terça-feira, 18 de novembro de 2008

Guiné 63/74 - P3477: História da CCAÇ 2679 (7): Quotidianos (José Manuel Dinis)


1. Mensagem de José Manuel Dinis, ex-Fur Mil da CCAÇ 2679, Bajocunda, 1970/71, com data de 14 de Novembro de 2008:

Carlos, meu amigo,
Com a desaceleração do Beja Santos, tens beneficiado de algum descanso na edição do blogue. Pus-me em cogitações, de que a preguiça é a mãe de todos os vícios, e esforcei-me nesta croniqueta que te mando, não vá acontecer que te tornes um madraço, e qualquer dia não temos quem te substitua no papel de competente editor. Assumo que temos de te garantir trabalho. Oxalá eu seja capaz. Outra vez, muito obrigado pela acção que vocês desempenham, de catalizadores da família Tabancal.
Para o pessoal todo, aquele abraço fraterno.
José Dinis

Quotidianos

Sob o sol ardente da tarde, saímos de Piche em direcção a um ponto no Corubal, em passo estugado, pois o Comando referira ter informações de que o IN estaria atravessando o rio numa suposta área, e nós devíamos interceptá-los em caso afirmativo. Caminhava sedento. A dose para matar a sede, era de uma tampinha do cantil em cada vez, mas a frequência, alertava-me para o esgotamento da água.

Tínhamos regressado de uma coluna matinal e o almoço já ocorrera para além do serviço normal, pelo que a refeição requentada, não fora agradável. Ainda sentados à mesa, fomos avisados da saída iminente e o Guerra chamado ao Comando. Estas acções inopinadas que nos roubavam o descanso, também fustigavam a moral.

Sempre prontos, como bombeiros, abalámos mata fora. Respondíamos ao transpirardo corpo, com um caminhar automatizado, ora por trilhos, ora a corta mato, ou atravessando bolanhas com a superfície ressequida, por efeito da forte cacimbada. O calor era imenso. A sede aumentava com a correria durante a digestão. A zuada persistente dos mosquitos, envolvia-nos em tortura desgastante e complicava a progressão.

Chegados à margem do rio, que percorremos em alguma extensão, silenciosos e alerta, não encontrámos sinais de qualquer actividade do IN. Instalá-mo-nos, e fizemos a ligação por rádio. Enquanto aguardámos instruções, um a um, cautelosamente, enchemos os cantis, bebericámos despreocupadamente e demos descanso aos corpos, nas sombras das árvores, com pouca conversa, já que mantínhamos uma formação alongada. No silêncio da mata, ouvia-se uma ou outra ave que dava sinal da nossa presença. O cenário da quase selva africana abatia-se sobre nós e todas as possibilidades da guerra podiam atraiçoar o remanso. Até que o rádio transmitiu indicações para alcançarmos um trilho identificado na carta, prosseguirmos na direcção norte até outro ponto, onde seríamos recolhidos por viaturas,

Chegámos a Piche quando o horizonte incendiava a poente, numa mancha de fogo que anunciava para breve o pôr-do-sol.

Pelas 22h00 dormia profundamente, fui acordado com abanões. Filho da puta - reagi chateado. Desculpe, senhor padre - aquiesci ao identificar o capelão.

- Está ali uma mesa tão bonita, não queres vir juntar-te a nós? - perguntou-me com doçura o enviado de Deus.

Não precisou de gastar muitos argumentos, para que me juntasse aos parceiros da batota. Jogava o pocker de cartas com um rendimento notório, pois saíra a ganhar de todas as sessões em que participara. Só que, agora, havia uma certa diferença no valor das caves. Enquanto com os meus amigos, quando alguém apostava dois e quinhentos, ou fazia bluff, ou tinha jogo, agora, ganhava-se e perdia-se aos contos de reis. O padre, esse, devia usar dinheiro milagroso, pois perdia consecutivamente, sem perder a compostura. Era, aliás, um excelente parceiro, bem disposto, que transmitia alegria e dava lenitivo aos espíritos, quando nos referia que, indo a Bissau, se nos dirigíssemos à igreja de Brá, ali poderíamos dispor, quer do Volkswagen, quer da Fatinha, a bajuda deliciosa.

E o whisky corria pelas gargantas em catadupas enebriantes, que nem sempre combinavam com o discernimento para a jogatana.
Todavia, a mão invísivel de Deus conduzia o meu destino com sucesso e sempre arrecadei umas notitas nas noites de perdição.

Guerra, é Guerra!

Aconteceu a minha primeira vez com o paludismo.

De um modo geral, à boa maneira portuguesa, não fazíamos qualquer prevenção anti-palúdica. Como, também, não fazíamos qualquer prevenção , quando recolhíamos água da bolanha ou das poças que resistiam ao sequeiro sahariano. E, em abono da verdade, o Victor era depositário de comprimidos adequados, que queria impingir-nos e nós regeitávamos. Dessem-nos gin com fartura e julgávamos nós, a saúde corresponderia eficazmente.

