terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Guiné 63/74 - P3554: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (Alberto Branquinho) (12): Há momentos em que um homem sente culpa e angústia...

Fuga para Lá (Menor?)

Alberto Branquinho




O capitão miliciano Silvério estava sentado na mesa de canto da denominada “messe de oficiais” com um copo de whisky entre as mãos, assente na mesa. Tinha o olhar fixo no vazio e repetia, repetia em surdina:
- E matavam-se por não saberem…/ por que… por que… os mandavam matar/ sem saberem as razões/ por que matavam… matavam… matavam…

Calou-se durante uns segundos. Depois, elevando a voz, começou a cantar:
- Heróis do mar, nobre povo…
- Oh capitão Silvério! – interrompeu o comandante do batalhão olhando para ele, enquanto segurava, com a mão direita, a carta que ia jogar. – Pare lá com isso!

O capitão parou subitamente de cantar e ficou a olhá-lo com ar apatetado:
- Meu comandante, desculpe. São erupções…

Sempre que não estava ausente em operações, o capitão Silvério ocupava aquela mesa depois do jantar, quase sempre sozinho. Não gostava de jogos de cartas. Bebericava whisky, dose atrás de dose. Quando a visão se lhe turvava, falava baixo, dizia poemas e pedaços de textos sem nexo, que pareciam não ter fim.

Voltou ao texto, repetiu, repetiu. Tinha a certeza que não era bem assim, mas, afinal, dava quase no mesmo.

Relacionava-se melhor com os alferes milicianos, mas estes, à noite e quando não tinham saídas, também eram jogadores de cartas. Ficava só. Ou quase.

Tinha dois inimigos de estimação. Um era o major do planeamento de operações, acusando-o de ele ver o terreno (bolanhas, rios, tarrafos, matas, etc.) como se tudo fosse um mapa plano, sem dificuldades nem obstáculos à progressão da tropa. O outro era o agente da PIDE, instalado junto ao quartel, que, solenemente, desprezava. Chamava-lhe o “homem das antenas”.

Com o correr dos meses tornou-se cada vez menos comunicativo e bebia cada vez mais.
- Capitão Silvério, você está a precisar de umas férias - aconselhou o comandante.
- Pois – respondeu secamente.

Foi de férias. Mas não regressou. O alferes Matos, por ser o mais antigo, passou a comandar a companhia, aguardando o capitão substituto.

Passados quase três meses sobre a data em que o capitão Silvério deveria ter regressado, o alferes Matos recebeu uma carta, enviada por alguém que não conhecia. Abriu o envelope e reconheceu a letra:

"Olá, Matos. Pedi ao meu amigo para te enviar esta carta para o SPM. Dá-me notícias vossas. Escreve para este meu amigo, para o endereço que está no envelope. Ele enviará a carta ou o aerograma para mim. Diz-me o que se vai passando com vocês, com todo o pessoal. Espero que não tenham tido azares.

"Há momentos em que acho que não deveria ter vindo para França, que deveria ter voltado para aí. É assim como uma espécie de culpa e fico angustiado. Principalmente à noite.

"Fica ao teu critério falares disto a quem tenhas confiança, mas acho que devia ficar só entre nós dois. Até para tua segurança.

"Escreve, está bem? E vai dando notícias de tudo.

"Um abraço do
Silvério ".


__________


Notas de vb:

1. Artigos do Alberto Branquinho em

26 de Novembro de 2008 >
Guiné 63/74 - P3521: Não venho falar de mim... nem do meu umbigo (11): Um cabo que conheceu Bissau vinte e três meses depois... (Alberto Branquinho)

4 comentários:

Luís Graça disse...

Alberto, estás um mestre: em duas pinceladas desenhas uma personagem e um contexto, e contas uma história com tensão dramática ... E, lacónico, sabes, com magia, falar de emoções que nos eram proibidas... Os nossos medos, a nossa angústia, a nossa culpa, os nossos ódios...

Quantos capitães, sobretudo milicianos (Mas também do QP), não pensaram, no sue íntimo, seguir os passos do Silvério ? A maior parte não desertou... Mas quem, deles, se atreve a atirar a primeira pedra contra o Silvério, os Silvérios que, nas férias, foram para a França ou para a Suécia, não tendo regressado â Guiné ?

Não sei se haverá muitas histórias dessas, de companhias "órfãs", que ficaram sem o seu capitão, a meio da comissão ou até mais cedo...

Sei que muitas companhias, na Guiné, tiveram mais do que um comandante, algumas até três e quatro capitães... Havia outros recursos menos dolorosos, mais cómodos, do que a "vergonhosa" (para a família...) deserção: a psiquiatria, a cunha, o compadrio, a corrupação, etc.

Já aqui falámos de algumas dessas companhias: a CART 2339 (Mansambo, 1968/69), do Torcato Mendonça; a CART 3494 (Xime e Mansambo, 1972/74) do Sousa de Castro... Haverá muitas mais...

O que não deixa de ser motivo de interrogação e inquietação: porquê tão elevada taxa de "turnover" (rotação) de capitães, milicianos, na Guiné ?

Eis um bom assunto para a nossa série Controvérsias... Talvez o Jorge Picado (que foi até agora o único capitão miliciano, se não me engano, a dar a cara e a contar a sua história de vida...) queira e possa abordar este tema-tabu, escaldante, incómodo...

Alberto, vamos ter livro! Parabéns! Esta é uma das histórias que vou pôr na nossa antologia, quando um dia tivermos que fechar o blogue...

Luís

Anónimo disse...

Muitas horas de leitura...muitas horas de escrita. Muito forte, indelével, na vivência, na análise ou no plural: - Vivências e análises de vida aquela e (ou) outras. Mais um texto a marcar, e bem, um espaço da Blogoterapia.
Os Capitães Milicianos merecem uma análise cuidada dentro do tema " A Guerra Colonial".
Por vezes, este e outros textos abrem parêntesis ou dão-nos momentos de reflexão que... Paro. Não quero entrar, num despretensioso comentário, em determinadas abordagens Ab TM

Anónimo disse...

Foi pena o Brandão, o Carlos, o CasaNova, O Rodrigues, o Manso, o ...
não terem conhecido o Silvério.
Foi pena.
...mas se não fosse assim outros teriam partido. ... e as noticias seriam outras.
Silvério, se me estás a ler dá um abraço ao Branquinho

Anónimo disse...

Não foi por mal o anónimo.
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Jorge Félix