores receios, entretanto, materializam-se, ao reconhecer o seu Malan na silhueta do negro, de corda atada ao pescoço de um negro, conduzido por um Lassa, a caminho da porta de armas, possivelmente para srevir como guia numa operação... Pelo burburinho que perpassa pelo aquartelamento, Pami toma conhecimento de que os Lassas estão em operações lá para os lados de Caboxanque... Um avião T-6 é atingido, mas o seu o piloto consegue fazer uma aterragem de emergência em Cufar...

No regresso dos Lassas ao quartel, Pami sabe, pelas conversas que ouve junto dos milícias, eles ter-se-iam esquivado a uma emboscada, junto ao cais de Caboxanque. Detectando a segurança à retaguarda, os Lassas mataram esses elementos e, saindo do caminho que vai dar ao cais, divergiram para a bolanha para não entrarem na emboscada, que deveria ter muita gente do PAIGC. Mas sobre Malan não consegue saber mais nada de concerto.

Uns dias mais tarde, Míriam contou a Pami tudo o que tinha acontecido, conforme lhe descrevera o furriel Mamadu. O pessoal do PAIGC mais uma vez tinha sido humilhado, pelos Lassas. Tinha sofrido grandes baixas, vários mortos e muitos feridos. A professora de Flaque Injã chorou e pela primeira vez o desânimo entrou no seu pensamento. Seria que o sonho de uma Pátria era irrealista?


(viii) Caminhamos para os finais de 1965. Pami têm agora duas novas amigas, com quem conversa mais amiuadamente, as lavadeiras Miriam e Meta, esta última mulher de um velho milícia. Os Lassas já se habituaram à presença de Pami que continua a observar e registar mentalmente tudo o que se passa à sua volta. Dá conta da existência de um furriel de nome Gonçalo, que passa a vida a falar com o seu cão cufar. No final do ano, aparecem aviões a lançar toneladas de bombas sobre o Cantanhez. Os Lassas saem para uma operação em Darsalame. O Furriel Rafael é ferido e evacuado para o Hospital de Bissau. Miriam está chorosa e apreensiva. Leva Pami ao quarto do Furriel a quem lava a roupa e a quem faz favores sexuais. Pami fica intrigada com as fotografias que vasculha. As duas mulheres falam sobre as bajudas brancas do Furriel.

Agora já ninguém liga à prisioneira nem a importuna. Mas Pami fica triste certo dia, quando ouviu um soldado a ler, a outro, uma carta dos pais... A professora interroga-se sobre a condição humana e a estupidez da guerra. Com mais liberdade de movimentos e beneficiando da amizade de Miriam, Pami vai conhecendo melhor o quotidiano dos Lassas, as suas misérias e grandezas. Mas o que mais espicaçou a sua curiosidade intelectual foi uma longa conversa sobre os povos da Guiné, travada num círculo à volta do Leão de Cufar e dos seus colaboradores mais próximos. No final, fica a saber que Rafael tinha voltado do hospital…


(ix) A profesora do PAIGC esforça-se por consolidar a sua amizade a lavadeira, a jovem fula, Míriam, que está muito triste porque ninguém lhe dás notícias do seu furriel, enquanto ao mesmo tempo acalenta a ideia de o levar no Homem Grande, "para bala não entrar no corpo dele"... Entretanto, Rafael regressa do hospital. Miriam faz uma festa. A vida em Cufar continua, com a sua rotina de guerra... Um belo dia, Pami entra no quarto dos furriéis, a convite de Miriam, vê fotografias de bajudas brancas e lê uma carta da mãe de Rafael... Inevitavelmente sente saudades da sua mãe, que morreu no mato...

Entretanto o Leão de Cufar, o comandante dos Lassas, vai para Bissau, para outra missão, sendo subtituído por um "capitão gordinho, com ar assustado"... Esta mudança de liderança vai fazer mal aos Lassas, e à sua prontidão para a guerra...

Na véspera de sair para mais uma operação, os Lassas estão tensos, agressivos, violentos. O Furriel Gonçalo acaba por forçar Pami a ter relações sexuais com ele, no seu quarto, com a cumplicidade de Miriam. A resistència de Pami é inútil...

No dia seguinte, Gonçalo morre em combate.... Os Lassas estão destroçados. Como retaliação pelos seus desaires, bombardeia o Cantanhez com a sua artilharia pesada. Pami volta a temer as represálias dos Lassas. Teme pela sua vida, enquanto assiste a cenas tristes, em que os Lassas exibem comportamentos estranhos, regressivos, e continuam a morrer ou a ir para o hospital em Bissau...

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Nota: Dirigida ao Mário Fitas

Ao ler o blog P2593 do Luís Graça, sobre a guerra da Guiné, encontrei uma foto que é sua e está identificada como " uma enfermeira". O nome dessa enfermeira é Ivone, se pretender pôr lá o nome pode fazê-lo. (...)

Jorge Félix
ex-Alf Pil Aviador