Talvez por isso, fui uma vítima do paludismo, prostrado na cama com imensos febrões, sem energia, nem vontade para comer, nem para receber a luz solar, para ali estava, derrotado pelos minusculos mosquitos transmissores do vírus. Bem quisto, bem quisto, era o Vitor, que me espetava resochinas, e transmitia-me a esperança de sobreviver e arribar. Foram dias de descanso penoso e obrigatório.

Uma dessas noites, estava o Foxtrot escalado para uma emboscada nocturna, quando à passagem pela última linha de arame, vá-se lá saber porquê, o Guerra decidiu ficar por ali, num abrigo periférico, o pessoal em confraternização com os que ali viviam e defendiam a posição, nas tintas para os fingidores que, de tanto inventarem a guerra, moíam o juízo e o corpo da malta e ainda dividiam os louros e honrarias entre si. De rompante, entrou o Drácula e o nosso capitão.

Alguém bufara pelo telefone do abrigo, provavelmente quem o comandava, enquanto se fazia cúmplice na finta à emboscada nocturna. Ainda faltava muito para a obra do Alberto Pimenta, Discurso sobre o filho da puta, inspirada nessas manifestações sórdidas e cobardes:

... é o pequeno
filho da puta
que dá ao grande filho da puta
tudo aquilo de que o grande filho da puta
precisa
para ser o grande filho da puta
diz o pequeno filho da puta...


É histórico o exercício ou o jogo do poder, assenta na divisão dos pequeninos que, de tanto se sacanearem, vão perpetuando as divisões e a subserviência.

Daquela ocorrência resultou a transferência do nosso alferes, um tipo porreiro, gracioso na linguagem desbragada que ofuscava o adolescente ingénuo, completamente desalinhado com a obediência cega e os imperativos do RDM, marginal aos quesitos e tradições do exército, querido do pessoal, que o estimava acima de tudo, tinha a maneira peculiar de estimular, desdizendo do sistema e das regras que o sustentam. Língua afiada, boa disposição permanente, tolerante, mas decidido, o Eduardo Guerra antecipava, assim, as despedidas do pelotão.

A homenagam viria a acontecer pela consolidação e orgulho do Foxtrot que o recordava frequentemente.

O Martins

Alguns elementos do 2.º Pelotão - Foxtrot, de pé, da esquerda para a direita: Dinis, Abreu, Teresa e França. Em baixo: Lamarão (condutor), Rodrigues, Martins e Virgílio Sousa

Foto e legenda: © José M. Matos Dinis (2008). Direitos reservados


De seu nome completo, José da Ressurreição Martins, foi o primeiro Foxtrot a levar uma porrada, porque, quando deambulava distraído pelo aquartelamento, em Piche, não bateu a pála ao Drácula, que se lhe atravessou ao caminho.

Indignado, o homem interrogou o ingénuo militar, manifestamente atarantado, que mais se enterrou com a resposta desajeitada.

Punido com 10 dias de detenção, pelo Exmo. Comandante do BArt 2857, em 07Mar70. Pena agravada em 21Abr70, pelo Exmo. Comandante do Agrupamento 2957, para 10 dias de prisão disciplinar".

Toma! O inimigo não dorme.

O coitado do Martins, companheiro, esforçado e respeitador, um tipo que fez a comissão sem levantar ondas, quase despercebidamente, não fora lidarmos todos os dias, alcandorado a bandalho provocador, pela sanha persecutória de duas bestas: uma, que governava pelo terror; outra, que agravava para se afirmar. Assim, simplex, sem cuidarem de saber as qualidades do soldado. Dois heróis que, seguramente, bem podiam passear-se medalhados, face aos inúmeros riscos que correram.

O Martins constará mais tarde da lista dos louvados, pelas boas práticas e qualidades pessoais, no âmbito das tarefas que competiram ao Foxtrot.

Deixou uma marca bem positiva no relacionamento com camaradas e superiores que lhe dispensaram grande confiança.

JMMD
___________

Nota de CV:

Vd. poste de 7 de Novembro de 2008 > Guiné 63/74 - P3420: História da CCAÇ 2679 (6): Piche, novamente (José Manuel Dinis)

1 comentário:

Anónimo disse...

Camarada Dinis
É bem verdade que sempre que se escreve algo do nosso passado neste TO da Guiné vamos tecendo uma teia em que muitos de nós nos vamos interligando.
Pois não é que conheci e tive ligado à CCaç 2589 o teu Cmdt do Pelotão Eduardo Ribeiro M.C. GUERRA?
Em JUN70, vindo da CCaç 2679 "apareceu" em Mansoa, para tomar conta do Pel Caç Nat 58 em substituição do Alf José Antº RUAS G. de Carvalho que terminara a comissão em 30ABR70. Foi para o Infandre, onde estavam 2 Pel (1 estava em Braia) e escapou à fatídica emboscada de 12OUT70 porque nesse dia ficou no Destacamento.
Acabou por ser evacuado para a Metrópole em 7JAN71, por doença.
Abraços
Jorge Picado